Para Fernando Medina, ministro das Finanças, é claro: Portugal está numa “situação de pleno emprego“. A expressão foi usada numa entrevista ao Expresso, no rescaldo da apresentação do Orçamento do Estado, quando defendia com unhas e dentes o seu OE de “contenção”. Para o próximo ano, o Governo projeta que a taxa de desemprego se mantenha nos 5,6%, o mesmo valor que aponta para este ano. Mas ainda longe dos cerca de 4% que Portugal chegou a ter nos anos 90, uma altura de maior, e mais prolongado, crescimento. Os economistas ouvidos pelo Observador acreditam que a taxa poderia chegar a esses valores de outrora, mas para isso seria preciso um conjunto de reformas — que não estão em curso. Sem elas, são obrigados a concordar com Medina: dificilmente, a taxa de desemprego descerá mais. A convicção é acentuada pelos fantasmas da recessão, que o Governo tem recusado assumir.
O “pleno emprego” traduz uma realidade em que aqueles que procuram emprego, e podem exercer, encontram trabalho facilmente. Quem não o encontra é porque não quer ou não pode trabalhar. Está associado ao conceito de “desemprego estrutural“, aquele desemprego “natural”, que resulta de um desajustamento entre os postos de trabalho disponíveis e a qualificação dos trabalhadores. Marta Lopes, especialista em economia do trabalho e ex-professora da Universidade Carlos III em Madrid, explica que o pleno emprego se atinge quando deixa de existir desemprego cíclico, restando apenas “desemprego estrutural”, o “desemprego causado pelo desfasamento entre as skills [competências] dos desempregados e as skills exigidas pelos empregos disponíveis”.
Fantasmas da recessão à parte, a economista, que tem estudado o fenómeno do desemprego, acredita que a taxa só pode baixar mais “se houver uma redistribuição geográfica“. Segundo nota, os dados do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) relativos a agosto davam conta que, no Algarve, as ofertas de trabalho representavam 20% dos desempregados registados, enquanto no Norte não chegava aos 4%. Além desta redistribuição, “o IEFP e os próprios empregadores podem ter um papel fundamental na formação dos novos empregados”.
A economista chama a atenção para um indicador, a taxa de subutilização do trabalho, que no segundo trimestre deste ano diminuiu para 11,2% e atingiu o valor mais baixo desde a última crise, em 2011. Esta taxa inclui a população desempregada, os trabalhadores a tempo parcial, os inativos à procura de emprego mas não disponíveis para trabalhar e os inativos disponíveis mas que não procuram emprego.
João Cerejeira, economista e professor na Universidade do Minho, também acredita que a taxa de desemprego não tem margem para descer muito mais (em agosto, estabilizou nos 6%, subindo ligeiramente no final do verão, em setembro, para 6,1%). “Acho que é muito difícil com o quadro económico que temos atualmente. A estrutura da população, os custos de mobilidade não se resolvem de um dia para o outro. As questões do desajustamento de qualificações também não”, refere ao Observador.
Outros países europeus têm hoje valores mais baixos do que Portugal, mesmo se tivermos em conta que, como prevê o Governo, a taxa de desemprego fique nos 5,6% no conjunto do ano. São eles a República Checa, a Alemanha ou a Dinamarca, que atualmente têm taxas a rondar os 2,4%, 3% e 4,4%, respetivamente.
Portugal já atingiu valores semelhantes. Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), os primeiros anos da década de 90 foram caraterizados por taxas a rondar os 4% (como em 1991 e, mais tarde, em 2001, chegando mesmo aos 3,9% em 2000). Mas Pedro Martins, economista na Nova SBE e ex-secretário de Estado do Emprego do governo de Pedro Passos Coelho, salienta que, aí, a “economia estava a crescer a números muito maiores“. E essas subidas favoreciam o emprego. O economista também não acredita que, mantendo-se as atuais políticas públicas em Portugal ligadas ao desemprego, a taxa vá descer mais.
Os fantasmas ao virar da esquina
A contribuir para o desemprego estrutural está, segundo João Cerejeira, o “desajustamento das qualificações” em setores que estão a crescer, mas que não conseguem encontrar trabalhadores qualificados para ocuparem os postos de trabalho que criam. É o caso das tecnologias de informação ou da saúde, diz. Os desempregados que existem “não correspondem ao perfil” que estes setores procuram.
