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Na capa do inquérito 7255/19.5T9LSB há uma nota escrita à mão: “Investigação prioritária“. Este alerta ali deixado não revela em que momento foi escrito. Mas antes de o processo ganhar um caráter de urgência, houve um interregno de cerca de três meses entre o momento em que uma carta com o logótipo do Parlamento Europeu chegou aos gabinetes da Procuradora-Geral da República (PGR) e do diretor da Polícia Judiciária (PJ), até ser encaminhada para o DIAP de Lisboa para serem investigadas as suspeitas levantadas. Que suspeitas eram essas? Um inspetor-chefe da PJ teria, alegadamente, relações com os representantes da Doyen, a empresa ligada ao mundo do futebol que teria sido pirateada por, como mais tarde se viria a saber, Rui Pinto. Segundo a carta, foram as relações entre ambos que fizeram com que fosse dado “seguimento” à queixa da empresa contra o hacker, que acabou por dar origem ao processo Football Leaks, agora em julgamento.
A carta, escrita pela então eurodeputada Ana Gomes, acabou por dar origem a um inquérito para investigar suspeitas dos crimes de tráfico de influência, corrupção e abuso de poder. A investigação durou um ano e cinco meses: durante todo esse tempo, foram reunidos cinco documentos — sendo dois deles a acusação e a decisão instrutória do processo que tem Rui Pinto como principal arguido e que, pelo seu tamanho, representam a larga maioria das folhas que constam no primeiro e único volume da investigação aberta à parte. A Procuradora titular do inquérito do Football Leaks foi contactada “pessoalmente” para informar se havia alguma suspeita relativamente a Rogério Bravo, mas entre essas folhas não fica claro que informação forneceu.
O inspetor visado, Rogério Bravo, só foi ouvido um ano e três meses após a queixa, já o julgamento de Rui Pinto decorria. Depois dele, o Ministério Público ouviu outro inspetor da PJ, José Amador — que, na altura, já tinha prestado depoimento no julgamento do caso Football Leaks, onde revelou que a Polícia Judiciária teria pedido ajuda à Doyen numa determinada fase do processo. Mas na inquirição do MP ninguém lhe fez perguntas sobre isto. No dia a seguir ao MP ouvir José Amador, arquivou o inquérito. No despacho de arquivamento, concluiu que Rogério Bravo não tentou “manobrar” investigação.
Mas o inquérito 7255/19.5T9LSB esteve pouco tempo na gaveta. Um mês depois de arquivado, novas revelações feitas ao longo do julgamento levaram o tribunal a extrair uma certidão para o reabrir — o inspetor teria instruído a Doyen a fazer um requerimento à PGR e sugerido um jornalista para denunciar o caso. Ainda assim, o Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa (DIAP) demorou três meses a fazê-lo — ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com outra certidão extraída pelo tribunal. Agora, o caso já tem um arguido: Rogério Bravo, como ele próprio revelou ao ser ouvido como testemunha no julgamento do caso Football Leaks.
O Observador consultou este inquérito ainda antes de voltar a ser aberto. O que foi investigado e a que conclusões chegou o Ministério Público?
“Quando visitei Rui Pinto na prisão tive oportunidade de o questionar sobre o inspetor”. A queixa de Ana Gomes na origem do inquérito
2 de abril de 2019. O criador do Football Leaks estava preso preventivamente há uma semana e meia quando recebeu uma visita de Ana Gomes. A então eurodeputada estava intrigada com a “referência” que, em várias declarações a jornalistas, Rui Pinto fazia “a um inspetor da PJ que teria instruído os representantes da Doyen a apresentar a participação acusatória”. E, nesse encontro na prisão, teve a “oportunidade” de lhe perguntar “o que sabia acerca do referido inspetor e da relação” com esta empresa ligada ao futebol. “Soube então tratar-se do inspetor Rogério Bravo — inspetor-chefe da secção de combate ao cibercrime da PJ“, conta a socialista na carta que depois a escrever a pedir que fosse aberta uma investigação e que consta no processo.
