Rui Rio chegou mais cedo, quase sozinho, junto à porta 3 do Palácio de Cristal. Tinha a recebê-lo Salvador Malheiro e Isaura Morais, a quem justifica que chegou rápido demais porque “mora perto”. O séquito ainda não estava todo formado e alguns ‘vices’ aparecem apressados, quase esbaforidos, para endossar a comitiva. Mas o líder cessante não espera e vai para dentro, para o plateau das televisões. Foi à SIC e à RTP e não deixou, logo ali, de mandar farpas ao sucessor. Entrevistas despachadas, Rui Rio foi então encontrar-se com Luís Montenegro e acabariam por entrar — tudo previamente encenado e combinado — na sala do Congresso lado a lado para dar um sinal de unidade e evitar comparações no concurso do quem-é-o-mais-aplaudido. Sintonia de circunstância, mas as feridas estão lá e o sal foi-se cruzando nos discursos do líder-eleito e do líder-cessante.

1-0 para Rio. Não fará a Montenegro o que ele lhe fez

Não vou fazer o mesmo que me fizeram a mim”. (Rui Rio em entrevista à RTP)

Rui Rio ainda não estava no púlpito quando começou a ajustar contas com o novo líder. O presidente cessante do PSD até pode perdoar, mas não esquece o que Luís Montenegro lhe fez ao longo dos vários anos de mandato. Em entrevista à RTP, ainda antes do arranque dos trabalhos — e com o séquito a aguardá-lo uns quantos palmos abaixo — Rui Rio prometia que seria um líder recatado e que não faria aquilo que Montenegro e os seus apoiantes lhe fizeram nos últimos quatro anos e meio.

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A caminho do palco, Rui Rio ainda o diria de uma outra forma, em mais uma passagem em frente às câmaras de televisão: que Luís Montenegro teria menos contestação interna do que ele próprio enfrentou. Quando Rio o diz, não está a admitir que o novo líder é mais consensual do que ele próprio — está mais uma vez a dizer que os opositores internos (na esmagadora maioria, rioístas) vão respeitar mais a legitimidade do líder eleito.

1-1 para Montenegro. O erro não foi dos eleitores, foi de Rio

Algumas coisas têm de estar mal connosco e nós temos de ter a humildade de o reconhecer para o poder corrigir. Por isso, tenho de dizer uma coisa. Não me levem a mal, que não estou a mandar recados para ninguém. Não são os eleitores que estão errados, somos nós que não os estamos a conseguir convencer. Se o PSD não perceber isto, os eleitores não vão perceber o PSD.” (Luís Montenegro no seu discurso)

É a vez de Montenegro. Rui Rio colocou sempre a tónica na oposição interna que enfrentou, dizendo que os opositores (com os montenegristas à cabeça) não o ajudaram a ter a estabilidade necessária para enfrentar o PS. O presidente do PSD chegou a referi-lo quer na derrota nas europeias de 2019, quer na derrota das legislativas do mesmo ano. Já nas legislativas de 2022, Rio colocou o ónus nos portugueses, sugerindo que foram enganados pelo PS (uns até porque gostam de ser enganados). Ora, Montenegro sugere que Rio não teve a humildade democrática de reconhecer que não conseguiu passar a mensagem, mesmo que tivesse melhores ideias do que o PS.

2-1 para Rio. Os que não estiveram nos momentos difíceis

Compreenderão os presentes que faça também um agradecimento especial a todas e a todos aqueles que, das mais diversas formas, me apoiaram neste trajeto, dividindo comigo as vitórias, mas estando também presentes nos momentos mais difíceis em que outros optaram por não o fazer.” (Rui Rio no seu discurso)

O presidente do PSD já estava no seu último discurso enquanto líder quando voltou a lembrar aqueles que, no partido, não apoiaram a sua direção nos “momentos mais difíceis”. Havia nesta declaração um sentido de gratidão aos seus indefetíveis (como Salvador Malheiro, André Coelho Lima, José Silvano e outros, que o defenderam incondicionalmente), mas acima de tudo a intenção de lembrar os que viraram as costas à sua direção. Montenegro foi, claro, um deles.

