E se lhe dissessem que, quando está “loucamente” apaixonado, tem comportamentos e sintomas semelhantes aos de quem tem uma doença mental? A afirmação é do escritor e psicólogo clínico Frank Tallis, que aborda o amor e a paixão no seu mais recente livro, “O Romântico Incurável”.
Para o antigo professor da universidade King’s College de Londres, o amor e a paixão são fulcrais na vida de qualquer ser humano, mas são pouco valorizados na sociedade. No seu livro, Tallis relata alguns dos casos que lhe passaram pelo consultório: uma mulher que se apaixona pelo dentista e se convence que o amor é recíproco; uma idosa que vê o fantasma do marido e cuja relação se baseava essencialmente no sexo; e um homem que ‘se apaixona por si mesmo’ são apenas alguns exemplos.
Histórias verídicas e contextualizadas a nível histórico, biológico e psicológico. Uma obra que, segundo o escritor, permite ao leitor não só ver o que passa dentro da cabeça de um psicólogo como mostra como um processo psicoterapeuta é pouco organizado e nem sempre tem um final feliz. “Quando estava a escrever este livro, dei os primeiros três capítulos à minha mulher para ela ler e ela disse-me: ‘As pessoas vão achar que és um péssimo psicólogo.’ [risos] Suponho que seja esse o risco de se tentar fazer algo honesto”, diz o escritor, que agora regressa ao género de não ficção após ter publicado vários romances.
É psicólogo, mas já não exerce há algum tempo.
Sim, é verdade. Comecei a escrever criativamente, escrevi alguns romances, um deles ainda enquanto exercia como psicólogo. Fiquei muito interessado em todo este “negócio das histórias” porque, claro, as pessoas estavam sempre a contar-me histórias portanto foi uma evolução natural. Apesar de, em muitos aspetos, me ter reformado da prática clínica, continuo a sentir que, através da escrita, sou um psicólogo, mas que exerço a psicologia de uma forma diferente.
Tendo em conta que tem estado a escrever romances, porque decidiu escrever este livro baseado em histórias de pessoas que seguiu? Porquê este regresso à psicologia?
Acho que a razão principal é que, por vezes, é necessário alguma distância para olhar com clareza para as coisas. A verdade é que, se tentasse escrever este livro mais cedo, acho que teria sido um erro. Exerci enquanto psicoterapeuta durante 20 anos. Foi muita informação, foram muitos casos e, por vezes, é preciso alguma distância para se conseguir olhar para a carreira e decidir o que é interessante ou não.
Há quantos anos não exerce?
Há 10 anos. Os casos mais antigos têm 30 anos.
Portanto, precisou de alguma distância para analisar o que se tinha passado com os seus pacientes, para escolher os casos para o livro?
Sim e também, quando estás imerso num tema, como a psicologia, estás habituado a pensar sobre os problemas de uma forma específica, recorrendo a linguagem académica. Se estiveres distante da profissão, tendes a pensar nestas coisas numa linguagem mais simples. Foi muito útil ter esta distância para conseguir expressar ideias quando explicava diversos mecanismos psicológicos relacionados com os casos do livro. Achei mais fácil explicar estes mecanismos usando uma linguagem mais simples enquanto que, anteriormente, teria tornado as coisas mais complicadas.
Conta as histórias destas pessoas, mas também faz uma contextualização a nível histórico, ao nível da psicologia. Porque o fez?
Fi-lo porque uma das razões pelas quais escrevi o livro era para contar ao público em geral o que é ser psicoterapeuta. Quando te é apresentado um problema, há muitas maneiras diferentes de o abordar, muitas formas diferentes de o compreender, diferentes enquadramentos, teorias diferentes, ideias diferentes. Quis dar aos leitores uma ideia clara sobre o que passa pela cabeça de um psicólogo quando está a ver um paciente. Outra coisa que quis fazer — e que acho que é bastante importante — é dar um retrato realista do que é exercer psicoterapia. Quando se vê a psicoterapia retratada em filmes, peças e romances, é muito simples e óbvio, é quase ficcional. Há princípio, meio e fim…
A realidade é mais complexa?