Ana Gomes não se ficou por ali. “Por outras vias”, que não revela quais, diz ter tido “conhecimento” de que, “desde 2015, o inspetor Rogério Bravo procurava alguém no MP que agarrasse na participação da Doyen e lhe desse seguimento”. “Por diversas vezes foi dissuadido, por a defesa dos interesses da Doyen não se afigurar motivo de relevância ou prioridade, até que finalmente alguém se prestou a acionar o processo”, detalha a antiga eurodeputada. A empresa ligada ao futebol queixava-se de ter sido alvo de um ataque informático e de os documentos roubados estarem a ser divulgados na página Football Leaks — só em março de 2016 é que se viria a descobrir que Rui Pinto era o criador deste site.
À carta, a então eurodeputada anexava duas notícias — ambas sobre declarações do autor, ainda anónimo, do Football Leaks. A primeira, de dezembro de 2015, da agência Lusa, noticiava uma publicação feita no site onde a Doyen era acusada “de utilizar a influência do inspetor-chefe da Polícia Judiciária Rogério Bravo na Procuradoria-Geral da República”. A outra, do jornal Record, de fevereiro de 2016, fazia referência a uma entrevista dada por quem estava por detrás do Football Leaks à revista alemã 11 Freund: “As nossas fontes encontraram provas sobre isso. Soubemos de encontros secretos entre membros da polícia portuguesa e aquela agência [Doyen], em Lisboa. Rogério Bravo, inspetor-chefe da polícia é grande amigo de Nélio Lucas, pressionou a Procuradoria Geral da República para obter pormenores sobre a investigação. Na verdade, a Doyen está a usar a investigação da polícia para chegar até nós e contrataram uma agência de investigação [Marclay Associates] para fazer o trabalho sujo, com o objetivo de travar isto a qualquer preço”.
Foi em junho de 2019 que Ana Gomes escreveu a carta a relatar as desconfianças de “infiltração no aparelho policial e judicial por interesses ligados ao submundo da indústria do futebol”. Nessa altura, Rui Pinto estava a três meses de ser acusado de mais de uma centena de crimes: entre eles, o ataque informático à Doyen e a tentativa de extorsão — segundo a investigação, o alegado hacker pediu entre meio milhão e um milhão de euros para não divulgar mais documentos da empresa. Os mesmos três meses passaram entre o momento em que Ana Gomes enviou a carta e o momento em que foi reencaminhada para a diretora do DIAP de Lisboa, Fernanda Pêgo. Segundo o processo consultado pelo Observador, só a 17 de setembro de 2019 é que o chefe de gabinete da PGR remeteu a carta de Ana Gomes ao DIAP — dois dias antes de o Ministério Público acusar Rui Pinto.
Procuradora titular do inquérito de Rui Pinto foi contactada “pessoalmente”, mas não fica claro que informação forneceu
Entre o dia em que a carta de Ana Gomes chegou ao DIAP e o dia em que o processo foi arquivado passou um ano e cinco meses — a investigação coincidiu com a chegada do caso Rui Pinto aos tribunais, tendo durante esse período decorrido a fase de instrução e o julgamento. O que foi feito durante esse tempo?
Logo a 1 de outubro de 2019, o processo ficou em segredo de justiça. Nesse dia, o Procurador da República Valter Alves assinou um despacho onde reconhecia que o facto de a alegada atuação do inspetor estar “fortemente mediatizada”, aliado à circunstância de Rogério Bravo ser coordenador na Unidade Nacional de Combate Cibercriminalidade, tornava inevitável o segredo de justiça. “Uma vez que os factos terão sido praticados por um inspetor, relacionado com a investigação criminal, importa assegurar que ninguém tem conhecimento da presente investigação”, escrevia o Procurador, adiantando que a investigação ficaria “em causa” se o inspetor visado tivesse “conhecimento prévio” do andamento do processo. Já nesse despacho, o magistrado admitia que os factos denunciados na carta eram “suscetíveis de consubstanciar crime de tráfico de influência, denegação de justiça e prevaricação e abuso de poder”.
O primeiro passo, tido como “essencial, foi contactar “pessoalmente” a Procuradora de República titular do inquérito que tinha Rui Pinto como arguido para lhe perguntar se havia nesse processo “qualquer facto” que se “pudesse enquadrar” naquilo que tinha sido denunciado pela antiga candidata a Presidente da República, Ana Gomes. “A colega comunicou que no início da próxima semana daria resposta”, lê-se num despacho de 14 de outubro assinado pelo Procurador Jorge Carvalho. E assim foi: na semana seguinte foi “transmitida informação” pela Procuradora, embora não fique claro que informação foi essa. No despacho de 24 de outubro, o Procurador Jorge Carvalho confirma que lhe foi “transmitida informação” pela “colega”, mas nada mais adianta.
