Houve quem como ele tivesse vestido a camisola de Sporting, Benfica e Futebol Clube do Porto. Mas ao contrário dele, nenhum outro futebolista em Portugal vestiu igualmente as de Boavista e Belenenses, tendo jogado por todos os campeões nacionais. Foi no final da adolescência (depois de se ter “pegado” com o treinador dos juniores) que Fernando Mendes chegou ao plantel principal de Alvalade, despertando pouco depois a cobiça do Barcelona. O então presidente Jorge Gonçalves pediu por ele, aos catalães, um milhão de contos e Fernando continuaria a vestir de verde-e-branco. Não tardaria a que trocasse Alvalade pela Luz e assume que o fez por dinheiro.
Teria dinheiro, três vezes mais do que o que recebia no Sporting. Mas nunca teria com Eriksson no Benfica a oportunidade de jogar, saindo da Luz (onde antes do treino caçava pombos a tiro de pressão de ar) pela porta pequena.
Usou doping após a saída do Benfica e arrepende-se, pois “destruiu-lhe” a vida pessoal. Andou pelo Estrela da Amadora, Boavista e Belenenses. Acabaria quase trintão nas Antas, resgatado no último instante por Pinto da Costa ao Rayo Vallecano. O fim deu-se no Vitória de Setúbal… com Jorge Jesus. Fernando Mendes garante: “Se o tivesse apanhado mais cedo tinha sido mil vezes melhor!” E sobre Jesus acrescenta: “Este ano, com o plantel que o Sporting tem, tem que ser campeão – não há desculpas. Mas o favorito é o Benfica…”
Faz o primeiro treino de captação no Sporting porque eles [Sporting] foram ver o Futre ao Montijo, não foi? E acabou por ser o pai do Paulo a convencer o Sporting a deixá-lo ir também a Alvalade.
É verdade. O pai do Paulinho conseguiu meter-me na captação. Jogávamos numa equipa que era o Cancela — o “Cancela” era uma loja de eletrodomésticos que havia na altura no Montijo. E havia aqueles torneios aqui pelo distrito de Setúbal. Essa equipa também tinha futebol de onze e foi fazer um torneio a Alvalade. Foi aí que viram o Futre. E depois começaram a segui-lo mais e começaram a vir aqui para estas bandas. O pai do Futre falou lá com o Aurélio [Pereira], também com o César Nascimento, e foi o Futre primeiro e eu fui no ano a seguir. Só que depois, como era muito pequenino na altura, não fiquei.
Quem era o treinador? Tomé?
Não, não. Apanhei o Tomé, sim, mas isso foi nos juniores. Quando cheguei ao Sporting era o Aurélio. Mas como era muito pequenino acabei por vir jogar para o Montijo outra vez, nos iniciados. E estive aqui um ano. Depois regressei ao Sporting onde estive desde o segundo ano de iniciados até aos seniores.
Diz sempre que o Montijo na altura era uma “aldeia”. Começou certamente como qualquer miúdo daquele tempo a jogar futebol na rua, certo?
Era muito isso. A grande maioria das vezes era isso: os torneios locais, os torneios de escola. O Montijo era pequenino e havia muito aquela rivalidade entre os bairros. Havia um espaço perto da casa da minha mãe, à entrada do Montijo, tinha aí um campo e fazia-se muito os torneios dos bairros. Era só brincadeira. Mas era a partir daí que alguns desses miúdos — esta terra sempre foi uma terra com muitos jogadores bons — eram chamados para ir fazer testes no Montijo, os tais treinos de captação para ver se a gente interessava ou não. Mas no Montijo acabei por só jogar um ano. Depois regressei ao Sporting.
Tem mais amigos dessa altura para além do Futre? Dos tempos de escola sei que não guarda nenhum.
Não, da escola não. Se calhar vejo muitos e já não os conheço — porque a minha vida foi completamente diferente da deles a partir de uma certa altura. E aqueles amigos que tens de infância começas a perder o rasto e a vida vai mudando e as pessoas vão tomando outros rumos, uns vão para o estrangeiro e raramente nos vemos. Mas, se os vir hoje em dia se calhar já não os conheço. E se calhar eles a mim conhecem mas têm vergonha de falar: “Olha, lá vai este gajo com a mania que é um campeão!”. E as coisas não são bem assim.
Até porque sempre foi muito ligado às suas raízes do Montijo — mesmo depois de chegar ao plantel principal do Sporting…
Sempre gostei muito da minha terrinha e da minha gente. Sempre tive aquele conceito de família. Mas, embora seja uma família muito grande, sempre fui mais próximo do meu pai e da minha mãe, foram aqueles dois que praticamente me acompanharam a vida inteira em termos de carreira. O meu pai ia-me levar a Lisboa, aos treinos. Quando chovia era uma carga de trabalhos para chegar ao barco e depois ao estádio de Alvalade, não era fácil e levava-me algumas três horas.
Naquela primeira captação, quando lhe disseram que não tinha jeito e era muito pequenino, isso motivou-o, ou abateu-o?
Não, não me abateu. Até porque passado um ano estava de volta. Quando comecei a jogar à bola, com nove/dez anos, não tinha pretensão de ser profissional. Jogava à bola porque gostava. O meu grande sonho na altura era ser forcado. E até tinha um certo jeitinho. Quanto à dispensa, é lógico que ficas sempre um bocado triste, é evidente, mas não foi coisa que me abalasse muito, porque passado poucos meses acabei por ir lá parar. E só comecei a ter consciência do que queria ser a partir desse ano, quando cheguei ao Sporting e comecei a ir à seleção de iniciados.
Estava a dizer-me que era difícil na altura chegar a Lisboa vindo do Montijo. Tinha que sair da escola a correr, não era? Toda a viagem era praticamente a correr.