Sim, é um processo muito mais complexo, mais desorganizado. Como descrevo no livro, acha-se, a determinada altura, que se está a chegar a algum lado e depois nunca mais vemos o paciente, ele simplesmente desaparece. Há muitos livros escritos por psicólogos e psiquiatras sobre casos e um dos problemas que eu sentia é que não correspondia à minha experiência. A minha experiência não era tão satisfatória, não havia uma história bonita e fácil, com princípio, meio e fim, em que o paciente agradece, sente que está muito melhor e vai-se embora. A minha experiência é que é uma profissão difícil, em que as pessoas são complexas e em que muitos pacientes deixam de aparecer. Por vezes achamos que estamos a chegar a algum lado e, na realidade, não estamos, outras vezes temos a certeza que esta é a resposta certa, mas é algo completamente diferente. Por isso, queria explicar que a psicoterapia não é como se vê nos filmes.
No livro sente-se isso, parece que não há um fim para estas histórias, que não há finais felizes. É esta a realidade da psicologia?
Às vezes é. Quando estava a escrever este livro, dei os primeiros três capítulos à minha mulher para ela ler e ela disse-me: “As pessoas vão achar que és um péssimo psicólogo”. [risos] Suponho que seja esse o risco de se tentar fazer algo honesto. Eu podia ter escolhido dez casos que tiveram um grande sucesso, mas já houve outras pessoas a fazer isso e não é muito interessante. Acho que é mais interessante e mais humano mostrar estes processos como eles realmente são. É preciso gerir as expectativas das pessoas do que se pode efetivamente atingir na psicoterapia. Claro que vi pacientes que ficaram melhor [risos], mas para mim o importante foi tentar dar aos leitores uma visão mais autentica do que é a psicoterapia.
Como explica título do livro?
O título “O Romântico Incurável” são dois termos que têm de andar juntos: se se é um romântico, então não tem cura. E isso, na prática clínica, é verdade. Se se tem um problema de saudades, de desejo, se se está apaixonado, encontrei casos desse género muito difíceis de tratar. Quando as pessoas têm este tipo de problemas, é quase como fossem incuráveis. Pode-se gerir o problema, pode-se fazer pequenos progressos, mas no todo achei que este tipo de problemas era muito difícil de tratar.
O título do livro quase parece uma maneira bonita de tratar o assunto porque estas histórias são histórias muito mais complexas. São histórias de um amor obsessivo, de um amor louco…
Mas o amor é louco. Quando nos apaixonamos, comportamo-nos de forma irracional, temos vários sintomas que estão perto da doença mental. As pessoas quando se apaixonam podem tornar-se emocionalmente instáveis e, se pensarmos nas consequências de nos apaixonarmos, há paixão, há um ciúme extremo, há desgosto, ligações inapropriadas, comportamentos inapropriados, adições sexuais. E torna-se mais grave: stalking, seguir a pessoa por quem se está apaixonado, algo que é muito mais comum do que as pessoas imaginam, mesmo dentro do dito “amor normal”.
Estamos a falar de “amor normal”…
Sim, todas estas coisas. E quando, por exemplo, o ciúme torna-se mais sério, no caso dos homens está muito associado ao homicídio. Cerca de 10% dos homicídios do mundo [são] de homens que matam mulheres porque acham que elas dormiram com outra pessoa. Isto é grave. Em particular nos jovens, que não têm maturidade emocional, a paixão e a rejeição pode provocar uma depressão grave, com um alto risco de suicídio. Isto não são assuntos triviais.
A sociedade olha para estes assuntos como sendo triviais?
Muitas vezes tratamos como se fosse uma piada. Nas comédias românticas, conferimos alguma ligeireza ao amor e, se olharmos para a forma como vemos a literatura romântica, é quase como se fosse, de uma forma sexista, uma coisa de que as mulheres gostam. Não é [tido como] um assunto importante, mas não é verdade. Não há nada mais importante na vida das pessoas do que o amor. Grande parte dos psicólogos e filósofos importantes concluíram o mesmo: uma vida sem amor praticamente não tem sentido. Para algo tão importante e que afeta tanto as pessoas, é extraordinário como nós, enquanto sociedade, o tratamos de uma forma tão deturpada, em especial no caso dos jovens.