2-2 para Montenegro. Propostas de Rio não amadureceram a tempo

Nós não perdemos as eleições por causa do programa que Rui Rio apresentou. O programa eleitoral era um bom programa eleitoral, não tivemos foi tempo de amadurecimento do seu produto para que as pessoas captassem o alcance desse documento. Isso é cada vez mais difícil. Precisa de tempo.” (Luís Montenegro no seu discurso)

O elogio de Montenegro ao programa eleitoral de Rio é também uma espécie de auto-elogio. Isto porque quem coordenou o programa eleitoral de Rui Rio foi Joaquim Miranda Sarmento, o potencial futuro líder parlamentar escolhido por Luís Montenegro. Além disso, o novo presidente dá a entender que as ideias do PSD eram boas, logo o que falhou não foi o conteúdo das mesmas, mas a forma como Rui Rio as apresentou ao país na pré-campanha e na campanha eleitoral. É certo que as eleições foram precipitadas pelo chumbo inesperado do Orçamento do Estado, mas Rio já estava há quatro anos no cargo. A esta ideia pode juntar-se ainda a crítica de Montenegro no discurso quando disse que o Conselho Estratégico Nacional criado por Rui Rio foi uma “ideia boa”, mas que tem problemas e “pode não estar a ser bem desenvolvida”.

3-2 para Rio. Coragem em vez de calculismo

O País tem de estar acima de tudo e os meus votos são para que o Luís Montenegro tenha êxito no serviço a Portugal que agora vai iniciar a partir da liderança da oposição. E Portugal bem precisa que a ele nos dediquemos com todas as nossas capacidades e toda a nossa coragem. Os problemas de ordem interna e externa que temos de enfrentar não se compadecem com falta de coragem nem com calculismos táticos que visem obediência a outros interesses que não o interesse nacional.” (Rui Rio no seu discurso)

O presidente cessante do PSD disse no discurso que fazia “votos” de que Luís Montenegro conseguisse “construir uma alternativa social-democrata ao Governo do PS” e que lhe desejava “êxito”, mas deixava uma exigência que era também um aviso. Rui Rio alertava que os problemas internos e externos (como a inflação ou a guerra na Ucrânia) exigem coragem. E, portanto, Luís Montenegro não se pode dar ao luxo de ter “calculismos táticos” ou deixar-se levar pela “obediência a outros interesses”. Ora, isto encaixa nas críticas que Rio fez no passado a Montenegro, colando-o a uma forma de fazer oposição em que o PSD polariza com o PS. Para Rio, é preciso ter coragem para reformar e isso significa, muitas vezes, negociar com o PS.

3-3 para Montenegro. O PSD tem de se afastar do PS

Foi também no dia 1 de julho de 1978 que Sá Carneiro, na reconciliação com o partido, desafiou o PSD a romper com qualquer confusão entre o PSD e o PS, desenvolvendo a alternativa política que havia de vingar um ano depois com a primeira maioria absoluta da AD. Parece-me um bom tónico para este congresso.” (Luís Montenegro no seu discurso)

Se Rio continuou a falar na coragem que um líder social-democrata tem de ter para estar ao lado do PS em nome do “interesse nacional”, Luís Montenegro insistiu que o PSD tem de se distanciar do PS e, se for preciso, polarizar essas diferenças. O novo presidente foi buscar Sá Carneiro e o sucesso da Aliança Democrática para defender que o partido tem de se distanciar dos socialistas. Ao longo dos anos ,os montenegristas acusaram Rui Rio de transformar o PSD num PS-B.

4-3 para Rio. O legado da tentativa de reformar

Não foi por mero acaso que propusemos a revisão da Constituição, a alteração do sistema eleitoral, a descentralização, a mencionada reforma da Justiça ou que procuramos alterar estruturalmente a vida interna do nosso próprio partido.” (Rui Rio no seu discurso)

Rui Rio não se limitou a avisar Montenegro que não pode ir atrás de calculismos — fez também questão de referir temas em que tentou desenvolver reformas no seu mandato (inclusivamente com o PS, como aconteceu na descentralização) que foram sempre criticadas pelos montenegristas. Refere mesmo a revisão da Constituição, relativamente à qual Rui Rio só não avançou porque Luís Montenegro (então candidato à liderança) não deu luz verde, ao contrário do adversário Jorge Moreira da Silva. Na altura, Rio fez questão de dizer que não avançava com essas propostas de revisão constitucional por recusa de Montenegro. Agora, no último discurso, fez questão de referir uma lista de reformas que foram criticadas ou travadas por montenegristas ou pelo próprio Montenegro.