Apanhava o barco das três e meia. Acabava a escola por volta das três — e a escola ainda era um bocado longe do barco. A minha vida era sair da escola a correr até apanhar o barco, depois chegava ao barco e demorava uma hora até Lisboa, depois ia do Terreiro do Paço a correr até ao Rossio para apanhar o metro, saía em Entrecampos e ia a correr até ao estádio.
Já chegava cansado ao treino…
Não! [Risos] Aquilo dava-me gozo. E depois à volta para casa era a mesma coisa. São coisas que hoje em dia não acontecem. Hoje o autocarro do clube até te vai buscar a casa.
Diz sempre que os miúdos de hoje estão “aburguesados”.
Isso é um facto. Hoje já há miúdos, com a mesma idade que eu tinha quando cheguei ao Sporting, que têm empresário. Às vezes até mais novos. Mas por um lado é compreensível; não havia o que há hoje. Por exemplo, não havia as chuteiras. O maior gozo que nós tínhamos na altura, a partir dos juvenis, era usar botas emprestadas pelos seniores.
As Copa Mundial…
Exatamente! Às vezes emprestavam, outras até davam. Ainda havia vezes que só usávamos as botas nos treinos para as “bater” para eles. E isso era um gozo tremendo. Hoje em dia as coisas não são assim. Às vezes vou com a minha esposa ao Forúm Montijo e vejo miúdos a mandar vir com os pais porque querem chuteiras de 400 euros. É a realidade das coisas. Toda a gente hoje em dia quer ser jogador de futebol, mas isto é tudo uma ilusão. Nem todos conseguem ser o Cristiano Ronaldo. Isso acontece uma vez de 10 em 10 anos. E as pessoas iludem-se. O que na minha opinião é prejudicial a esse miúdos é a facilidade com que conseguem as coisas. Há muito dinheiro a rolar logo na formação. No meu tempo os meus pais não tinham dinheiro para me comprar uma chuteiras. Quando era miúdo e jogava na minha rua as balizas eram as sarjetas.
E jogava certamente descalço, para não dar cabo dos ténis…
Exatamente! Para não dar cabo dos ténis, não os sujar e ouvir da minha mãe depois. Hoje em dia isso não existe. Onde quer que passes, não vês ninguém a jogar à bola na rua. Não vês. Tens academias, tens escolinhas de ex-jogadores, tens não-sei-o-quê.
E quando perdia o barco? O último era às dez da noite.
Isso era uma carga de trabalhos! E aconteceu-me algumas vezes ter que dormir no cais. Como dizes, o último barco era às dez, às vezes o treino acabava mais tarde ou perdia o metro, bastava falhar dois ou três minutos e as coisas já se complicavam. E dormi três, quatro, cinco vezes no cais. Até às cinco da manhã. Mas às vezes também tive a felicidade de, quando isso acontecia, o meu pai me ir buscar — porque ele trabalhava por turnos numa fábrica e quando estava no turno de dia vinha-me buscar. O problema é quando havia nevoeiro e a ponte fechava. Tinhas que ficar à espera do barco, ponto. Aprendi muito, cresci muito com isto.
Mas chegou a ser assaltado uma vez, não foi?
Foi, foi. Mas isso foi logo na primeira vez que fui para Alvalade. Em Entrecampos, roubaram-me um fio de ouro com um dentinho. Antigamente quando caía o primeiro dente às crianças os pais faziam um fio em ouro com o dente pendurado. Cheguei a Lisboa e roubaram-mo logo.
Nos juniores do Sporting tem um história engraçada — agora sim o treinador era o Tomé. Desentendeu-se com ele durante um jogo e chegou mesmo a dizer-lhe que não voltaria a jogar pelo Sporting…
E com isso acabei por ser chamado para os seniores. [Risos]
Então? O treinador dos seniores era o John Toshack, certo?
Era o Toshack, era. Aquilo foi curioso. Não fazia mal a ninguém, mas sempre tive um feitio rebelde e o que tinha a dizer dizia na cara das pessoas, não mandava dizer por ninguém. E isso às vezes não é agradável. Mas atenção que fiquei com uma amizade e um carinho especial pelo Tomé. Isto começou tudo num jogo em Setúbal, pelos juniores. Houve um desentendimento com ele a meio da primeira parte. Ao intervalo, quando íamos a descer para o túnel, tive um desaguisado com o Tomé, despi a camisola no túnel, pisei-a e disse: “Acabou-se! Não jogo mais à bola!” E ele também me disse que a partir daquele dia não me queria mais.
Vivia no lar do jogador, que ficava no estádio. Foi castigado? Expulso do lar?
Não me expulsaram. Aquilo foi no domingo de manhã e não joguei mais naquele jogo, claro. Acabou o jogo, voltámos para Lisboa e na segunda-feira fui chamado aos diretores da formação e disseram-me que me iam pôr um processo e estaria impedido de treinar durante algum tempo. Vivia lá no lar, que ficava por baixo da bancada, e como não me deixavam treinar, ao fim de três ou quatro dias resolvi ir assistir a um treino dos seniores sentado na bancada. Na altura, nesse treino, aleija-se o Romeu, o lateral esquerdo. O preparador físico era o Srecko Radisic e ele estava com alguns jogadores nas bancadas, onde tinha a mania de os meter a subir e a descer degraus. Perguntou-me o que é que estava ali a fazer — ele nem sabia quem eu era. Entretanto o Pedro Gomes, o adjunto do Toschak, olhou para mim e perguntou-me se podia ir treinar com eles — para ocupar o lugar do Romeu. “Mas eu não posso, estou castigado…”, respondi ao Pedro Gomes. “Podes sim senhor”, respondeu-me ele. E treinei. Ainda me lembro daqueles equipamentos da Le Coq Sportif — nós nos juniores não tínhamos aqueles equipamentos –, que eu adorava. Fui treinar com aquele equipamento, com aquelas bolas fantásticas, e fiquei maravilhado. Continuei a treinar com eles nos três ou quatro dias a seguir, passado uma semana assinei contrato profissional. Faltavam três jogos para o fim da época e fui convocado no penúltimo jogo — um Benfica-Sporting em que fomos ganhar ao estádio da Luz –, mas não joguei. Só fiz a minha estreia nos seniores no último jogo com o Vitória de Setúbal. Não deixa de ser curioso: continuava castigado e joguei com o clube contra o qual arranjei aquela confusão toda. [Risos]
Na altura tinha dezassete anos. E vai treinar com autênticos “monstros”: Oliveira, Damas, Manuel Fernandes, Jordão. Isso tremeu ou quê?