O que acontece no caso dos jovens?
Quando os jovens se apaixonam, há uma certa tendência para serem gozados ou para que o assunto seja banalizado, mas, na verdade, as consequências da rejeição quando se é novo podem ser profundas a nível psicológico. É um assunto muito importante e não lhe é dada a devida importância não só enquanto fenómeno cultural, mas também na prática clínica. Quando as pessoas têm problemas emocionais ou sexuais no contexto amoroso, esses problemas tornam-se sempre mais exagerados, é quase como se o amor desestabilizasse as pessoas e isso pode ter um efeito muito inesperado.
Como por exemplo?
Lembro-me de estar a acompanhar em terapia um soldado que tinha estado em combate, que tinha visto coisas terríveis na guerra com as quais soube lidar, mas quando se apaixonou ficou traumatizado com todas aquelas memórias. É quase como se apaixonar-se o tivesse tornado mais sensível emocionalmente e as coisas com as quais tinha conseguido lidar, de repente tonaram-se muito dolorosas. E o amor afeta as pessoas de muitas formas, de formas que não se imaginaria que pudesse afetar. Pode ser uma experiência muito intensa e desestabilizadora na vida de uma pessoa.
Foi por isso que decidiu abordar este tema de amores que levam as pessoas à loucura? Isso é assim tão comum?
Quase toda a gente consegue lembrar-se de uma situação em que estava apaixonado ou atraído por alguém que se comportou de uma forma que não era normal. Isto acontece muito com os homens. Acho que é a intensidade da experiência que faz com que alguém tenha um problema clínico. Toda a gente sabe o que é estar triste, mas não quer dizer que a pessoa esteja deprimida e a precisar de tratamento e antidepressivos. E o mesmo acontece numa situação em que se está louco de amor. A maioria sabe o que é ter uma “experiência” de amor louco sem enlouquecer, mas quando as pessoas “normais” estão loucamente apaixonadas, acho que elas estão num estado muito semelhante ao de uma doença mental.
O que é interessante é que, quando se está fora desse estado, é quase como se a pessoa não se conseguisse lembrar dele. Há uma distância entre a pessoa quando não está apaixonada e quando está apaixonada: é quase como se olhássemos para a pessoa que éramos quando estávamos apaixonados como uma pessoa diferente. É muito curioso porque é uma experiência intensa e acharíamos que a pessoa que a viveu se lembraria melhor dela, mas quando já não estão apaixonadas ou já não estão tão apaixonadas, olham para isso como se nunca tivesse sido um problema. Eu não concordo. Acho que quando uma pessoa se apaixona, a descrição que faz é como se fosse um montanha-russa. Há altos e baixos, ficas obcecado pela outra pessoa, não consegues deixar de pensar nela, toda a tua vida e felicidade parecem estar dependente dela, quando ela está fora sentes-te triste e deprimido. Há coisas irracionais que a pessoa faz: superstições em torno de determinados momentos, datas que ganham imenso significado, etc. As pessoas comportam-se de forma diferente quando estão apaixonadas. Veem-se estas mudanças na personalidade especialmente nos homens.
Que mudanças de personalidade?
Quando se faz trabalho clínico, vemos que as mulheres queixam-se sempre mais ou menos do mesmo: ele não comunica, ele não fala. Mas se olharmos para a maioria dos homens quando estão apaixonados, ele tornam-se extremamente comunicativos, quase poetas [risos]. Há esta mudança na personalidade, mas ao fim de três ou quatro anos, isso acaba. Podemos assistir quase a mudanças de personalidade que fazem parte do processo natural de estar apaixonado.
Mas, por exemplo, no caso que descreve de uma mulher que se apaixonou pelo dentista e tinha a certeza que ele estava apaixonado por ela. Isso parece algo patológico.
E era.
Isto pode acontecer a qualquer um? O que pode levar uma pessoa a comportar-se assim?
