Mário Leite da Silva tem “integral disponibilidade para prestar às autoridades judiciárias angolanas todos os esclarecimentos de que seja capaz” nos processos angolanos que têm Isabel dos Santos como arguida e visada, afirma numa carta enviada ao Presidente João Lourenço antes da morte de José Eduardo dos Santos e com data de 24 de junho de 2022.
Numa longa carta de 51 páginas a que o Observador teve acesso, Leite da Silva tenta afastar-se de Isabel dos Santos, põe em perigo uma parte da narrativa da empresária no negócio da Galp e revela uma novidade: a filha de José Eduardo dos Santos utilizou uma empresa sua chamada Exem Energia Investimentos para reembolsar o financiamento que a Sonangol acordou com o seu marido para ter uma participação na Galp.
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Pormenor importante: estão em causa cerca de 72 milhões de euros, mas o reembolso foi feito em kwanzas (em vez de dólares) em outubro de 2017, tendo tido a autorização em agosto do mesmo ano da administração da Sonangol então liderada pela mesma Isabel dos Santos. Resultado: Sindika Dokolo terá tido um ganho financeiro de 12 milhões de euros.
Arguido e visado em diversos processos criminais e cíveis em Portugal e em Angola juntamente com Isabel dos Santos, Leite da Silva solicita que ocorra a “separação processual” da sua “situação jurídica” face à da empresária de quem foi o braço-direito desde meados da década de 2000.
Além de afirmar que Manuel Vicente, ex-líder da Sonangol está a ser protegido pelas autoridades angolanas, o gestor acusa ainda o Presidente João Lourenço e o procurador-geral de Angola de terem escondido das autoridades holandesas um acordo que aprovaram em fevereiro de 2019 entre a Sonangol e Isabel dos Santos —10 meses antes da apreensão de todos os bens da filha de José Eduardo dos Santos.
O negócio da Galp e as revelações de Leite da Silva
Um dos processos mais mediáticos que envolve Isabel dos Santos está relacionado com a forma como a empresária conseguiu, através do seu marido Sindika Dokolo (falecido em outubro de 2020), ter uma participação indireta na Galp de cerca de 6%, avaliada em mais de 700 milhões de euros.
Tudo começou quando o empresário Américo Amorim entra no capital da Galp, em dezembro de 2005, adquirindo a posição de 14,2% à EDP. Os parceiros da Amorim Energia eram dois: Sonangol e Caixa Galicia.
Arrestadas participações de Isabel dos Santos na Nos, Eurobic e Efacec. E na Galp
Para entrar na Amorim Energia, a Sonangol criou e realizou o capital inicial de 193,4 milhões de euros de uma sociedade holandesa chamada Esperaza Holding. Ou seja, a Sonangol era, em 2005, a única acionista da Esperaza.
Mais: na proporção da sua participação de 45% da Amorim Energia, a Sonangol já tinha adiantado cerca de 189 milhões de euros em 2005 para aquela sociedade igualmente holandesa comprar os 14,2% da Galp que eram detidos pela EDP.
Mário Leite da Silva denunciou em setembro de 2020, em cartas enviadas para o Banco Nacional de Angola, Banco de Portugal e Banco Central Europeu, que tal contrato de suprimentos, a que atribui o valor de 193,4 milhões de euros, será alegadamente falso. A Sonangol desmente.
Certo é que só a 25 de janeiro de 2006, cerca de um mês depois de a Amorim Energia ter entrado na Galp, é que uma empresa chamada Exem Africa Limited, de Sindika Dokolo (marido de Isabel dos Santos) assina um memorando de entendimento com a Sonangol para a compra de 40% do capital da Esperaza. Mais tarde, aquela sociedade de Dokolo viria a ser substituída por outra sociedade holandesa designada Exem Energy BV.
Mais: é a própria vendedora (a Sonangol) quem financia Dokolo em cerca de 85% do valor da operação (63,8 milhões de euros) mas sem uma data pré-definida para o reembolso.
A pergunta que sempre se fez sobre este acordo é simples: por que razão a Sonangol precisaria de vender 40% de uma sociedade sua à filha e ao genro do então Presidente José Eduardo dos Santos quando os mesmos não tinham know how para trazer para o negócio?
Mário Leite da Silva, que foi diretor executivo da Esperaza em 2006 e administrador da mesma de 12 de outubro de 2007 até 2020, opta por não responder a essa pergunta na missiva que enviou para João Lourenço, afirmando apenas que testemunhou “que a participação da Sonangol no negócio da Galp via Amorim Energia decorria de contactos estabelecidos pela senhora engenheira Isabel dos Santos.”