Depois há os setores que exigem menores qualificações, mas que, por oferecerem salários mais baixos, não são capazes de atrair desempregados. “No caso português em particular, trabalhar tem um custo: de transporte, por exemplo. Com o aumento dos custos de transporte ou das rendas das casas, a mobilidade dos trabalhadores fica limitada”, explica. Nesses casos, a diferença entre o subsídio de desemprego e o ordenado oferecido pode não ser aliciante o suficiente para impelir o desempregado a aceitar a oferta.
Esse contexto dificulta que um trabalhador do interior aceite um emprego na capital, por exemplo. “Isso é desemprego estrutural. É termos procura de emprego numas zonas do território, nalguns setores, e depois haver dificuldade em haver pessoas dispostas a trabalhar. Acaba por não se conseguir fazer esse encontro entre a oferta e a procura”, acrescenta. Marta Lopes também lembra que quando um desempregado procura trabalho define o seu “salário de referência“, ou seja, o salário abaixo do qual não vai aceitar ofertas.
João Cerejeira e Pedro Martins não acreditam que o turismo tenha espaço para fazer descer muito mais a taxa de desemprego, até pelo problema da sazonalidade. “Houve uma procura que estava reprimida por causa da pandemia, que levou a um crescimento muito grande do turismo, mas não vejo que isso possa continuar durante mais tempo“, indica Pedro Martins.
Esse pessimismo é agravado perante os fantasmas da recessão, um cenário que o Governo não põe em cima da mesa. Na construção do Orçamento do Estado para 2023 vê a economia a crescer 1,3%, depois de um pulo de 6,5% este ano — ou até superior, como já admitiu Fernando Medina. O desemprego, estima o Executivo, vai manter-se nos níveis de 2022, nos 5,6%. O Conselho das Finanças Públicas é a instituição mais otimista, e acredita mesmo que a taxa pode descer um pouco mais, apontando para os 5,3% no próximo ano, 5,1% em 2024 e 2025 e até 5% em 2026.
Instituições divergem no desemprego de 2023
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O Conselho das Finanças Públicas (CFP) é a instituição mais otimista quanto ao desemprego de 2023, acreditando que ainda vai descer mais: 5,3%. Já o Governo aponta para 5,6%, enquanto a OCDE (em projeções de junho) estima 5,7% e Bruxelas 5,9%. Mais pessimista está o FMI, que em outubro acreditava que vai fixar-se em 6,5%.
Para João Cerejeira, uma taxa de 5,6% em 2023 é “realista”, mas apenas se se cumprir o cenário macroeconómico do Governo — que aponta para um crescimento no próximo ano, embora moderado. Pedro Martins concorda que o atual ciclo económico torna ainda mais remota a possibilidade de o desemprego descer mais do que 5,6%. O economista apelida mesmo a estimativa do Governo como “muito otimista dada a previsível deterioração do ciclo económico”.
Os dados do desemprego de setembro podem já dar sinais de alerta: a taxa subiu ligeiramente, 0,1 ponto percentual, para 6,1% face ao mesmo período de 2021, um ano ainda marcado pelas restrições da pandemia. Os dados do trimestre não são mais positivos: a taxa de desemprego desceu, de julho a setembro, 0,3 pontos percentuais face ao trimestre homólogo, mas subiu 0,1 pontos percentuais face ao trimestre acabado em junho, mesmo apesar de compreender meses de verão.
A criação de emprego também está a arrefecer: a população empregada subiu 1% no terceiro trimestre em relação ao mesmo período de 2021, o crescimento mais baixo desde o primeiro trimestre de 2021, um período de confinamento em que houve contração da população empregada. Serão estes os primeiros sinais de travagem?
O desenho do subsídio de desemprego
Ciclo económico à parte, os economistas ouvidos pelo Observador acreditam que uma redução do desemprego estrutural só poderia acontecer com novas políticas públicas. “Há áreas em que há muito trabalho a fazer e que poderiam ajudar a reduzir o desemprego estrutural em Portugal. Sem essas medidas, receio que estejamos um pouco resignados a manter-nos nestes 5%, não muito abaixo disso”, defende o ex-secretário de Estado do Emprego.
