Não é todos os dias que uma pesquisa académica causa tanta controvérsia que o líder de um banco central – neste caso, Christine Lagarde, presidente do BCE – decide dedicar uma parte de um discurso público a rebater as conclusões dessa pesquisa ou, pelo menos, a desvalorizar as suas (desconfortáveis) conclusões. Mas foi o que aconteceu nesta edição do Fórum BCE, o simpósio de banqueiros e economistas que se reúnem anualmente em Sintra, com uma investigação que atribuiu aos estímulos lançados pelos bancos centrais (e pelos governos) a principal culpa pelo recente surto inflacionista.
A pesquisa em causa foi apresentada esta semana em Sintra por um dos seus dois autores, o italiano Giorgio Primiceri, professor da Northwestern University, perto de Chicago (EUA). O outro autor é Domenico Giannone, quadro do Fundo Monetário Internacional (FMI) – embora Primiceri, o académico que veio a Portugal, tenha sublinhado que as conclusões do estudo não vinculam o organismo sediado em Washington. E a principal conclusão é que o surto inflacionista registado na Europa e nos EUA não se deveu tanto a um choque do lado da oferta mas, sim, a um aumento “inesperadamente robusto” da procura económica após a pandemia – o que, em teoria, deveria ter levado os bancos centrais a reagirem mais cedo com a subida dos juros.
Em termos simples, a subida dos preços numa economia acelera (gerando-se inflação) quando acontece uma de duas coisas: os bens e serviços tornam-se mais caros porque surge uma escassez na oferta desses bens e serviços, levando os consumidores a pagarem mais por eles, ou, em alternativa, porque há um grande aumento da procura por esses bens ou serviços, também forçando os consumidores a competirem de forma mais intensa por eles (isto é, pagando mais caro). Tipicamente, as duas coisas acontecem em simultâneo, mas em cada crise inflacionista há sempre um fator que se sobrepõe ao outro – e saber qual se sobrepõe é importante porque determina a forma como o banco central deve reagir.
A teoria monetária diz que se o surto inflacionista for causado por constrangimentos na oferta de bens e/ou serviços, sobretudo se forem apenas transitórios, o banco central deve ignorar essa pressão. Deve, apenas, monitorizar se esta não se alonga em demasia, ao ponto de “contaminar” as negociações salariais, por exemplo – os chamados “efeitos de segunda ordem”. Por outro lado, se a pressão inflacionista tiver origem, sobretudo, na procura, então o banco central deve reagir de forma rápida, designadamente com o aumento das taxas de juro.
Menos de metade da inflação foi culpa da guerra na Ucrânia, calculam os economistas
Mesmo tendo o surto inflacionista começado antes da invasão russa da Ucrânia, em fevereiro de 2022, o Banco Central Europeu (BCE) levou algum tempo a reagir. Quando, no final de 2021, a inflação já dava sinais de estar a subir – algo que já era reconhecido nos EUA, pela Reserva Federal, Christine Lagarde disse (também) em Portugal que muito dificilmente se criariam as condições ao longo de todo o ano de 2022 para que o BCE viesse a fazer qualquer aumento dos juros.
A realidade viria a ser bem diferente, com o aumento dos juros mais brusco e agressivo de sempre a iniciar-se em julho de 2022. O BCE tardou a reagir porque sempre valorizou mais a pressão dos choques da oferta – em particular, devido à subida dos preços da energia associada à guerra na Ucrânia e devido às dificuldades nas cadeias de abastecimento mundiais (que já vinham de trás). Em dezembro de 2021, por exemplo, o Conselho do BCE apenas antecipava um período “transitório” em que a inflação subiria para um nível “moderadamente acima do objetivo” – daí que os juros tenham continuado, nessa altura e nos seis meses seguintes, no nível negativo de -0,5%.
A decisão de subir os juros mais tarde, por se achar que era apenas um choque do lado da oferta, não terá sido a decisão mais correta, à luz da teoria económica. Isto porque, diz o estudo apresentado no Fórum BCE, “a inflação pós-Covid foi, sobretudo, gerada por forças inesperadamente fortes do lado da procura“, tanto nos EUA como na Europa.
A partir do modelo criado pelos economistas Giorgio Primiceri e Domenico Giannone desenharam-se duas curvas que se referiam à evolução da procura e da oferta nas duas economias (EUA e zona euro). E da análise dos economistas resulta a conclusão de que a curva da procura reacelera mais rapidamente depois do impacto inicial da pandemia, crescendo a um ritmo mais forte do que o ritmo a que cai a curva da oferta.
Para os dois economistas, isto “deve-se a uma combinação de políticas orçamentais extraordinariamente expansionistas [os estímulos lançados pelos governos na pandemia], uma procura comprimida mais forte do que se previa, assim que houve a reabertura e levantamento das restrições sanitárias [isto é, compras de bens e serviços aos quais as pessoas não tinham acesso na pandemia e aos quais voltaram depois, em força] e políticas monetárias invulgarmente acomodatícias [ou seja, as taxas de juro muito baixas que duraram, no caso europeu, até ao final do verão de 2022].
As dificuldades na produção industrial e na prestação de serviços, relacionadas com os confinamentos e as regras sanitárias, associaram-se aos problemas no transporte de mercadorias e as limitações nos voos comerciais. Isso gerou um “choque” do lado da oferta, os autores reconhecem-no. Mas mantêm que, na sua análise, o impacto para a inflação mais forte e mais prolongado no tempo veio do outro lado, o lado da procura.