Mas acrescenta um dado relevante relacionado com o reembolso da dívida da Exem África Limited à Sonangol no valor de 72,8 milhões de euros (63,8 milhões de euros de capital + 8,98 milhões de euros de juros indexados à Euribor 3 meses, sem spread e não capitalizáveis) — que foi realizado em outubro de 2017 e na moeda angolana, kwanzas.
“Não tive intervenção na opção da moeda em que foi concretizado tal reembolso [kwanzas], nem quanto à escolha da empresa mobilizada para o efeito [a Exem Energia Investimentos detida pela senhora engenheira Isabel dos Santos]”, lê-se na carta de Leite da Silva.
Um pormenor muito importante: quando a Exem paga a dívida à Sonangol, a petrolífera é liderada por Isabel dos Santos.
Isto é, Sindika Dokolo pediu a 30 de junho de 2017 ao conselho de administração liderado pela sua mulher o reembolso da dívida em kwanzas, e não na moeda (euro) com a qual tinha sido feito o contrato de compra e venda de ações da Esperaza. A Sonangol aprova a proposta em agosto com o carimbo de Isabel dos Santos enquanto líder da administração mas com a assinatura de Paulo Jerónimo, então CEO da petrolífera.
E, em outubro de 2017, é a Exem Energia Investimentos (uma empresa diferente da Exem de Sindika Dokolo) que reembolsa a dívida em kwanzas, obtendo assim um ganho financeiro de cerca de 12 milhões de euros. Porquê? Porque o kwanza teve naquela altura e nos anos seguintes uma forte desvalorização.
Mais tarde, a Sonangol devolveu o valor pago em kwanzas, alegando que o montante continuava em dívida.
Resumindo e concluindo: Mário Leite da Silva está a dizer na prática que Isabel dos Santos autorizou enquanto presidente da Sonangol o reembolso de uma dívida paga por si própria. Um pormenor que era desconhecido e que pode ter relevância nos processos criminais em Angola.
O acordo sufragado por João Lourenço e PGR que terá sido escondido dos holandeses
Apesar da informação prestada sobre o conflito de interesses em que Isabel dos Santos terá incorrido ser um sinal claro da vontade de Mário Leite da Silva em colaborar com as autoridades angolanas, o gestor português não deixa também de seguir a narrativa da sua ex-chefe noutros temas.
Por exemplo, Leite da Silva acusa o Presidente João Lourenço e o procurador-geral da República de Angola, general Pitta Grós, de terem aprovado um acordo com Isabel dos Santos antes da apreensão de todos os bens da filha de José Eduardo dos Santos.
Arresto de Isabel dos Santos alargado até 5 mil milhões de euros
Está em causa uma deliberação elaborada pelo “Gabinete do Presidente do Conselho de Administração da Sonangol”, Carlos Saturnino, sobre um “Acordo de Transação” que colocaria termo a todos os conflitos entre a petrolífera angolana e a Exem Energy criados após Isabel dos Santos ter sido afastada.
Tal documento, datado de 13 de fevereiro de 2019, fará parte dos autos de uma das ações cíveis angolanas que levaram à apreensão de bens de Isabel dos Santos, e que também visam Mário Leite da Silva, e estipula que a Exem pagaria 72,2 milhões de euros à petrolífera angolana para saldar a sua dívida. Contudo, tal pagamento seria feito “mediante a transferência” da participação da “Exem no capital da Esperaza para a Sonangol”, lê-se no documento a que o Observador teve acesso.
Mais: seria feita uma cisão ao nível da Esperaza BV, ficando o capital da atual Esperaza a 100% na Sonangol e tendo Sindika Dokolo o direito de criar uma nova sociedade para deter a respetiva participação na Amorim Energia “devidamente ajustadas em função da compensação da dívida para com a Sonangol EP com ações da Exem”.
Lê-se ainda no documento, assinado por Carlos Saturnino e por mais seis administradores executivos da Sonangol, que tal acordo teve direito prévio a “aprovação do Titular do Poder Executivo e da Procuradoria-Geral da República”. Daí que Mário Leite da Silva afirme na carta que enviou a João Lourenço que este acordo, que foi junto ao livro de atas do conselho de administração da Sonangol, teve o “acordo prévio de Sua Excelência o Presidente da República de Angola, General João Lourenço, em fevereiro de 2019”.