Segundo os dados do INE, no terceiro trimestre de 2022 havia 305 mil desempregados em Portugal, mais mulheres do que homens, e com uma maior preponderância na faixa etária dos 25 aos 34 anos. Mais de 30% têm o ensino secundário, mas grande parte (37%) só tem o ensino básico. Quase 50% estão desempregados há 12 ou mais meses, o que faz com que o desemprego de longa duração seja um dos maiores desafios em Portugal.
Marta Lopes explica mesmo que quando a taxa baixa quem está desempregado há menos tempo tende a encontrar emprego mais rapidamente, pelo que a taxa de desemprego de longa duração aumentou em 2021, um ano ainda marcado pela pandemia.
João Cerejeira, da Universidade do Minho, acredita que o desenho do subsídio de desemprego português tem influência nessas persistentes taxas de desemprego de longa duração. Mais precisamente, ao fazer aumentar a duração do apoio consoante sobe a idade.
Se olharmos para os desempregados de longa duração tendem a ser pessoas mais velhas. Pode haver o tal problema de desajustamento — de qualificações ou de mobilidade geográfica —, mas depois o nosso subsídio de desemprego, nalguns casos, funciona como uma antecâmara para a reforma. A pessoa está em subsídio de desemprego, já não tem intenção de voltar ao mercado de trabalho, mas mantém-se no subsídio com o objetivo de passar à situação de reformado”, considera.
Em Portugal, as condições de acesso ao subsídio de desemprego até são “das mais difíceis” face a outros países europeus, que requerem menos tempo de descontos. Mas depois de ter acesso, “é dos sistemas onde a pessoa pode ficar mais tempo“.
Pedro Martins, ex-secretário de Estado, defende que é importante o “mecanismo de seguro” do subsídio de desemprego, que garante um rendimento de substituição quando o salário cessa, com base nos descontos que fez. Admite uma discussão sobre o desenho do sistema, incluindo a duração do subsídio e do montante, mas prefere centrar o debate noutro ponto: a ajuda dos centros de emprego à procura de trabalho que, diz, deve ser melhorada. E muito.
“Portugal está muito atrasado em relação às melhores práticas internacionais. Há muitas atividades que poderiam ser desenvolvidas para apoiar os desempregados no seu regresso ao emprego, que em Portugal ainda são feitas de uma forma incompleta”, acredita. O ex-secretário de Estado aponta para o caso alemão, em que ainda antes de um trabalhador chegar ao desemprego, por cessação de um contrato a termo, começa a ser apoiado pelos centros de emprego. “Há uma lógica de antecipação e de início do apoio por parte das entidades públicas junto de uma pessoa que, estando ainda empregada, poderá precisar de apoio na sua transição para um novo emprego”, indica.
Em países do centro ou do norte da Europa, há maior “qualidade na informação sobre o mercado de trabalho que é proporcionada aos desempregados”, para poderem orientar a procura para ofertas de emprego com maior potencial.
Pedro Martins também salienta como, em Portugal, é baixo o número de casos em que o IEFP suspendeu subsídios de desemprego por incumprimento das regras. Por exemplo, os desempregados com subsídio ficam obrigados à procura ativa de emprego, da qual têm de fazer prova, ou a ações de formação. O Observador pediu dados ao IEFP sobre a suspensão de subsídios de desemprego pelo incumprimento das regras, mas fonte oficial remeteu para o Instituto da Segurança Social, que não respondeu.
Uma diferença face a outros países é que em Portugal, quando há essa suspensão, é total: ou seja, corta-se todo o subsídio. Uma opção mais radical que acaba, diz, por não ser aplicada com frequência, mesmo perante incumprimento. Noutros países, as sanções são parciais, ditando apenas cortes de parte do apoio. “Há uma sanção temporária de forma a criar um incentivo adicional junto dos desempregados para que façam uma efetiva procura ativa de emprego”, explica. O economista — que diz que o incumprimento não representa a maioria dos casos — defende, porém, que se deve “revisitar essas situações” para assegurar que haja uma efetiva procura de emprego.