4-4 para Montenegro. O fogo amigo e a militância

Não podemos agredir os que dão a cara por nós. Senão não geramos confiança em nós. Temos de facilitar as regras de adesão. Não podemos pedir uma administração pública sem burocracia, e cá dentro, não facilitarmos. Cá dentro temos de facilitar as regras.” (Luís Montenegro no seu discurso)

Luís Montenegro não disse apenas que os militantes do próprio partido não devem ser hostilizados, como acredita que Rui Rio fez com alguns dos seus apoiantes nas listas para as legislativas de 2019 e em outras ocasiões — também criticou aquela que é uma das bandeiras de Rio: a organização interna no partido. Rui Rio orgulha-se de ter promovido o pagamento de quotas e de ter criado um sistema (com grande responsabilidade do secretário-geral-adjunto Hugo Carneiro) que afasta militantes pouco empenhados ou que se inscrevam só como consequência de atos de cacicagem. Este rigor (mesmo que não tenha evitado o caciquismo) é uma marca de Rio desde os tempos em que foi secretário-geral nos anos 90. Apesar disso, Montenegro atacou essa ideia e deixou claro que quer tornar o sistema de adesão e manutenção de militantes mais simples.

Prolongamento. Unidos contra um adversário maior

No plano interno, é notório que Portugal se preparou mal para um cenário de adversidade, como o que estamos a atravessar.” (Rui Rio no seu discurso)

O Governo anda desnorteado e desfocado do essencial. Os portugueses quando vão ao talho, ao gás, abastecer o carro ou pagar a renda da casa estão a sentir que tudo isto está não é mais caro: é muito mais caro. E o Governo assobia para o ar.” (Luís Montenegro no seu discurso)

Rui Rio e Luís Montenegro alinham na mesma bitola quando criticam a falta de preparação do Governo para responder à inflação e à subida de preços provocada pela conjuntura internacional. O presidente cessante fala em impreparação e resposta tardia, o novo presidente fala em indiferença do Governo face aos problemas dos portugueses.

Não é contratar técnicos de marketing a peso de ouro para eles nos mandarem repetir o que o eleitor quer ouvir.” (Rui Rio no seu discurso)

António Costa disse uma vez que mesmo quando estavam na mesa da café os ministros deviam lembrar-se que são ministros. É válido para a mesa do café, mas não é válido para Diário da República.” (Luís Montenegro no seu discurso)

Rui Rio criticou o facto de António Costa privilegiar a propaganda às políticas. Já Luís Montenegro cavalgou a questão do novo aeroporto e o atrito entre o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, e o primeiro-ministro António Costa.

Isto é muito sério, mas é também muito estranho. Pedro Nuno Santos conseguiu pôr as pernas a tremer a alguém, mas não foi a nenhum credor, foi ao primeiro-ministro, porque não se percebe como continua ministro. A autoridade e a credibilidade do primeiro-ministro estão feridas de morte. Irremediavelmente.” (Luís Montenegro no seu discurso)

O novo líder do PSD cavalgou a divergência entre António Costa e Pedro Nuno Santos, colocando a principal responsabilidade no primeiro-ministro. Foram duras críticas, apesar de não fechar a porta a uma negociação com o PS sobre o assunto. No entanto, a este propósito, Montenegro aproveitou para dizer que respeita o legado de Rui Rio. Contra Costa há mais unidade, evidente numa frase em que o novo líder diz respeitar as decisões tomadas pelo anterior:

“O presidente do PSD vai mudar este fim-de-semana. Mas o PSD é o mesmo. E, até decisão em contrário, as decisões do dr. Rui Rio são as minhas decisões.” (Luís Montenegro no seu discurso)

Rio e Montenegro estão mais próximos do que há dois anos, mas estão longe de serem amigos políticos ou sequer pensarem da mesma foram. Ensaiaram uma unidade, mas as divergências de fundo continuam lá.