Inspetor visado só foi ouvido um ano e três meses após a queixa. Rogério Bravo afastou ligações ao futebol e disse que nem ia a jogos
No final de janeiro do ano seguinte — já a fase de instrução de Rui Pinto tinha começado há mais de um mês — o MP questionou a PJ sobre se existia alguma participação disciplinar contra o inspetor Rogério Bravo a envolver a Doyen e Rui Pinto. A resposta veio dias depois e era negativa: o inspetor-chefe não tinha sido visado em qualquer processo de inquérito ou disciplinar até então.
Depois de recebida esta informação da PJ, passaram sete meses sem avanços no caso — pelo menos que tenham ficado documentados no processo consultado pelo Observador. Durante esse período, a fase de instrução de Rui Pinto continuou, terminou com o alegado a hacker a ser levado a julgamento por 90 dos 147 de que estava acusado. O julgamento começou e só depois disso surge uma nova diligência.
A 17 de setembro, 13 dias depois do arranque do julgamento de Rui Pinto, o inspetor-chefe Rogério Bravo foi ouvido pelo Ministério Público, na qualidade de testemunha — à data já tinha passado um ano e três meses desde que Ana Gomes tinha enviado a carta. Inquirido pela procuradora Isabel Santos, o inspetor-chefe garantiu que “nunca” tinha ido “qualquer relação pessoal ou profissional com a Doyen” e que só tinha conhecido essa “entidade” no dia em que apresentaram queixa na PJ, acompanhados por advogados. Aliás, realçou não ter ligação ao futebol, não gostar deste desporto e nem sequer ir a jogos.
Rogério Bravo especificou ainda que os “encontros e comunicações” que teve com o representante da Doyen, Nélio Lucas, foram no âmbito da investigação e que as diligências realizadas, “ainda que sugeridas pela PJ”, foram sempre “decididas ou confirmadas pelas magistradas titulares”. E garantiu que “não visou proteger qualquer interesse” da Doyen, mas apenas descobrir o responsável pelo ataque informático — que suspeitavam ser o mesmo de todos os ataques informáticos que tinham vindo a decorrer a outras entidades com o Sporting ou a PGR.
MP ouviu o inspetor José Amador depois de ouvido no julgamento de Rui Pinto — e de ter revelado que a PJ pediu ajuda à Doyen
Cerca de dois meses depois, o inspetor José Amador foi ouvido: tinha participado na investigação do caso Football Leaks e Rogério Amador era chefe da sua brigada. Inquirido também pela procuradora Isabel Santos, disse não saber se Rogério Bravo conhecia ou tinha “qualquer tipo de relacionamento com os representantes da Doyen”. Mas garantiu que os contactos de que se apercebeu “foram em contexto profissional e no âmbito do processo”. Adiantou ainda que “nunca se apercebeu que o inspetor-chefe tivesse qualquer tipo de animosidade contra o arguido”.
Quando José Amador foi ouvido pelo MP, já tinha, dois meses antes, sido também ouvido como testemunha de acusação no julgamento de Rui Pinto, logo na quarta sessão. Aos juízes, revelou que a PJ teria enviado a Pedro Henriques, advogado ligado à Doyen, um documento relacionado com a investigação ao caso Football Leaks. Tratava-se de um ofício em que as autoridades portuguesas pediam a colaboração da Rússia para descobrir a origem dos emails enviados por Rui Pinto, cujo endereço de IP estava alojado na Yandex, uma empresa sediada na Rússia. Na altura, Rui Pinto identificava-se como Artem Lobuzov e era através dessa troca de emails que terá tentado extorquir.
Segundo explicou o inspetor, o objetivo era o advogado “agilizar a chegada [do ofício] aos russos”. José Amador logo explicou que não foi ele que fez “a entrega de nada”. “Essa situação é melhor ser delegada para a minha chefia imediata: Rogério Bravo”, afirmou.