O sistema de formação “one size fits all“
Como incentivar os desempregados a voltar ao emprego? Para João Cerejeira é preciso uma renovação do sistema de formação e dos centros de emprego, para que funcionem numa lógica mais local. Neste campo, é contra o lema “one size fits all”. “O desemprego resolve-se ao nível local. Tem de haver uma autonomia, unidades locais que trabalhem juntamente com as autarquias e associações empresariais locais para encontrar soluções. Aquilo que funciona em Lisboa não vai funcionar em Évora ou Bragança”, argumenta. Também cada setor tem especificidades e necessidades distintas.
Marta Lopes concorda que é preciso investir na formação e destaca medidas como o “montante único”, que antecipa a um desempregado as prestações de desemprego, de uma só vez, total ou parcialmente, quando o beneficiário apresenta um projeto de criação do próprio emprego, certificado pelo IEFP.
Num estudo sobre restrições financeiras e empreendedorismo em desempregados, Marta Lopes e colegas da Nova SBE e do Banco de Portugal concluíram que o acesso a este financiamento funciona sobretudo no setor da informação e comunicação e no setor têxtil e que as restrições financeiras podem, de facto, travar negócios com grande potencial de crescimento.
Uma forma de incentivar mais desempregados a regressar ao trabalho seria com “processos mistos, de conjugar parte do subsídio de desemprego por algum tempo com a situação de empregado”, refere João Cerejeira. Uma “espécie de estágios”, através de uma inserção “suave” no mercado de trabalho, sem perda de rendimento, “para a pessoa não ficar penalizada por ir trabalhar”. No acordo de rendimentos e competitividade assinado com as confederações patronais e a UGT, o Governo prevê uma medida nesse sentido para estimular a contratação de desempregados de longa duração, que permitirá acumular parte do subsídio de desemprego com o salário pago pela entidade empregadora.
Pedro Martins aponta como uma fragilidade o facto de as ofertas de emprego que chegam ao IEFP serem poucas e pouco diversificadas. “Em cada 100 ofertas que são criadas em Portugal em cada mês, menos de dez vão parar ao IEFP”, estima. Isso faz com que os desempregados que procuram emprego, se acompanhados pelos centros de emprego, tenham acesso a uma oferta mais reduzida e “distorcida”.
Qual o impacto do aumento do salário mínimo?
A narrativa do Governo tem sido no sentido de contrariar o discurso de que aumentar o salário mínimo, como aconteceu nos últimos anos — entre 2015 e 2021, subiu 31% —, leva a despedimentos — no mesmo período, a taxa de desemprego reduziu em praticamente metade. Mas os economistas ouvidos pelo Observador têm dúvidas de que, num contexto de deterioração da economia, e em que as empresas veem os custos aumentar muito, tal seja assim tão claro.
João Cerejeira diz que depende do setor. Isto porque se há alguns que conseguem transmitir o aumento dos preços a montante no consumidor, outros não podem fazê-lo. “Ainda é muito cedo para perceber que empresas é que conseguem sobreviver neste contexto. Estamos ainda com meses de inflação elevada. Acho que vamos ter efeitos assimétricos“, sintetiza.
Marta Lopes dá outra perspetiva: aumentar o salário mínimo pode “diminuir o incentivo a que as pessoas se demitam” e, por essa via, diminuir o número de ofertas disponíveis. “Claro que por outro lado incentiva ao maior consumo e ao crescimento da economia. Tudo depende de qual das forças exerce um maior poder”, conclui.
Pedro Martins refere que vários estudos têm concluído que num contexto de crescimento da economia as empresas têm maior capacidade de suportar os custos com o salário mínimo. O problema é se o cenário se alterar. “Estamos numa perspetiva de uma grande desaceleração, com alguma probabilidade de recessão. Já começamos a entrar num contexto em que não há esta almofada do crescimento económico que possa minimizar os efeitos do salário mínimo”, frisa.
Por outro lado, também acredita que a perda de poder de compra das famílias é “um dos grandes acontecimentos de 2022 a nível do mercado de trabalho”, pelo que crê ser preciso “ser um pouco mais ambicioso em termos nominais no que diz respeito ao salário mínimo”. São, por isso, várias as forças que concorrem num cenário de incerteza que envolve 2023.