Este é um assunto relevante porque, em primeiro lugar, Leite da Silva acusa as autoridades angolanas de terem “escondido deliberadamente” o documento das autoridades holandesas, desrespeitando uma “ordem judicial” do tribunal arbitral que intimou a Sonangol a apresentar todos os documentos existentes sobre este acordo com a Exem” e, assim, “manipulando desta forma a informação e induzindo em erro as autoridades holandesas”.
Diz Leite da Silva que a junção deste documento teria levado “muito provavelmente à extinção de tal instância processual” na Holanda por “inutilidade superveniente de lide”.
Não só o processo arbitral continuou, como foi mesmo concluído a favor dos interesses da Sonangol, já que o negócio com a Exem Energy foi declarado nulo, por o mesmo ser uma prova evidente de uma “transação kleptocrática” alegadamente concretizado num “contexto de corrupção” — conclusões que o gestor português contesta por não reconhecer ao tribunal arbitral competência para fazer juízos de valor criminais.
Nunca foi “testa-de-ferro”, “sócio” ou “master mind” dos negócios de Isabel dos Santos
Mário Leite da Silva é visado em cinco processos criminais e cíveis em Angola e Portugal e tem praticamente todo o seu património arrestado em Portugal a pedido das autoridades angolanas — matéria que contesta devido a uma alegada irregularidade processual, à qual a Relação de Lisboa não lhe deu razão.
O gestor é arguido em Portugal por suspeitas de branqueamento de capitais num processo aberto no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) por intermédio de uma carta rogatória das autoridades angolanas.
Foi à ordem destes autos que, a pedido de Angola, as autoridades portuguesas apreenderam as participações sociais de Isabel dos Santos na NOS, Eurobic e Efacec, além de todas as suas contas bancárias e bens imobiliários, tal como o Observador noticiou em primeira mão em março e em novembro de 2020. A filha mais velha de José Eduardo dos Santos é suspeita de ter alegadamente adquirido as participações nessas empresas portuguesas com fundos desviados dos cofres públicos angolanos
Todo o património de Leite da Silva foi também alvo de arresto preventivo ao abrigo do mesmo processo e também a pedido de Angola.
Isabel dos Santos e Leite da Silva são ainda suspeitos de terem alegadamente praticado em Angola diversos crimes como participação económica em negócio, tráfico de influências e peculato, entre outros, relacionados com a liderança da Sonangol protagonizada pela gestora angolana entre junho de 2016 e novembro de 2017.
Ora, Mário Leite da Silva suscita diretamente ao Presidente de Angola a “possibilidade de ocorrer separação processual relativamente à minha situação jurídica”. Tal pedido é dirigido a João Lourenço por via dos poderes hierárquicos sobre o Ministério Público que lhe são conferidos pela lei angolana.
Tudo porque o gestor português diz ter tido uma “relação com a senhora engenheira Isabel dos Santos e o seu marido estritamente profissional”. Leite da Silva refuta que tenha sido testa-de-ferro, “homem de mão”, “cérebro” ou “master mind dos negócios que estão em investigação” e diz que nunca recebeu “lucros” ou “comissões” dos negócios do casal Dos Santos/Dokolo. Apenas “salários” pela sua prestação de serviços.
Daí que mostre a sua “integral disponibilidade para prestar às autoridades judiciárias angolanas todos os esclarecimentos de que seja capaz” sobre os negócios de Isabel dos Santos e do seu falecido marido Sindika Dokolo que se encontram sob investigação em Angola. Desde que as autoridades tenham interesse no “apuramento da verdade, através de um processo justo e leal”.
“A minha consciência não me acusa de ter praticado quaisquer crimes ou atos ilícitos lesivos dos interesses fiduciários que estiveram a meu cargo”, garante.
Manuel Vicente sabia de tudo e está a ser protegido
Leite da Silva joga ainda ao ataque quando acusa a Justiça angolana de proteger indiretamente Manuel Vicente.
Em primeiro lugar, terá sido Manuel Vicente quem assinou sozinho o acordo de 2006 entre a Sonangol e a Exem para a entrada desta no capital da Amorim Energia. “Todo o processo negocial” entre a Amorim Energia, Isabel dos Santos, Sindika Dokolo e a EXEM, “foi supervisionado ao mais alto nível da Sonangol, nomeadamente pelo seu presidente do Conselho de Administração, eng. Manuel Vicente” e outros diretores da Sonangol.