Esse é um caso de síndrome de Clérambault, é um dos maiores mistérios da psicologia e da psiquiatria. Há muitas teorias, mas ninguém sabe na realidade por que acontece. É a condição mais extrema de uma ilusão de amor. Claramente, ela não está em contacto com a realidade, mas mesmo nesse estado conseguem-se perceber algumas vulnerabilidades. É como se ela não conseguisse aceitar que o dentista não a ama, esse é o ponto do síndrome de Clérambault: a pessoa ama o outro e acha que é recíproco e a única razão pela qual não o assumem é porque se trata de algo tão forte que não conseguem lidar com a experiência. Mas eu já falei com várias pessoas, dentro e fora do contexto clínico, que se apaixonam e dizem coisas muito parecidas. Não é igual ao problema desta mulher, mas há sempre estas ligações entre estados extremos em mulher e homens “normais” apaixonados, porque é uma experiência muito intensa.
Isso faz-me lembrar um outro caso que descreve no livro: o de um homem que se apaixona por uma mulher e não consegue lidar com o fim do relacionamento. Qual é a diferença entre estes dois casos?
No caso de Meghan, é completamente uma ilusão. Ela não tem dúvidas de que o dentista está apaixonado por ela, é algo completamente rígido. No caso do Paul, a intensidade da experiência é mais uma semi-ilusão. Não é propriamente uma ilusão e com o tempo consegue-se fazer com que a pessoa mude de opinião e diga [algo como] “eu achava que esta era a mulher da minha vida, mas estava enganado e tenho de seguir com a minha vida”. Quando a pessoa tem síndrome de Clérambault, normalmente isso não acontece porque a pessoa não está a ser racional.
Como assim, “semi-ilusão”?
Quando as pessoas “normais” se apaixonam, durante algum tempo não estão em contacto com a realidade [risos]. Podem regressar, mas durante um período de tempo estão num estado de semi-ilusão. Frequentemente, apaixonam-se por pessoas que não são adequadas. Ouve-se os amigos a dizerem “não sei o que ela vê nele ou o que ele vê nela” e fala-se com a pessoa e ela diz o quão fantástica a outra é. Durante um período de tempo, as pessoas estão desligadas [da realidade] e olham para a pessoa de quem gostam de uma forma idealizada: aumentam os atributos atrativos e negam tudo o que seja negativo porque querem que o relacionamento resulte. A idealização que por vezes se vê nas pessoas que se apaixonam é frequentemente dependente na negação dos aspetos negativos da outra pessoa. Todos temos boas e más características e, numa relação madura, aceita-se que ambas as pessoas têm coisas boas e más, mas quando as pessoas estão apaixonadas não conseguem ver os lados maus e muitas negam que eles existem. Isso significa que se está cada vez mais longe da realidade e, quanto mais afastado se está da realidade, mais instável e vulnerável se fica.
A que se devem estas patologias?
A tudo o que possa provocar uma sobrecarga psicológica. No caso do Paul, era uma adesão a crenças românticas. Há muitas crenças românticas que temos por crescer na nossa cultura, em que o romance é considerado uma parte significativa da nossa vida, mas muitas são em parte uma semi-ilusão. A ideia de destino, por exemplo, de que há uma pessoa certa para nós. Se se acredita nisto, que a relação estava destinada, e depois perde-se essa pessoa, a experiência é devastadora porque se acha que se perdeu a única oportunidade que tinha na vida de encontrar a felicidade. É curioso que as pessoas tenham estas crenças, mesmo aquelas que não são consideradas “malucas”. Se falar com casais sobre o seu relacionamento, muitos dizem que, assim que conheceram o marido ou a mulher, souberam logo que estavam destinados a ficar juntos. Cerca de 70% acredita em amor à primeira vista e, obviamente, não pode ser verdade.
Então, porque é que as pessoas acreditam que existe amor à primeira vista?
Não só acreditam que existe amor à primeira vista, como cerca de 50% das pessoas diz que isso lhes aconteceu. Pode ser que nos apaixonemos mais rapidamente do que imaginamos, que nos apaixonemos por motivos de evolução — para a procriação, a sobrevivência da espécie. É um fenómeno complexo e eu não gosto de simplificar. É como na prática clínica, as pessoas chegam com problemas e são efetivamente únicas. Cada pessoa tem um conjunto de circunstâncias, portanto deve-se sempre resistir à simplificação. Este foi outro motivo pelo qual escrevi o livro, para tentar passar esta mensagem de complexidade…
Em torno do amor?