Tremeu, tremeu. Eles tratavam-te com respeito. O que era diferente de hoje era o respeito que nós tínhamos por eles. Não tem nada a ver com o que os miúdos têm hoje em dia. Sempre fui um adepto fervoroso do Sporting, sempre tive um paixão pelo clube. E aqueles eram os meus ídolos. Estar a jogar no clube do coração com os ídolos era algo indescritível.
Eles respeitavam-no mas também “apertavam” consigo. Conte-me lá a história do Damas no aeroporto…
[Risos] Isso foi numa digressão do Sporting aos Estados Unidos. Tive que carregar as malas do Vítor Damas. A gente saía do aeroporto e cada um levava a sua a mala. E o Damas pergunta-me: “Oh menino, onde é que tu vais tão leve?! Leva lá a minha malinha…” Mas tu não fazias aquilo contrariado, fazias com um gozo tremendo. A partir de certa altura deixei de viver no centro de estágio e passei a viver no Montijo em casa dos meus pais. Na altura ganhava vinte contos. Muito? Não era nada. Não tinha dinheiro para comprar um carro, por exemplo. Então era o Manuel Fernandes, que vivia em Sarilhos Pequenos, quem me vinha buscar ao Montijo e quem todos os dias me dava boleia para o treino. Fui-me habituando a estar com aquelas pessoas, a ganhar confiança.
Mas voltando ao Damas. Não era só fora de campo que ele apertava consigo. Certo jogo deu-lhe um calduço e ficou com o poste marcado na cara, não foi?
Não foi um calduço; foi uma chapada! Nunca mais me esqueço. Foi o Julio Salinas — grande ponta-de-lança! — que marcou o golo. Aquilo foi na Taça UEFA. Há um cruzamento do lado direito, o Damas ia agarrar a bola, grita, e eu mando-a de cabeça para canto. Ele não me disse nada. Só que do canto dá golo. Como lateral, estava com as mãos encostadas ao poste. Ele mandou-me um chapadão e fiquei com a verga marcada na cara. Mas acabámos por passar essa eliminatória contra o Bilbao. São coisas que não se esquecem e te fazem crescer.
No Sporting pega de estaca com o Manuel José…
Foi logo no primeiro ano a seguir ao Toschak. Foi um risco para ele. Tinha vindo do Portimonense e era um treinador muito novo, 35 ou 36 anos. Aproveitei. A lesão do Romeu prolongou-se, ele foi operado a uma lombalgia e aproveitei essa fase. Peguei de estaca.
O jogo do 7-1 ainda é o melhor de que tem memória com a camisola do Sporting. Foi nesse ano, com o Manuel José.
Não é dos melhores jogos individualmente, mas é daqueles que mais me marcou. Não me esqueço, nem ninguém se vai esquecer. São resultados raros, ainda para mais entre os maiores rivais de sempre.
Ainda se lembra de quem é que lhe disse isto: “És um bocadinho coxo”?
Foi quem? O [Keith] Burkinshaw?
Foi…
Uish! Isso foi o pior treinador que tive na minha vida! Com ele raramente jogava.
Mas embirrou consigo, foi?
Epá, foi. Mas não faço a mínima ideia porquê. Ele preferia o Vítor Santos e eu tinha que respeitar. Às vezes também jogava o Portela, que era lateral direito e o Burkinshaw metia à esquerda. Mas esse treinador fez-me coisas terríveis. Tinha vindo do Tottenham ou lá o que era, mas era terrível. E ele é que era coxo — o tipo tinha uma perna maior do que a outra. [Risos] Ainda me lembro de uma das maiores guerras que tive com esse homem: fomos jogar à Áustria, na Taça UEFA. E ficámos num hotel que parecia um jazigo! Uma coisa assombrosa. Ficávamos sempre dois em cada quarto. E o que é que o cabrão me fez? Meteu-me sozinho num quarto e aquela porcaria, ao contrário dos outros, nem janelas tinha. Eu para ir à casa de banho tinha que passar com as pernas por cima da cama. Aquilo parecia a barraca de um cão! A partir daí é que fiquei riscado. E queria ir-me embora. Quando a equipa jogava bem eu era sempre titular. Com ele, e quando a equipa era mais fraca do que as anteriores, era suplente. Mas ele também esteve lá pouco tempo e não deixou saudades.
E volta a jogar quando ele sai. Mais tarde, em 1988, até tem a possibilidade de ir para o Barcelona. Só não foi porque o Jorge Gonçalves oediu um preço alto, é isso?
Um milhão!
Isso foi quase o que o Barça pagou pelo Maradona ao Boca Juniors.
