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Cerimónia comemorativa do 154.º aniversário do Comando Metropolitano de Lisboa da Polícia de Segurança Pública (PSP), no Palácio da Ajuda, em Lisboa, 16 de novembro de 2021. RODRIGO ANTUNES/LUSA
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RODRIGO ANTUNES/LUSA

RODRIGO ANTUNES/LUSA

"Fardados de Azul." Como nasceu e cresceu a polícia em Portugal

Do merceeiro que era polícia nos tempos livres ao polícia que hoje conhecemos. Um português, que é professor de História no Brasil, dedicou os últimos 20 anos a estudar a polícia em Portugal.

A discussão sobre a reorganização das forças de segurança, uma possível fusão entre a PSP e a GNR ou mesmo as razões para a Polícia Judiciária estar sob tutela do Ministério da Justiça não são um temas exclusivos das últimas décadas. Desde o século XIX que as forças e serviços de segurança e a sua organização são alvo de aceso debate. “É muito difícil mudar”, mesmo que aos dias de hoje as tarefas da GNR, de cariz militar, e da PSP, civil, pareçam duplicadas, assume Gonçalo Rocha Gonçalves, o professor que decidiu pôr em livro a história da polícia em Portugal desde 1860 a 1939.

Desde que se licenciou em História Moderna e Contemporânea, em Lisboa, que Gonçalo Rocha Gonçalves nunca mais deixou de estudar a polícia. É normal perguntarem-lhe se já foi agente ou se tem alguém na família nessa profissão, mas a verdade é que não, como disse ao Observador através de uma videochamada a partir do Brasil onde agora vive e é professor de História numa universidade do Rio de Janeiro.

O livro “Fardados de Azul — Polícia e Cultura Policial em Portugal”, editado pela Tinta da China, foi aliás escrito no Brasil, onde agora vive, mas teve contributos colhidos muito além. Inglaterra, França e, claro, Portugal, onde Gonçalo andou milhares de quilómetros a consultar arquivos dos extintos Governos Civis e a perceber como a polícia nascera e se tornou o que é hoje. É um livro que resume material recolhido aos longo dos últimos 20 anos.

“Comecei a trabalhar sobre a polícia vai fazer no próximo ano 20 anos. Estava a acabar de sair da licenciatura e houve um projeto da FCT [Fundação para a Ciência e Tecnologia] em que me ofereceram uma bolsa. Era o Euro 2004 e disseram-me: ‘Vai para a Direção Nacional da PSP na Penha de França e vê o que há de documentos’. Basicamente deram-me a chave e deixaram-me andar lá dentro”. afirma. Aqui analisou ordens de serviço, publicações, panfletos. A recolha de informação seguiu depois para a Torre do Tombo e para vários arquivos de norte a sul do País. O autor leu também transcrições de debates parlamentares, o estudo da difusão da polícia civil nos distritos e várias edições da revista Polícia Portuguesa, criada em 1937.

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Gonçalo Rocha Gonçalves estuda a polícia há mais de 20 anos

Foi aliás numa dessas deslocações, ainda em 2013, que acabou por almoçar com dezenas de polícias já reformados, na zona de Santarém, e descobriu que todos eles tinham prestado serviço nas antigas colónias portuguesas. A época colonial, no entanto, acaba por ser quase um apontamento num livro que começa, sim, durante a Monarquia Constitucional, em 1860.

Da Monarquia Constitucional à Segunda Guerra Mundial

“Este livro aborda o desenvolvimento de instituições policiais estatais, a sua cultura e as práticas que implementaram em Portugal, entre a estabilização da Monarquia Constitucional, na década de 1860, e o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939”, lê-se na introdução. Um livro que procura compreender o processo histórico de formação de organizações policiais em Portugal, assim como a sua profissionalização e o desenvolvimento de diferentes práticas e culturas de policiamento no país.

Grande parte das Polícias dos países europeus nasceu durante o século XIX, num contexto de profundas mudanças nas instituições e baseadas em ideias nascidas ainda na década de 1830.

Ao Observador, Gonçalo Rocha Gonçalves lembrou como esta profissão começou por ser exercida quase em regime de part time por todos. “O senhor que tinha uma mercearia era também o polícia ali daquela zona”, explica. Para depois evoluir para uma instituição “colocada no centro do Estado e da ação dos diferentes regimes políticos”.

O sistema policial que existe hoje em Portugal desde 1974, depois da extinção da PIDE, resultou de vários debates, propostas e reformas que tiveram início ainda na década de 60 e se “cristalizaram” na década de 1930. Mas ainda hoje, em pleno século XXI, continuam a debater-se questões idênticas às de há dois séculos sobre as funções de cada polícia e sobre a índole militar e civil.

