Ainda antes de começar a responder às perguntas do advogado de Aníbal Pinto, mal se tinha sentado, o inspetor-chefe Rogério Bravo pediu ao tribunal para fazer uma declaração. “Enquanto testemunha está aqui para responder a perguntas, não para fazer declarações”, avisou a juiz presidente, acabando porém por deixar que fizesse a tal declaração. Aí, Rogério Bravo acabaria por revelar que é arguido num processo onde está a ser novamente investigado por suspeitas de ter colaborado com a Doyen no âmbito da investigação ao caso Football Leaks, e “havendo a possibilidade de colocar perguntas sobre o processo”, Rogério Bravo avisou:

Acho que não devo responder porque sou arguido. Sou arguido num processo, testemunha noutro“, acabando assim por revelar em tribunal que já foi constituído arguido.

A juiz presidente, Margarida Alves, explicou que Rogério Bravo que deverá responder às perguntas que entender e que pode sempre “recusar” responder “a matéria que o pode autoincriminar“. É que o Ministério Público reabriu a investigação à alegada colaboração do inspetor-chefe da Polícia Judiciária (PJ) Rogério Bravo com a Doyen — a empresa que Rui Pinto terá tentado extorquir — depois de os juízes que estão a julgar o alegado hacker terem extraído uma certidão para investigar novas suspeitas. Estas supostas ligações do inspetor-chefe da PJ à Doyen já tinham sido investigadas num inquérito que teve origem numa queixa apresentada pela ex-eurodeputada Ana Gomes, mas que acabou arquivado — e que foi agora aberto.

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Rogério Bravo confirmou ser o autor de todos os emails que levantaram as suspeitas que levaram os juízes a extrair certidão: aquele em que pedia ajuda à Doyen para descobrir, junto das autoridades russas, origem dos emails de Rui Pinto; outro onde sugeria à Doyen um requerimento que devia enviar à PGR; outro ainda onde indicava à Doyen um jornalista que pudesse contar a sua versão dos factos: “Faço-o muitas vezes para empresas do país”.

“Se tem conhecimentos no países de leste, trata de obter a informação mais rapidamente”. Inspetor-chefe enviou ofício à Doyen para descobrir origem dos emails de Rui Pinto

Uma das suspeitas que recaem sobre o inspetor-chefe diz respeito a um documento relacionado com a investigação ao caso Football Leaks enviado por Rogério Bravo a Pedro Henriques, advogado ligado à Doyen, numa altura em que procuravam descobrir quem era Rui Pinto: tratava-se de um ofício em que as autoridades portuguesas pediam a colaboração da Rússia para descobrir a origem dos emails enviados por Rui Pinto — na altura, identificando-se como Artem Lobuzov — e nos quais pedia dinheiro em troca da não divulgação de documentos da Doyen que tinha em sua posse.

Ouvido em tribunal, Rogério Bravo admitiu que, “sabendo que dos países de leste nunca vem uma resposta atempada“, enviou esse documento ao advogado ligado à Doyen: “Se tem conhecimentos no países de leste, trata de obter a informação mais rapidamente, que nós vamos sempre tentar obter pelos mecanismos formais”.

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Inspetor-chefe não achou que era “nada demais” sugerir à Doyen requerimento que devia enviar à PGR

Outras das suspeitas diz respeito a um suposto email que Rogério Bravo terá enviado também a Pedro Henriques a sugerir que fizesse à então Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, relacionado com o processo Football Leaks. Nesse email, o inspetor-chefe enviou mesmo uma espécie de rascunho com uma proposta de requerimento, onde alertava Marques Vidal para uma “escalada criminosa” e que o Rui Pinto não só continuava a divulgar informação sobre a Doyen no site Football Leaks, como agora tinha feito uma tentativa de extorsão.

Rogério Bravo confirmou que enviou este email, no sentido de ajudar uma vítima que estava a ser alvo de extorsão, num crime que considera “grave”. “Não achei que era nada de mais. Foi o que me pareceu melhor“, afirmou.

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email foi enviado do endereço de correio eletrónico pessoal do inspetor-chefe em novembro de 2015, numa altura em que a identidade de Rui Pinto ainda não era conhecida. Nele, Rogério Bravo trata Pedro Henriques por “tu” e pede-lhe que informe o “amigo N” — que será Nélio Lucas, ex-administrador da Doyen — acerca da sugestão de requerimento, mas “limpando” a “origem” do email, “para prevenir incidentes”. Questionado sobre o que queria dizer com limpar a “origem” do email, negou responder: “Se é sobre esses emails, não vou responder”.

Questionado, o inspetor-chefe disse que tratar as pessoas por “tu” é “um problema” que tem. “Tenho o defeito de tratar as pessoas por tu. Um exemplo: Luís Neves. Tenho o defeito de o tratar por tu. É o meu diretor nacional”, disse, lamentando que há uma “pressa muito grade a tirar conclusões” por parte da defesa.

Rogério Bravo admite que indicou jornalista à Doyen e que o faz “muitas vezes para empresas do país”

Rogério Bravo confirmou também que indicou à Doyen um jornalista que pudesse expor a versão da empresa dos factos. “A assistente [Doyen] precisava de ter uma hipótese para expor a sua versão”, disse, adiantando que o faz “muitas vezes para empresas do país”.

Questionado sobre o facto de a inspetora da PJ Aida Freitas ter admitido em tribunal que assinou sem ler o relatório sobre o encontro numa estação de serviço na A5 entre os representantes da Doyen e Aníbal Pinto, Rogério Bravo considerou que “não é admissível”. “Para mim, jamais podia acontecer. Se aconteceu, ela tem que explicar. Nunca vi uma ocorrência dessas na minha vida toda”, afirmou. O encontro, supostamente marcado para negociar quantos milhões estaria a Doyen a pagar em troca da não divulgação de documentos sobre a empresa, que o alegado hacker teria em sua posse, viria a ser uma das provas mais importantes e mais sólidas para acusar Aníbal Pinto e Rui Pinto do crime de tentativa de extorsão.

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Ordem era para “avançar”, caso Aníbal Pinto entregasse “qualquer coisa, fosse um papel, fosse o que fosse”

O inspetor-chefe disse que esteve presente no encontro numa estação de serviço na A5 entre os representantes da Doyen e Aníbal Pinto, num “ponto recusado no exterior”. Rogério Bravo detalhou que se houvesse “entrega de qualquer coisa da parte de Aníbal Pinto para qualquer assistente, faria intervir” os seus colegas inspetores. “Fosse um papel, fosse o que fosse. Depois, teríamos de analisar”.

Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.

Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão porque terá servido de intermediário de Rui Pinto na suposta tentativa de extorsão à Doyen. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.

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O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juiz Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.