Pois foi, pois foi. Mas a proposta existiu mesmo. Tudo começou num jogo em Camp Nou para a Taça UEFA. Perdemos 1-0. Fazia vinte anos no dia em que jogámos a segunda mão em Alvalade. E fiz um grande jogo. O lateral esquerdo do Barcelona era o Julio Alberto. Tinha uma grande admiração por ele. Na altura dei os dois golos do Sporting. Acabámos eliminados, porque o Barcelona fez o 2-1 a dois minutos do fim, golo do Roberto. E quando acabou esse jogo, nós íamos no túnel e o Julio Alberto diz-me que quer falar comigo. “Para o ano tu és jogador do Barcelona”, diz-me ele. Eu nem liguei muito àquilo. Mas sei que houve contactos entre os clubes, esteve mesmo para se concretizar.
Não saiu para o Barcelona, sairia para o Benfica. Soube do interesse deles pela Leonor Pinhão, não foi?
Sou muito amigo da Leonor. Ainda hoje sou. Não me lembro onde é que isto aconteceu, acho que foi em casa da Leonor e do João Botelho, no Bairro Alto. Ela era muito amiga dos diretores do Benfica — e não vejo mal nenhum nisso. E acabou por haver essa reunião na altura com o Jorge Brito — que era vice-presidente; o presidente do Benfica era o João Santos –, foi ele que tratou de tudo, e as coisas ficaram acordadas.
Mas ficou sempre com o contrato com o Benfica na mão. Ou seja: caso o Jorge Gonçalves — que era o presidente do Sporting — vencesse as eleições seguintes contra o Sousa Cintra, continuaria no Sporting; se perdesse, sairia para o Benfica.
Sim, sim. Se o Gonçalves vencesse eu nunca sairia. E não recebia há oito meses! Não estava fácil. Mas sou uma pessoa de palavra: dei a minha palavra ao Jorge Gonçalves e ia cumprir. Mas arrependo-me de ter saído. Se há coisa de que me arrependo foi de ter trocado o Sporting pelo Benfica. E não só porque as coisas não correram no Benfica como estava à espera.
Sempre assumiu que assinou pelo Benfica por dinheiro.
Sim.
Mas a verdade é que o Benfica também só o contratou para fazer “pirraça” ao Sporting — é o Fernando quem o diz. O Eusébio, por exemplo, nem sabia muito bem quem você era quando foi treinar pela primeira vez ao Benfica, não é?
Ele chamou-me Fernandes Mendes. “Até que enfim que o Benfica tem um grande extremo-esquerdo!”, disse-me ele. Sempre fui lateral… O Eusébio era muito isto. Mas foi uma honra imensa ter convivido com ele.
Mas neste caso o dinheiro trouxe-lhe felicidade?
Não.
Desde logo não lhe trouxe felicidade com gente do Sporting. Chegou a receber chamadas em casa da sua mãe com ameaças. Era o próprio Sousa Cintra que ligava? Em tempos disse que era…
Ligavam para os meus pais, sim — mas nunca me disseram que era o Sousa Cintra. Até bombas diziam que punham no meu carro. Na altura o Jorge Gonçalves tinha-me oferecido um carro.
Tinha-lhe prometido um Renault se assinasse contrato e deu-lho — embora não tenha ficado no Sporting.
Deu-me, deu-me. Mas foi logo no início da temporada. Era um Renault 21 Turbo ABS.
Porque tinha “estourado” um parecido pouco antes…
Tinha estourado, tinha. E ele deu-me esse carro porque o Sporting tinha um acordo com a Sacavenauto. Mas passado uma semana de ter assinado pelo Benfica acabei por vender o carro.
Quanto é que foi ganhar para o Benfica?
Dois mil e quinhentos contos. No Sporting ganhava oitocentos. Mas é curioso: o meu ordenado foi durante algum tempo de quatrocentos contos e quando fui aumentado para oitocentos foi quando deixei de receber. Ou seja, nunca recebi esse ordenado — recebi depois, em tribunal. Fui ganhar três vezes mais. Mas não me trouxe felicidade nenhuma.
Escolheu ir para o Benfica, mas sabia que estava lá o Álvaro Magalhães para lateral esquerdo. Pensava mesmo que jogaria?
Sabia que estava lá o Álvaro, mas nunca me passou pela cabeça que não jogaria.
Com o Sven Göran Eriksson, ou jogava na bancada ou no banco. Era certinho…
Não tinha hipótese, não tinha. Tinha consciência que não tinha hipótese nenhuma com ele.
Mas dava-se bem com ele?
O Eriksson como treinador era fantástico; como pessoa não prestava para nada.
É campeão em 1990/91 sem fazer um único jogo.
É verdade. Não fui contratado por ele. Fui contratado antes de ele chegar. Os jogadores dele eram o o Schwarz, o Thern, o Magnusson, aqueles que ele escolheu. Ele a mim não me escolheu. O Benfica contratou-me mais para fazer pirraça ao Sporting. Para o meu lugar o Benfica tinha o Álvaro, o Fonseca, o Veloso… Isto chegou ao ponto de nós irmos a uma final da Taça dos Campeões Europeus com o Milão e jogou o Samuel, que era central, a lateral esquerdo. O Veloso tinha visto um amarelo naquele célebre jogo com o Marselha e ficou de fora. E eu também fiquei de fora. Tive consciência logo de início que não jogaria. Logo no dia da apresentação da equipa aos sócios nós fizemos um treino. Só três jogadores é que não foram utilizados: eu, o Ademir e o Bento. Vi logo que não ia ser fácil. E até pedi para sair logo — estava lá há coisa de uma semana.
No Sporting tinha a porta fechada com o então presidente Sousa Cintra?
Tinha e não tinha. Quando o Pacheco e o Paulo Sousa foram para o Sporting, falou-se que o Silvino e eu também iríamos. Claro que houve pessoas no Sporting que nunca me perdoaram. Segundo me disseram, houve uma espécie de petição, enviaram cartas para o clube, não queriam que assinasse. E acabei por não regressar.