E da prática clínica. É difícil dizer com confiança “eu tenho razão”, “eu sei que esta é a resposta”. É preciso explorar as coisas e testar ideias e, aos poucos, chegar-se a uma resposta ou teoria certa sobre o que se está a passar.
Há um caso de uma idosa que vê o fantasma do marido e diz que aquilo de que sente mais falta é do sexo. O que se passa neste caso?
Escrevi este caso porque queria passar uma ideia muito específica que achei interessante: quando as pessoas veem fantasmas, acha-se que é algo pouco comum ou extraordinário, mas na verdade não é. Ver o companheiro que morreu é muito comum, é quase normal, expectável. O mais extraordinário desta história é que esta mulher era idosa e toda a relação que ela e o marido tiveram durante muitos anos era baseada no sexo. Gostamos de pensar que um relacionamento para resultar durante muito tempo não é apenas baseado em sexo, mas sim noutras coisas.
E não é verdade?
Normalmente precisamos de intimidade, proximidade, sexo, compromisso, são precisas muitas coisas e o que normalmente acontece, se uma relação é puramente física, é que o amor acaba por desaparecer num par de anos, no máximo. As pessoas até podem dizer que estão apaixonadas, mas gradualmente o desejo torna-se menos intenso. A melhor maneira de descrever esse tipo de relacionamento é mais como paixão do que como amor. Mas o que é curioso neste relacionamento [da idosa] é que durou uma vida inteira.
Foram quase 50 anos…
Exato, por isso quis contrastar estes dois fenómenos. Um que achamos que é estranho, mas que na realidade não é, de todo — muitas pessoas vêem os companheiros depois de eles morrerem. E aquilo que nós achamos que é normal, o sexo, foi notável neste caso — durou tanto tempo e de uma forma tão intensa. Eles, na verdade, não tinham propriamente uma relação. Ela era uma mulher muito simples e o relato que fazia do marido era de um homem muito simples da classe operária. Não pareciam ter interesses em comum, não pareciam ter conversas, tinham um filho. Parece que o sexo era a única coisa que os mantinha juntos e demonstra que, se se consegue manter o interesse sexual, se estiveres numa relação em que o sexo se mantém muito intenso, então é possível manter uma relação. Para a maioria das pessoas não é possível, é preciso mais do que isso.
É um caso único?
Sim.
No final do capítulo, quando ela sai do seu escritório, percebe-se que ela vai continuar a ver o fantasma.
E se calhar é uma coisa boa.
É uma coisa boa? Ela não precisa de fazer o luto do marido? Não precisa de seguir com a vida?
Não necessariamente. Acho mesmo que ela estava desolada e amava o marido, mas de uma forma muito limitada. Achei que, por um lado, se ela continuasse a alucinar com o marido, isso dar-lhe-ia algum conforto. Não estava ansioso por tratar aquilo, olhei para aquilo como fazendo parte do processo natural de se ser humano e de perder alguém de quem se ama. Pode olhar-se como sendo um mecanismo de segurança natural, por outras palavras, como sendo algo de transição — e normalmente é transitório, vão-se tornando menos frequentes –, não olho para isto como sendo um tormento. Achei que era mais um processo natural que a estava a ajudar e que não estava ansioso por o pôr em causa. Claro que o explorei com ela, mas, como disse, ela era uma mulher muito simples e não tinha qualquer problema com o fantasma.
Aquilo que achei que era comum aparecer nos consultórios dos psicólogos foi o caso de uma mulher que tinha uns ciúmes doentes do companheiro.
É muito comum.
Ter ciúmes do companheiro é normal, mas este tipo de ciúme é muito patológico. Qual é a diferença entre o ciúme “normal” e o ciúme patológico?