José Amador foi ouvido pelo MP dois meses depois deste depoimento, no qual fez esta revelação. Ainda assim, de acordo com o auto de inquirição que consta no processo consultado pelo Observador, o inspetor não foi questionado sobre este ofício.
Inquérito foi arquivado um dia depois de ouvido inspetor José Amador. MP concluiu que Rogério Bravo não tentou “manobrar” investigação
O inspetor José Amador foi ouvido no dia 4 de novembro de 2020. E o inquérito foi arquivado no dia seguinte, 5 de novembro — ia o julgamento de Rui Pinto na sessão número 22 e encontrava-se a ser ouvido precisamente Nélio Lucas, ex-administrador da Doyen.
Segundo é descrito no despacho de arquivamento, além da inquirição a estas duas testemunhas, os investigadores deste inquérito reuniram cinco documentos, sendo dois deles a acusação de Rui Pinto e a decisão instrutória que o levou a julgamento por 90 crimes. Além destes, foram juntos ao processo a queixa da Doyen que deu origem à investigação ao site Football Leaks; um requerimento feito também pela Doyen à antiga Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal; e um despacho de junho de 2018 que na qual a investigação do Football Leaks era entregue à equipa criada meses antes pela PGR para investigação de crimes ligados ao futebol. Face a isto, o MP considerou que não era “possível realizar quaisquer outras diligências investigatórias de efeito útil”.
“Isto não é normal”. Inspetor da PJ instruiu advogado a enviar requerimento sobre Rui Pinto à PGR
Em jeito de conclusão, o MP entendeu que a investigação do caso Football Leaks correu “sempre os seus termos normais” e que não há indícios de que “os órgãos de policial criminal, em particular Rogério Bravo, tenham de algum modo forjado ou manipulado provas recolhidas” ou que tenha “tentado ‘influenciar’ ou ‘manobrar’ a investigação” que teve origem na queixa da Doyen. “Não se logrou apurar a existência de qualquer relacionamento de amizade ou outro interesse entre Rogério Bravo e os representantes da Doyen que o levasse a tentar beneficiá-los”, afirma o MP no despacho de arquivamento.
A Procuradora Maria Isabel Santos que o assina lembra que todas as diligências foram realizadas “sob controlo do MP”, com “isenção e objetividade” e “todos os contactos” entre Rogério Bravo e os representantes da Doyen “ocorreram no quadro da investigação”, sem que tenham “extrapolado os limites da lei”. “De igual modo, não se logrou apurar da parte de Rogério Bravo qualquer motivo que o levasse a querer infligir a Rui Pinto qualquer mal“, aponta ainda. “Pelo exposto, não tendo sido recolhidos indícios suficientes da verificação do crime de abuso de poder indiciado ou outros determino o arquivamento dos autos”, concluiu.
Um mês depois, o tribunal que está a julgar Rui Pinto entendeu que inquérito (acabado de arquivar) devia ser reaberto
Cerca de um mês depois de arquivado, uma reviravolta no julgamento de Rui Pinto fazia antever que este inquérito estaria pouco tempo na gaveta. Primeiro, Pedro Henriques, um advogado que prestava assessoria jurídica ao ex-administrador da Doyen, Nélio Lucas, revelou em tribunal que Rogério Bravo lhe tinha enviado um email onde pedia que fizesse um requerimento à então Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, relacionado com o processo Football Leaks. Nesse email, o inspetor-chefe enviava mesmo uma espécie de rascunho com uma proposta de requerimento, onde alertava Marques Vidal para uma “escalada criminosa” e que o Rui Pinto não só continuava a divulgar informação sobre a Doyen no site Football Leaks, como agora tinha feito uma tentativa de extorsão.
“Isto não é normal”. Inspetor da PJ instruiu advogado a enviar requerimento sobre Rui Pinto à PGR
Depois, na sessão seguinte, o mesmo advogado revelou que o inspetor-chefe Rogério Bravo teria indicado o nome de um jornalista à Doyen para que a empresa pudesse expor a sua versão dos factos. E o tribunal acabou então por extrair a certidão para que a investigação fosse novamente aberta. Depois de uma espera de três meses o DIAP de Lisboa reabriu o inquérito e as suspeitas das ligações da Doyen ao inspetor da PJ estão novamente a ser investigadas, com novos dados.