Com o Eriksson jogava pouco. Então, para se entreter, chegava mais cedo ao treino e ia caçar pombos para o relvado da Luz. Verdade?
Era com ele, era. Na altura punham adubo na relva, logo de manhã, e por isso havia para ali pássaros a dar com um pau. E eu normalmente levava a minha pressão de ar e andava lá aos tiros.
E ainda deu umas petiscadas valentes depois do treino.
Deu, deu. Deu. [Risos]
Mas não era só contra os pombos que disparava.
Não. Também atirava à porta do balneário. Tu abrias a porta do nosso balneário e mesmo em frente tinhas uma porta onde dizia “TREINADOR PRINCIPAL”. Então o Neno abria-me a porta, eu estava na outra ponta do balneário e aquilo era só chumbadas! Mas já foi naquela fase de, resumindo e concluindo, eu estar-me a cagar mesmo para aquilo. Sabia que mais dia menos ia rebentar.
Quando o Eriksson sai e o Toni chega a treinador principal, isso coincide com a chegada dos russos: Mostovoi, Iuran e Kulkov. É verdade que eles recebiam prostitutas no hotel, durante os estágios?
Recebiam gajas, recebiam.
Mas o Toni e o Jesualdo Ferreira, que na altura era adjunto, bem tentavam travá-los. Em vão…
Essa história é gira. Ainda me lembro da primeira vez que assisti a isso. Eles eram meio malucos mas eram bons gajos, bons gajos. Estávamos no hotel Alfa, onde estagiávamos sempre antes dos jogos em casa. Estávamos nos quartos e aquilo ouvia-se um barulho do caraças. Então o que é que se passou? Os russos mandavam vir as prostitutas — mas aquilo não era uma nem duas nem três; era uma catrefada, que só faltava chegarem numa carrinha de caixa aberta. Nunca tinha visto uma coisa assim.
Mas não era pela entrada principal do hotel que elas chegavam — porque essa entrada tinha lá o Toni e o Jesualdo a controlar tudo.
Não era, não. O Toni e o Jesualdo ficavam cá em baixo, no hall, e às vezes até adormeciam ali, a ver se elas apareciam. E ainda os apanharam duas ou três vezes.
Nunca alinhou nisso. Ou alinhou?
Nunca, nunca. Isso acontecia sobretudo com jogadores estrangeiros — sobretudo do leste –, os portugueses não eram muito disso. Mas os russos, tirando isso, eram pessoas fantásticas.
O Benfica acaba por emprestar o Fernando ao Boavista. Volta depois ao Benfica e volta a não jogar. Até que vai para o Estrela da Amadora. Porque é que diz que o Estrela fez o “negócio da vida do clube” quando o contratou?
Porque vou eu e mais quatro jogadores para o Estrela e vem o Abel Xavier para o Benfica. E o Estrela ainda recebeu cento e cinquenta mil contos. Nada contra o Abel, mas foi o negócio da vida do Estrela. Fui eu, o Zé Carlos, o Paulinho e o Mário Jorge.
Vai para o Estrela, assina, e quando lá chega sabe que o Boavista — onde até já tinha jogado — o queria. O que é que o Major Valentim Loureiro lhe disse para fazer? O seu treinador no Estrela era o João Alves.
Foi um choque ir para o Estrela. Estava habituado a jogar no Sporting e no Benfica e de um momento para o outro vejo-me a jogar com cem pessoas nas bancadas na Reboleira. É um choque. E ainda por cima o João Alves queria meter-me a extremo e eu não me adaptei lá muito bem à posição. Mas atenção: o João Alves foi dos melhores treinadores que apanhei na vida e ainda hoje tenho um carinho tremendo por ele.
Mas conte lá a história do Major…
Ah, isso! Ele mandou-me arranjar confusão com o João Alves para que ele me mandasse embora. Era a técnica da altura.
E arranjou.
E arranjei. Até dei entrevistas a chamar-lhe atrasado mental e tudo.
Mas ele não foi na cantiga.
“Escusas de andar com merdas. Vais morrer aqui. O que estás a fazer agora já eu fiz muito antes de ti, faz o que quiseres porque daqui não vais sair”, disse-me ele. Mas acabei por sair no final da época. E o Boavista ainda pagou por mim. Mas saí a mal com o João Alves. Mas pronto, vou para o Boavista, tínhamos uma equipa excelente — Sanchez, Timofte, Nuno Gomes –, uma equipa que podia ser campeã, mas que andou quase até ao fim para não descer de divisão. Tinha assinado por três anos. As coisas não me correram lá muito bem, acaba essa época e o Manuel José meteu-me na lista de dispensas. Se havia treinador que eu nunca esperei que me fizesse isso era o Manuel José.
Mas foi a melhor coisa que lhe aconteceu.
É verdade. Fui parar ao Belenenses, fiz uma época muito boa e vou parar ao Porto na época seguinte.
Antes da ida para o Porto ainda queria falar aqui da sua “negociata” com o Major. O ordenado foi discutido à mesa e apontado num guardanapo.
É curioso. Ele é terrível, não se esquece de nada — tem cá uma carola! Aponta tudo em guardanapos, nunca tinha visto uma coisa assim na minha vida. A negociação foi em casa dele, ao jantar. Ele pergunta-me quanto é que quero receber, digo-lhe mil e duzentos contos e ele aponta o valor num guardanapo e mete-o no bolso. Armado em espertalhão, apresento-me no Bessa quinze dias depois para assinar e digo-lhe que não foi aquele valor que acordámos, que tinha sido mais. E não é que ele me mostra o guardanapo? Com a assinatura dos dois. Mas é outra pessoa excelente que apanhei no futebol.