“Porque temos uma PSP urbana e uma GNR rural? Porque é que a PJ é tutelada pelo Ministério da Justiça? Porque continuamos a ver o polícia como o Guarda Serôdio de os Amigos de Gaspar, um indivíduo com bigode farfalhudo, sotaque do campo e pouco culto, mas também íntegro e corajoso?”, interrogações a que o autor procura responder ao longo de um livro que não pretende, assim, estudar o crime, as ocorrências, os relatórios policiais ou as estatísticas criminais.

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Sempre se discutiu a índole militar e civil da polícia

Corbis via Getty Images

A reforma da polícia e os vários “interesses em jogo”

Grande parte das polícias dos países europeus nasceu durante o século XIX, num contexto de profundas mudanças nas instituições e baseadas em ideias nascidas ainda na década de 1830. A reforma das instituições policiais, que começaria 30 anos depois, acabaria por estabelecer o que ainda permanece da polícia. Foi por esta altura que foi introduzida uma polícia civil, urbana e controlada pelo Estado central, e foi também a tentativa falhada de criar uma gendarmaria nacional, militar.

“A reforma da polícia é analisada como um conjunto de processos políticos complexos, com múltiplas vozes e múltiplos interesses em jogo”, escreve o autor: “Da elite política liberal que ascendeu ao poder com a Regeneração e pugnou por reformas que ilustrassem o seu liberalismo, passando pelas resistências das elites locais periféricas nas décadas de 1870 e 1880, pelo impacto do discurso jornalístico nas instituições policiais, pela intervenção de elementos que, a partir do final do século XIX, fizeram carreira na polícia, e como juristas, médicos ou militares tentaram estender às instituições policiais as suas esferas de atuação”.

O sistema policial que existe hoje em Portugal desde 1974, depois da extinção da PIDE, resultou de vários debates, propostas e reformas que tiveram início ainda na década de 60 e se “cristalizaram” na década de 1930. 

A polícia chegou a ser vista como um trabalho seguro para quem queria migrar do campo para a cidade. Era visto como um trabalho temporário, uma forma de ganhar um salário que acaba por registar altas taxas de entradas e saídas. Ainda hoje continua a haver uma grande parte do efetivo vinda do interior do país “onde não há oferta de outro emprego”, constata o autor em conversa com o Observador. Ainda assim hoje a polícia é estável, é hierarquizada, permite a promoção. Embora Gonçalo Rocha Gonçalves não consiga entender porque existe hoje uma escola destinada a formar apenas oficiais, que depois estão acima hierarquicamente. “Não conheço nenhum modelo assim. A Metropolitan Police, ou mesmo a Scotland Yard, todos começam na base e vão subindo. Não faz sentido ter um oficial de polícia que nunca fez patrulha”, afirma.

Nem sempre as atribuições da polícia se limitaram à prevenção da criminalidade e à segurança

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Também as funções da polícia evoluíram. Inicialmente a prevenção e a repressão do crime era na verdade uma ínfima parte do trabalho da polícia, que tinha também a missão de introduzir valores de “civilidade burguesa entre as classes populares”, proibir que se andasse descalço, proibir a mendicidade ou a circulação escandalosa de prostitutas, que se cuspisse para o chão, que se circulasse com grandes volumes na rua, que se falasse de “forma rude com as senhoras”. As funções afunilaram, mas problemas houve que também ainda hoje permanecem em Portugal e não só, como as questões de abuso de poder (a entrevista ao autor aconteceu, por exemplo, dias depois da morte de Tyre Nichols, espancado até à morte por um grupo de polícias nos Estados Unidos).

Cinco polícias acusados nos EUA de homícidio de afro-americano em operação de trânsito

O líder da PIDE que foi presidir a Interpol

Foi em meados do século XIX que, segundo o autor, o policiamento se civilizou, o que implicou uma redução do recurso à violência, de abuso e de controlo discriminatório de grupos, como as minorias étnicas, as prostitutas ou os sem abrigo, e uma maior sujeição à lei, nomeadamente ao respeito pelos direitos humanos. “Os meios de comunicação, as rádios, os telefones e as próprias câmaras agora usadas pela polícia são também meios de controlo dos polícias”, admite o professor.

O livro “Fardados de Azul” divide-se, assim, em cinco capítulos que analisam as reformas e as reconfigurações policiais em diferentes momentos do Portugal contemporâneo. Os três primeiros durante a Monarquia Constitucional, o quarto durante a Primeira República e o quinto período de ascensão e consolidação do Estado Novo na década de 1930. Os dois últimos capítulos olham, menos a fundo, para a internacionalização da polícia, e a sua influência na polícia em Portugal, e para o trabalho policial nas colónias.

O professor de História ficou, aliás, surpreendido com uma descoberta que fez durante a sua investigação: percebeu que Agostinho Lourenço, depois de abandonar a chefia da PIDE em finais da década de 50, foi presidir a Interpol, a mais importante instituição de cooperação internacional do mundo. “Há anos que os nossos polícias são já referências e que ocupam cargos internacionais”, sublinha.

O livro "Fardados de Azul" foi editado pela Tinta da China

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