“No início da pandemia, ambas as economias [EUA e Europa] foram penalizadas por choques negativos na oferta e na procura, deprimindo gravemente a atividade económica. Mas os nossos resultados empíricos sugerem que, à medida que as condições começaram a recuperar, a procura agregada recuperou mais rapidamente do que aquilo que se previa, superando o ritmo da oferta agregada e, assim, gerando inflação”, assinalam Giorgio Primiceri e Domenico Giannone.
Na apresentação do estudo em Sintra, na manhã de terça-feira, Giorgio Primiceri confessou que os dois autores do estudo ficaram “surpreendidos” por aquilo que a sua própria análise revelou. À partida, o objetivo dos dois economistas era apenas comparar os episódios inflacionistas nos EUA e na zona euro, à procura das semelhanças e das diferenças entre os dois blocos, mas o trabalho acabou por tomar um rumo um pouco diferente, porque os dados recolhidos “colocaram em causa a opinião generalizada de que os choques desfavoráveis do lado da oferta tiveram um papel preponderante na subida da inflação, sobretudo na Europa”.
Ainda assim, embora os economistas atribuam ao surto inflacionista uma origem (predominante) que normalmente recomendaria uma atuação mais rápida por parte dos bancos centrais, o paper não chega ao ponto de criticar ou censurar a Reserva Federal ou o Banco Central Europeu (BCE) pelas suas políticas. “Com a atividade económica já, de si, enfraquecida pelas condições desfavoráveis do lado da oferta, qualquer tentativa por parte do BCE para mitigar mais as pressões inflacionistas vindas do lado da procura certamente teria prejudicado gravemente a retoma anémica que estava a verificar-se”.
BCE deu primazia à estabilização da economia, em prejuízo do controlo da inflação?
“Será que, só pelo facto de a inflação ter vindo de choques na procura, teria sido prudente o BCE tomar medidas [subir os juros] para mitigar essa procura? A resposta a esta pergunta depende, claro, da preferência que os responsáveis políticos [e monetários] atribuem ao controlo da inflação versus a estabilização económica“, pode ler-se no estudo. Os autores dão a entender que foi dada mais prioridade ao segundo fator, o que é uma consideração polémica porque o BCE tem como mandato exclusivo o controlo do ritmo de subida dos preços.
Mas isso não quer dizer que, aos olhos de Giorgio Primiceri e Domenico Giannone, isso tenha sido a decisão errada. “Nos nossos cálculos, se [o BCE e/ou a Fed] tivessem lutado por manter a inflação o mais próximo de 2% que fosse possível [superou os 10% em outubro de 2022], isso levaria a uma perda cumulativa de Produto Interno Bruto (PIB) na ordem dos 4,5%, com a atividade económica neste ano de 2024 a um nível que seria 5% mais baixo do que aquele que temos”. “Deixamos ao critério do leitor avaliar se valeu a pena”, dizem os economistas.
Além de não estarem a criticar diretamente o BCE (nem a Reserva Federal), os autores sublinham que a situação atual demonstra que os bancos centrais “não sofreram qualquer tipo de perda de credibilidade” neste processo – mesmo que as suas projeções para a inflação tenham falhado e mesmo que, tomando como válidas as conclusões destes estudo, a sua política não tenha sido aquela que a teoria monetária consideraria mais correta.
Ainda assim, Christine Lagarde acusou o toque. No relativamente curto discurso que leu na noite de segunda-feira, na abertura do Fórum BCE, a presidente da autoridade monetária não deixou de fazer uma referência indireta ao estudo feito por Giorgio Primiceri e Domenico Giannone – um dos quatro estudos apresentados neste simpósio e, de longe, o mais controverso.
“Diferentes estudos têm chegado a conclusões diferentes acerca da origem do atual episódio inflacionista”, afirmou Christine Lagarde num discurso que foi dos mais auto-elogiosos que a presidente do BCE fez no seu mandato. Na análise feita pelo BCE, recordou a francesa, apurou-se que “no auge [do surto inflacionista], os choques da oferta eram três vezes mais importantes do que os choques da procura, quando se tenta perceber o desvio da inflação em relação à mediana”.
“Outras investigações atribuem uma importância maior aos choques ao nível da procura”, afirmou Lagarde, sem referir diretamente o estudo que tinha sido publicado alguns dias antes e que estava no centro de todas as atenções no Fórum BCE. Para a presidente do BCE, não importa muito discutir este tema agora: “esta delineação entre oferta e procura, embora seja relevante, não tem sido o fator mais importante no atual ciclo”, afirmou.
Lagarde recordou que, “no calor do momento”, o BCE teve “de basear as decisões não apenas em considerações sobre a origem dos choques mas, também, sobre a sua intensidade e a sua persistência”. Isto porque, continuou a líder da autoridade monetária, “os choques eram tão fortes e tão persistentes que enfrentámos um risco real no que diz respeito às expectativas de inflação”.
O risco, reconheceu a francesa, seria a “desancoragem” dos preços, gerando-se uma espiral de inflação indomável que colocaria em perigo não só a credibilidade do banco central mas também, em última análise, a própria divisa. No caso da zona euro, isso poderia significar que o projeto da moeda única estaria em risco. Embora o controlo do surto inflacionista seja um trabalho que “ainda não terminou”, e embora seja preciso “continuar vigilante”, Christine Lagarde congratulou-se pelos “progressos que já realizámos“, no dia em que o Eurostat estimou que a inflação na zona euro já caiu para os 2,5%.
BCE. Christine Lagarde, em Sintra, diz que “o trabalho ainda não terminou” no controlo da inflação