Contava-me que depois do Belenenses vai para o Porto. Mas a história não é tão simples: antes do Porto ainda assina com o Rayo Vallecano.
Assinei. E o ordenado era bom — ia ganhar alguns seis mil contos. O que é que atrasou o negócio: eu queria ir, davam-me casa… mas eu também queria um carro. E eles dizem-me que não. E aquilo atrasou uns dias a negociação — uma negociação que foi feita na praça de touros de Vila Franca de Xira. A guerra era por causa do carro. Entretanto, chegámos a um entendimento, assino tudo mas fico com o contrato na mão. Isto num dia. No dia a seguir eu ia apanhar um avião para o Porto para ir receber o troféu de melhor lateral esquerdo do ano. A entrega era no Casino de Espinho. O treinador do Porto era o Bobby Robson. O Emerson é vendido, o Robson quer o Paulinho Santos — que também fazia a lateral esquerda — no meio-campo, no lugar do Emerson, e só sobrava o Rui Jorge. O Porto precisava de mais um lateral. Mas eu não sabia de nada disto, tinha tudo tratado para ir para Espanha, até já tinha ido ver casa e tudo. Quando chego ao Aeroporto Francisco Sá Carneiro estava um diretor do Porto, o Jorge Gomes, à minha espera. Diz-me ele assim: “Ó Fernando, se não te importas temos que ir ao estádio das Antas, estão o João Alves e o presidente do Belenenses à espera, e queremos falar contigo”.
Mas conversar porquê? E porquê nas Antas?
O problema era: o Belenenses ia pedir cento e vinte mil contos por mim ao Rayo. E na altura o presidente da Liga de Clubes era o Pinto da Costa. Os espanhóis queriam pagar em três vezes e o Belenenses foi pedir um conselho ao Pinto da Costa sobre esse pagamento. Eu chego às Antas, os jornalistas estavam à porta — isto nas férias; não fazia sentido –, estranhei, o Jorge Gomes pára o carro ao pé do pavilhão e eu entro pelo campo de treinos, para fugir aos jornalistas na entrada. Mal entro na porta está o Pinto da Costa à minha espera. Ele, o presidente do Belenenses e o João Alves. “O que é que se passa aqui?”, pensei eu. Nunca tinha falado com o Pinto da Costa na minha vida. E pergunta-me ele: “Vais jogar para onde?” “Para o Rayo Vallecano…” “Raio quê?! Para ires jogar para o Rayo Vallecano mais valia ires jogar para o Chaves, que é quase em Espanha!…”, responde-me ele. “Se eu te der o mesmo dinheiro, vens para o Porto?” Respondi-lhe que sim. Passado um minuto vem o Reinaldo Teles com um contrato na mão, tudo preenchido. Tinha o outro contrato na mão e pergunto-lhe: “Ó presidente, e agora o que é que eu faço com este? Assinei com o Rayo…” Ele agarrou naquilo e rasgou. Fui com ele para o Casino de Espinho, onde ia receber o prémio, ele apresenta-me ao Robson e diz-lhe: “Tens aqui o teu lateral esquerdo!” Não sei como é que eles resolveram aquilo com os espanhóis, mas sei que deu uma grande confusão.
Mas a sua ida para o Porto também coincide com a perda do seu pai. Foi pouco depois de assinar que ele morreu.
Foi das piores coisas que me aconteceu na vida. O meu pai nunca me viu com a camisola do Porto. Ele era ainda mais ferrenho do que eu pelo Sporting. E foi das primeiras pessoas a quem liguei a dizer que tinha assinado contrato. E ele: “Outra vez para o Boavista?!” “Não, pai, é mesmo Porto, Porto…” “Tu não faças isso!” Mas ficou contente, claro. No primeiro dia de treino liguei para ele. Nunca mais me esqueço do que me disse: “Como é que são esses gajos?” Três horas depois ele faleceu, um dia antes de irmos estagiar para a Escócia.
Foi tricampeão no Porto. Porque é que o Porto vencia mais do que os outros naquela altura?
O Porto estava muito à frente. Nunca nos faltou nada. O presidente dizia-nos sempre: “Eu pago-vos a horas. Não vos exijo que ganhem; exijo-vos que morram dentro de campo por este clube!” Eu passei por muitos clubes e em nenhum tive o acompanhamento que no Porto me davam. Se a minha filha tinha algum problema, ligasses a que hora ligasses, alguém ia a tua casa com um médico. Só tinhas que te concentrar em treinar e jogar. E havia mais uma coisa: quem tem uma equipa como a que o Porto tinha — mais a estrutura de que falei — tem o sucesso garantido a 99,9%. Era muito à frente dos outros.
Quando sai do Porto vai para o Belenenses e, depois, para o Setúbal, então na II Divisão. E apanha o Jorge Jesus lá. Era trintão. Porque é que diz que se tivesse conhecido o Jesus mais cedo tinha sido um jogador “mil vezes” melhor?
Ele foi um dos treinadores mais chatos que apanhei. Todos os treinadores têm uma metodologia muito semelhante. Quando vencem é mais pela inspiração dos jogadores do que pelo que treinam. Eu tinha 35 anos quando apanhei o Jesus. E comecei a fazer treinos que nunca tinha feito na minha vida. Apanhei o Jesus com 35 anos e fiz 17 golos! A jogar a lateral na II Divisão! É verdade que apanhei treinadores excelentes, mas em termos de visão, de paixão, de ideias, ele foi o melhor. Mas sim, se o tenho apanhado mais cedo, tinha estado pouco tempo no futebol português.
A sua carreia profissional acaba no Setúbal. Quando é que percebeu…
Que está a chegar o dia?
Sim.
