O que faz do Super-Homem um Super-Homem? Essa é a pergunta que levou Ian Bonhôte e Peter Ettedgui a realizar um filme sobre Christopher Reeve. Ainda que o tema assim descrito seja uma das grandes armadilhas deste Super/Homem: A História de Christopher Reeve, documentário que se estreou nos cinemas há umas semanas e, agora, está disponível na Max.
Porquê armadilha? Ora bem, os realizadores partem da ideia de que Reeve foi um super-herói (aliás, um Super-Homem) no cinema e voltou a sê-lo no mundo real, quando ficou tetraplégico em meados dos anos 1990 e procurou soluções — para não usar a palavra cura – que o permitissem voltar a andar, ou pelo menos ter uma vida um pouco mais normal. A armadilha é esta: o filme não é bem sobre o ator, mas sobre a sua família, a segunda mulher, Dana Reeve, e os três filhos. Estes, aliás, foram indispensáveis para a existência do documentário, tal como é explicado por Ian Bonhôte nesta conversa com o Observador. De certa forma – e é preciso ver o documentário para o perceber – havia mais do que um super herói na família.
Christopher Reeve, Super-Homem no cinema, herói no mundo real
Bonhôte e Peter Ettedgui já tinham trabalhado a memória de Lee Alexander McQueen em McQueen (2018) e a importância dos Jogos Paraolímpicos em Rising Phoenix (2020). Super/Homem documenta a vida de alguém carismático do passado recente e fá-lo com um pesar consciente dos danos causados: do acidente e da morte do ator. De como ambos os momentos afetaram a família e os amigos — sobretudo Robin Williams, melhor amigo de Reeve, com quem tinha uma ligação muito forte.
Quem era o verdadeiro Super-Homem? Christopher Reeve foi o primeiro ator super-herói com força no imaginário popular. Para muitos, só há a memória dele com aquela capa vermelha e, posteriormente, numa cadeira de rodas. Este filme não tem argumentos contra isso, mas é uma exposição de como há um superpoder qualquer no ato de acreditar.
[o trailer de “Super/Man”:]
Enquanto esperava pelo começo desta conversa, recebi uma notificação com o trailer do novo filme do Super-Homem. Mas a verdade é que a interpretação de Christopher Reeve continua a ser muito especial. Porquê?
Ele foi o primeiro a encarnar o Super-Homem, isso tem importância, ainda que seja sobretudo matemática. Depois, há algo que também referirmos no filme, que foi terem feito acreditar de que ele conseguia mesmo voar. Por último, há o charme dele e a capacidade de conseguir ser o Super-Homem e o Clark Kent ao mesmo tempo. Ele carregava aquela masculinidade do Super-Homem e aquele ar frágil, meio palhacito, do Kent. Ele soube combinar bem essa dualidade, essas duas personagens. Junta-se isso ao feito técnico e há ali qualquer coisa que não é replicável.
Não é o vosso primeiro documentário biográfico sobre uma grande figura da cultura popular da segunda metade do século XX. O que vos levou a Christopher Reeve?
Abordaram-nos… a ideia surgiu do Daniel Kilroy, foi ele que falou com a família primeiro. Falou com o Matthew [Reeve, um dos filhos de Christopher Reeve], que confessou que já tinha sido abordado no passado. A Alexandra [filha de Reeve] também já tinha sido abordada e, tal como o irmão, tinha dito sempre não. Mas quando o Kilroy os abordou, eles estavam mais ou menos prontos para falar, estavam a vender a casa que pertencia ao Christopher e à Dana [segunda mulher de Reeve e mãe de Will, o terceiro filho do ator]. E tinham este um imenso arquivo familiar, falavam entre eles sobre o que deveriam fazer com tudo aquilo, porque não sabiam bem como tratar aquela informação. Quando o Daniel os abordou, eles sentiram-se confiantes e foi nessa altura que entrámos.
Estiveram com os três antes de começarem o fazer o filme?
Começámos a falar com eles por Zoom, como estamos a fazer agora, e depois fomos ter com eles, a Londres e Nova Iorque. Houve algo de especial em estar fisicamente com os três, são boas pessoas, muito inteligentes, muito bonitos. E são uma combinação do pai, a Alexandra tem a parte ativista, o Will é entusiasta e sabe entreter, até por causa da sua profissão [é jornalista do programa americano Good Morning America] e o Matthew é realizador. Sentimos que ao entrevistá-los apanhámos alguma da essência do Christopher. E depois vimos o arquivo, muito, muito rico. Honestamente, sentimos que se o filme não fosse bom, seria por culpa nossa, que não teríamos capacidade e teríamos desperdiçado material de enorme qualidade. E depois aprofundámos a história do Christopher, todo o ativismo dele após o acidente e a sua busca para uma cura para as pessoas com paralisia e como ele venceu o medo e, pelo que percebemos, a vergonha de ser tetraplégico. Tornou-se na voz de uma comunidade com pouca representação. Foi após o acidente que Christoper Reeve se tornou de facto no Super-Homem. Tornou-se a voz e a esperança de muita gente.