Por outro lado, há política de dois pesos e duas medidas, acusa Leite da Silva, no tratamento dado a Isabel dos Santos e a si próprio e aquele que é dado a Manuel Vicente. Isto porque a Justiça angolana decidiu arrestar preventivamente todos os bens de Isabel dos Santos em Angola (ver aqui todos os bens apreendidos) e quer anular na jurisdição angolana o acordo entre a Exem Energy e a Sonangol com base no argumento de “o senhor engenheiro Manuel Vicente” ter assinado “sozinho” tal acordo em janeiro de 2006, sem ter “legitimidade para o efeito”
O problema é que a Justiça angolana apenas quer que Isabel dos Santos e Mário Leite da Silva sejam condenados a “devolver ao Estado angolano a quantia de 52,4 milhões de euros“. Ou seja, é aberta uma “exceção para o senhor engenheiro Manuel Vicente”, censura.
As consultoras de Isabel dos Santos e da amiga — e o estado calamitoso da Sonangol
O último tema relevante abordado por Mário Leite da Silva prende-se com um dos temas criminais em cima da mesa das autoridades angolanas: a contratação da consultora Wise de Isabel dos Santos por parte da Sonangol para apresentar uma proposta de reestruturação da Sonangol e a passagem da posição contratual da consultora Wise para a Ironsea/Matter de Paula Oliveira (uma amiga de Isabel dos Santos) quando José Eduardo dos Santos nomeou a sua filha para presidente do Conselho de Administração da petrolífera.
A Ironsea/Matter veio a faturar cerca de 131,5 milhões de euros de serviços à Sonangol, sendo que uma parte desse montante foi já pago pouco tempo depois de Isabel dos Santos ter sido afastada da petrolífera.
Como Angola avançou contra Isabel dos Santos (e atingiu também o pai)
Leite da Silva diz que os valores eram devidos e que os conselhos da Ironsea/Matter permitiram uma “economia de custos de cerca de 400 milhões de dólares”, cerca de 393 milhões de euros ao câmbio atual.
O gestor diz que não quer comentar o nepotismo associado ao facto de o nomeante ser pai do nomeado. “Não me coube nem cabe (…) questionar os critérios de natureza política, que são de um órgão soberano de um país independente, que levaram à designação da senhora engenheira Isabel dos Santos para encabeçar” o projeto da Wise e “as razões que presidiram à sua designação” como líder da Sonangol.
A suspeita de que Isabel dos Santos, após ter tomado posse como presidente da Sonangol, indicou Paula Oliveira, sua amiga pessoal, para tomar em seu nome a posição da Wise, é algo de que Leite da Silva diz não ter conhecimento. “Não tive qualquer percepção de que a senhora engenheira Isabel dos Santos (…) exercesse qualquer controlo, direto ou indireto, sobre a Ironsea/Matter”.
Mas, acrescenta o gestor português que coordenou os trabalhos da Wise e, a seguir, trabalhou com Paula Oliveira na Ironsea/Matter, o estado da Sonangol encontrado por Isabel dos Santos era calamitoso.
Em primeiro lugar, Leite da Silva diz que as contas da Sonangol de 2015 foram falsificadas e que a principal empresa angolana, que na prática é uma espécie de fundo soberano angolano, “estava na iminência de ser declarada falida”. E dá números:
- A petrolífera não tinha cumprido com os pagamentos do serviço de dívida durante o exercício de 2015;
- A dívida bancária era de 13,6 mil milhões dólares (à data de 31/12/2005), existindo ainda contingências fiscais de 8,7 mil milhões de dólares, das quais 4,5 mil milhões não estavam contabilizadas;
- Tinha uma dívida vencida de 1,5 mil milhões de dólares aos fornecedores de combustível refinado;
- Tinha uma dívida de 1,2 mil milhões de dólares aos operadores petrolíferos. Além de que havia perdas potenciais de 8,5 mil milhões de dólares na exploração desses blocos por parte da Sonangol, sendo que 2,7 mil milhões não estavam registados na contabilidade da empresa”
- Foram ainda detetados 900 milhões de dólares de passivos omissos
- Havia funcionários sem posto de trabalho atribuído e muitos outros funcionários falsos, sobre os quais a Sonangol suportava salários.
Em suma, Leite da Silva diz que participou no projeto de transformação da Sonangol que gerou poupanças muito significativas de 400 milhões de dólares mas que é alheio a três factos:
- “À decisão da senhora engenheira Isabel dos Santos” de assumir a liderança da Sonangol;
- Ao convite endereçado a Paula Oliveira para assumir a responsabilidade de coordenação do programa;
- “E à decisão de Paula Oliveira de ter criado uma empresa no Dubai para receber a remuneração da Sonangol”.