Quando saí do Porto a minha ideia era terminar a carreira. Lá me chatearam a cabeça no Belenenses e continuei. Não vou dizer que fui contrariado, mas sabia que não estava no meu melhor. Quando saí do Belenenses voltei a pensar que ia terminar. E apareceu o Setúbal. As coisas foram andando, mas sempre com a consciência de que, mais ano menos ano, ia acabar a minha carreira.
Ainda treinou o Olímpico do Montijo. Queria ficar ligado ao futebol? Como treinador, dirigente.
Não. Não, não. Queria desligar-me completamente.
Para forcado já não tinha idade…
[Risos] Para forcado já não. Mas não queria continuar no futebol. A vida de futebolista é boa, claro que é boa, mas também é desgastante. Ganhas muitas coisas mas perdes outras. Queria afastar-me. E apareceu essa oportunidade de treinar no Montijo, lá me chatearam a cabeça e acabei por estar lá. Mas não tinha paciência para ser treinador, não tinha.
Sente que o futebol lhe deu mais a si ou que o Fernando deu mais ao futebol?
Acho que está ela por ela: joguei até aos 37 anos e dei tudo o que tinha para dar. Ninguém tem nada a dizer de mal de mim.
Mas alguma vez foi prejudicado por causa da sua frontalidade?
Isso fui. Quando não gostava, não gostava. Mas também vivi coisas más no futebol, nunca o neguei.
Está a falar do doping? Assumiu em tempos o consumo.
Não o fiz em todos os clubes. Mas consumi. Na altura experimentei para ver no que é que aquilo dava. E a verdade é que dá. Tens uma sensação tremenda.
Há um jogo nas competições europeias em que o Fernando apanha um dos melhores avançados do mundo [Jürgen Klinsmann] na altura e o “meteu no bolso”.
Ganhava-lhe as bolas todas de cabeça! [Risos] No futebol é tudo muito bonito: carros, casas, viagens. Mas também há coisas más. E quando estás em certos e determinados grupos, tens que aceitar certas coisas.
Diz que os jogadores à procura de doping pareciam “galinhas à procura do milho”.
Não sei se aquilo foi só no meu ano ou se já era prática corrente. Mas aquilo era um ambiente muito fechado e as coisas funcionavam assim. Quando disse isto alguns treinadores ficaram muito chateados comigo. Mas ilibei sempre os treinadores disso. Muitas vezes os treinadores nem sabiam. Aliás, não sabiam. Mas na altura era raro haver controlo, por isso é que nunca fui apanhado.
Mas apanhou um valente susto no Setúbal.
Mas isso não era doping. Aquilo era uma bebida que nós bebíamos antes do jogo e ao intervalo. Era legal. Aquela lata que o Rui Miguel bebeu estava contaminada com uma coisa qualquer. Fui muitas vezes ao controlo depois de beber aquilo e nunca fui apanhado. Mas daquela vez fui eu e o Rui Miguel. E quando saiu a notícia de que um jogador do Setúbal tinha sido apanhado, ou era eu ou era o Rui. E apanhei um susto, porque fui controlado naquele jogo: um Varzim-Setúbal. Isto foi no meu último ano no futebol profissional. Pensei: só me faltava esta. A minha sorte foi que a palestra ao intervalo demorou mais, o Jesus demorou mais, e acabei por não beber. Acabou por ser — infelizmente e sem culpa nenhuma — o Rui Miguel.
Diz sempre que doping lhe estragou a vida pessoal. Porquê?
Ficava com um feitio terrível quando o efeito passava. O cheiro com que ficas no corpo também é terrível. E acabas por ter a consciência de que aquilo te prejudica, acabas por não ter paciência para nada nem ninguém. Mas atenção: isto aconteceu-me quatro ou cinco vezes ao longo da carreira. Não foi prática corrente — até porque sempre fui um dos jogadores mais controlados.
Uma das vezes foi na seleção, não foi?
Isso foi antes de um Europeu. O de 1996 em Inglaterra. Foi no ano em que fui para o FC Porto. Mas aí fui eu que pedi — era a hipótese que tinha para ir à fase final e pedi aquilo antes do jogo e ao intervalo. Fiz um jogo fantástico; ganhámos à Grécia 1-0. O penálti foi sobre mim.
Aquilo que deu como pai foi menor do que aquilo que recebeu como filho. A frase é sua. Por ter sido futebolista sente que foi um pai para a Sofia para a Inês — menos presente do que desejava?
É um dos problemas de ser futebolista, é. Quando tens a felicidade de jogar em clubes de topo cá, tens essa felicidade mas perdes outras coisas. Perdes a convivência e o crescimento dos teus filhos. A minha filha mais velha nasceu em 1992, tinha eu ido emprestado para o Boavista. Nessa altura raramente estava em casa. Tinhas o campeonato, a taça, as competições europeias, viagens. Não tinhas praticamente tempo nenhum. A tua vida pessoal fica para segundo plano. Sabes que os teus filhos estão bem e não lhes falta nada, mas perdes a convivência. E por muito que queiras recuperar algumas coisas, o tempo passa, eles crescem. Não vi a minha filha a dar os primeiros passos, não a ensinei a andar de bicicleta. Mas é assim: há sempre um preço.
Quando acabou a carreira sentiu que podia ter tido uma independência financeira maior do que aquela que acabou por ter? A verdade é que depois do abandono acabou por passar tempos complicados.
Nunca ganhei muito dinheiro no futebol. E passei mal. Tive uma fase muito complicada. Felizmente as coisas melhoraram. Se tivesse poupado alguma coisa — e ainda poupei –, não me chegava para estar o resto da vida a viver à sombra da bananeira. Mas quando acabou, as coisas complicaram-se.
Quem é que o apoiou?