Mas também houve controvérsia em volta do otimismo dele face a uma cura, foi visto por muitos como protagonista de falsas esperanças. Isso abordada no filme. Tinham esses momentos presentes?
Muito do que trabalhámos no documentário foi um misto de descoberta e de redescoberta. Sabíamos algumas coisas sobre ele, mas havia muito que descobrimos. Isto acontece entre os meados dos 1990 e a primeira década dos 2000s, é claro que no meio de tudo isso nos vamos esquecendo de algumas coisas ou vamos baralhando informação. Mas a controvérsia… parece-me um elemento muito positivo, porque permite que se fale da condição dessas pessoas. Muita gente anda à volta do problema, mas raramente há uma conversa séria. E parece-me que ele queria que houvesse uma conversa séria, queria que fosse um tópico sobre o qual se falasse… porque se fizesse parte da conversa, talvez existisse mais investimento na descoberta de tratamentos. Gosto desse lado dele mais controverso. Pode não ser bom para toda a gente, mas é bom para que se fale do assunto. Para manter a discussão acesa.
Mencionou há pouco a disponibilidade dos filhos. Eles estão sempre muito emotivos, tudo continua muito presente. Como foram as entrevistas?
É normal tentarmos enterrar as memórias, sobretudo as más. Afastarmo-nos delas, mas, em simultâneo, também há as boas memórias. E embora algumas daquelas memórias sejam negras, por causa do acidente do pai, porque ele nunca mais os pode abraçar, estar presente como pai fisicamente ativo. O Christopher substituiu a ausência física com um esforço em estar mais presente de outra forma. Um homem que decidiu continuar a lutar e a encontrar formas para substituir o que perdeu e o que outros perderam. E isso é incrível e eles sentiram muito isso, esse instinto lutador. Há aquele momento em que o Matthew diz que tem agora dois filhos, com dois e quatro anos, e que o irmão mais novo dele, o Will, tinha três anos quando o pai perdeu quase todas as suas competências físicas. Essa imagem é algo que não desaparece. Podes continuar com a tua vida, mas nunca te esqueces, a dor está lá. E acho que foi muito generoso da parte deles partilhar isso connosco, deixarem-se ser filmados e colocar isso num filme. No início, eles disseram-nos que iam dar-nos todo o arquivo, que podíamos entrevistá-los e que responderiam a todas as perguntas, que aceitariam falar sobre tudo. Eles avisaram-nos que iam ficar emotivos… mesmo fazendo as entrevistas separadamente. Acho que sem essa entrega deles o filme não teria sido possível.
A dado momento percebemos que o filme não é sobre o Christopher Reeve, mas sobre uma família. Quando perceberam que seria essa a direção?
Durante o processo de montagem. Embora, por causa das entrevistas aos filhos, tenhamos percebido que eles teriam um papel mais importante do que imaginávamos — aliás, do que até eles imaginavam. Lembro-me de falar com eles depois de verem o filme e de terem ficado impressionados por estarem tão presentes, porque pensavam que só iam aparecer por uns dois ou três minutos. O Matthew até se sentiu algo incomodado, porque achava que tinha realçado demasiado aspetos negativos do pai e da família. Mas a verdade é que ele é tão simples e honesto a falar dessas coisas, que torna esses momentos perfeitos, essenciais. Porque há uma vulnerabilidade nesse ato. A Dana poderia estar no título do filme, mas a verdade é que ela nunca foi tão famosa como o Christopher. Mas isso explica-se pelo sacrifício dela pela família. Quando vemos um filme sobre alguém que interpreta o Super-Homem e se torna uma das maiores estrelas do planeta, por maior que seja o fascínio, não há muito de relacionável, há uma distância, há uma barreira. Mas quando se fala da tragédia, do desafio, dos filhos, dos sacrifícios de uma mulher e mãe que tem de resolver quase tudo sozinha, isso comunica, isso fica com as pessoas. O filme é sobre família, amor e legado.
Em vários momentos fala da relação de Christopher Reeve com Robin Williams. O que tornava aquela amizade tão especial?
Creio que é um cenário clássico dos opostos se atraem. Eles eram muito diferentes, o Chris era um tipo sólido, cheio de confiança, bonito. O Robin era o bobo, o tipo engraçado. Eles estavam muito presentes, não só um para o outro, como para os amigos. Como a Susan Sarandon diz, o Robin era um grande amigo, para quem precisasse de algo, ele e a mulher apareciam logo. O Christopher e o Robin conheceram-se quando ainda não eram estrelas. Foram amigos na universidade, estavam juntos no início de tudo. Provavelmente comeram muito pão e massa juntos enquanto contavam os tostões. E isso é daquelas coisas que cria uma amizade muito forte. Eles falavam como se fossem irmãos. O Robin era família. E depois da morte do Christopher, nunca mais foi o mesmo.