A sorte da minha vida foi a minha mãe. Vi-me de um momento para o outro com a minha mãe a dar-me cinco euros por dia da reforma dela para sobreviver. “A que ponto é que eu cheguei?!”, pensei eu. Não foi fácil. E tudo por causa de erros que eu cometi, más decisões. Nunca empurro as culpas para os outros; fui eu que os cometi. Durante dois, três anos foi a minha mãe que me aguentou. Nunca esperei chegar àquele ponto. Mas há muitos jogadores que passaram pelo mesmo, ainda há, mas muitos tiveram vergonha de pedir ajuda. Eu nunca pedi nada a ninguém, mas percebi que tinha que me desenrascar. Muita gente, muitos amigos se afastaram de mim. Toda a gente te conhece e é teu amigo quando estás no topo, mas afastam-se de ti quando estás mal. Senti isso. Não precisava que ninguém me desse dinheiro; precisava que me dissessem para ter calma e pensar um bocadinho antes de fazer as coisas. Houve aí uma fase em que entrei por caminhos que não aconselho a ninguém.
Estamos a falar do quê?
Prefiro não falar disso, é complicado.
Hoje está bem. Aos cinquenta anos, quase cinquenta e um, pensava ser comentador desportivo como és?
Nunca. Nunca, nunca. Esta oportunidade foi fantástica. E ganhei outra vez notoriedade: as pessoas falam comigo na rua. Toda a gente tem direito a falar de futebol na televisão. Não sou contra os programas de comentário desportivo em que os comentadores nunca deram um pontapé numa bola — médicos, advogados. Mas eu acho que a linguagem do futebol é uma linguagem simples. Tu não percebes rigorosamente nada do que alguns comentadores dizem. Eles não percebem nada daquilo. Às vezes até só dizem o que lhes mandam, estás a perceber?
Às vezes exalta-se em direto — falo concretamente da sua relação com o André Ventura.
Tive grandes guerras, tive.
Mas acaba o programa e fica tudo bem?
Às vezes não! Se há coisa que nunca fui é mentiroso. Penso pela minha cabeça e não sou comandado por ninguém. Então, irrita-me quem o faz, serem umas marionetas.
Está a falar da “cartilha”. Isso existe ou não?
Então não é notório?! Repara: eu tenho tipos à minha frente a receber SMS. Isso é notório. E manipula a opinião pública. Se tens quatro ou cinco gajos a dizer a mesma coisa em quatro ou cinco canais, estás a manipular a opinião pública. É a estratégia do Benfica. E aceito isso. Mas as pessoas não são parvas — seja aquilo assumido pelo clube ou não. E o Sporting nisso é diferente.
Está a dizer-me que não recebe informações de dentro do Sporting?
Peço algumas informações, é verdade, mas não existe nenhuma cartilha. Falo com as pessoas, falo com o Nuno Saraiva e sou muito amigo dele há muitos anos, mas não há guião nenhum, rigorosamente nenhum, ninguém me diz o que tenho que dizer. Normalmente o que há é informações do clube, desmentidos de notícias falsas e que são plantadas por outros clubes, mas era incapaz por exemplo de receber um tostão do Sporting para fazer o que faço. Quem o faz torna-se um boneco nas mãos de quem lhe paga. Tu tens que ter a tua opinião. E se for preciso dar porrada num jogador do Sporting que não tem categoria para vestir a camisola do clube, dou. Não tenho que agradar a ninguém.
Acha que estas polémicas recentes que envolvem o Benfica vão dar em alguma coisa? Falo concretamente das denúncias feitas pelo Porto.
Quem anda no futebol há tantos anos como eu sabe que tudo aquilo aconteceu. É evidente. Se acho que isto vai dar alguma coisa em termos de justiça? Não, não vai dar nada. Se acho que vai mudar alguma coisa? Acho. Pelo menos a opinião das pessoas, que agora se questionam e antes não. Ter a arbitragem na mão faz a diferença. Joguei nos três grandes e joguei em clubes como o Estrela ou o Setúbal; o tratamento por parte da arbitragem não é o mesmo, é completamente diferente. Nesses clubes é protegido. E dentro dos três grandes quem vai ganhando vai tendo o domínio das coisas. Por isso é que eu tenho cinquenta anos e só vi o Sporting ser campeão três vezes. Quem ganha vai conseguindo manobrar. É a realidade do futebol português. Mas felizmente as coisas vão-se sabendo. E as pessoas envolvidas estão controladas agora. Isso vai mudar.
E o vídeoárbitro, é a favor ou contra?
A favor, claramente. Isto não vai resolver tudo. Agora: aquelas coisas mais grosseiras, golos em fora-de-jogo, com a mão, as agressões, isso claramente vai resolver. Por isso é que sentes a resistência de alguns clubes e de algumas pessoas.
Mas essas pessoas muitas vezes queixam-se do tempo de paragem que o recurso ao vídeoárbitro exige. Não é prejudicial ao jogo?
Nada! Eu estou-me a borrifar se o jogo dura mais meia hora ou não. Isto tem é que ser limpo. Se isto é necessário? Claro que é. Se vai haver resistência? Claro que vai.
O campeonato arranca este domingo. Quem é que é favorito?
Benfica. Porque é o campeão e tem a tal estrutura montada. Mas atenção ao Porto! O Sérgio Conceição não tem nada a ver com o Nuno Espírito Santo. Uma coisa é chegar lá e dizer: “Temos que jogar à Porto”. Isso é dizer; outra coisa é dizer que tens que “jogar à Porto” mas realmente metê-los lá dentro a jogar à Porto. E o Sérgio está a fazer isso. Quanto ao Sporting, com os reforços que teve — Coentrão, Mathieu, o Bruno Fernandos que é um craque –, e caso não saia ninguém, tem a obrigação de ser campeão, não há desculpas.