É um assunto controverso. Em termos de diagnóstico, há uma descrição de ciúme patológico, com uma série de sintomas: controlar, por vezes perseguir a pessoa, fazer várias perguntas, remexer e cheirar as roupas, e por vezes violência, tanto no caso dos homens como das mulheres. É comum sentir-se ciúmes, aliás é tão comum que desde os tempos medievais que os livros que falavam de amor diziam que o amor não era verdadeiro sem ciúme. O problema para o diagnóstico [de amor patológico] é que assumimos que a pessoa está a ser irracional e o parceiro não está a ser infiel — mas como podemos ter a certeza? A não ser que se observe o parceiro 24 horas por dia, como podemos saber? Claro que falamos com o companheiro, mas na verdade nunca sabemos, portanto, por um lado, é um diagnóstico muito inseguro porque temos de fazer uma suposição para o diagnóstico ser persuasivo.
Mas as pessoas vivem com essa insegurança em todas as relações e algumas lidam bem com isso. A sensação que se tem é que esta mulher perdeu a cabeça. E depois até faz referência ao relacionamento que ela tinha com a mãe…
No caso dela, tinha um medo extremo do abandono. Uma coisa muito triste neste caso, e noutros como este, é que estas pessoas têm tanto medo de ser abandonadas que se comportam de uma maneira tão ciumenta que acabam por forçar o próprio abandono. Estas pessoas são apanhadas neste ciclo destrutivo: sentem que precisam de amor, de segurança, mas comportam-se de uma forma que os impede de receber amor e segurança. É importante não olhar para estes casos como algo de entretenimento, como peculiares. São pessoas verdadeiras, com problemas reais e que estão muito tristes. É uma espécie de aviso para todos nós.
Há ainda o caso do homem que se apaixonou por si mesmo.
No caso dele até é compreensível. Havia uma série de problemas de controlo e se o seu parceiro sexual favorito é o próprio, tem um controlo absoluto. Não há nada de espontâneo, há um controlo absoluto. Quando descrevo como sendo uma forma de narcisismo, faço-o para dar a ideia do que parecia, mas em muitos aspetos era mais sobre problemas de repulsa.
Relativamente à sua sexualidade?
Sim e sobre problemas de controlo. É um assunto importante sobre o qual as pessoas não pensam. A intimidade é tanto sobre a capacidade de reprimir a repulsa quanto é sobre atração. Tudo o que tem de fazer é, por um momento, pensar no contacto sexual com alguém que não acha muito atraente e, na maioria das pessoas, o sentimento de repulsa é muito forte.
E ele não consegue fazer essa repressão?
Ele tinha problemas em torno da sua homossexualidade. Foi-lhe dito durante a infância e ao longo da vida que ser homossexual era horrível e nojento, portanto o sexo homossexual foi sempre complicado para ele e conseguiu controlar o seu prazer sexual sozinho.
Mas isso é uma coisa boa? Não é uma maneira de ele se isolar?
Eu não diria que é uma coisa boa, mas se lhe perguntasse isso a ele, ele diria que continua a ter amigos, uma vida social e esta foi a solução de lidar com os problemas sexuais. O tipo de sexo de que as pessoas gostam é variado, as pessoas gostam de coisas diferentes. Mais uma vez, um dos motivos pelo qual escrevi este capítulo foi para fugir a esta ideia de julgamento sobre o que está certo ou errado. Algumas pessoas podem chegar a uma solução que, para outros, pode ser estranho ou problemático. Mas, se funciona para elas… Tive muitas pessoas que vieram ter comigo devido a problemas sexuais a quem disse que não tinham problema nenhum. Descreviam-me alguma coisa e eu dizia: “Se é uma coisa que gosta de fazer e não traz mal nem a si nem a outros, então não é um problema, é apenas a sua sexualidade”.
Uma coisa que destoa no livro é um relato que faz de um homem que teve um ataque psicótico. Nessa altura ainda não era psicólogo. Porque decidiu incluir este episódio?
A resposta a isso está umas páginas antes, quando um paciente me diz que sei tudo sobre ele, mas que ele não sabe nada sobre mim, e eu pensei que o leitor poderia sentir o mesmo. São casos verdadeiros, obviamente que os disfarcei, ou seja, tudo aquilo em que pudesse ser possível identificar o paciente, mudei. O fenómeno clínico, as conversas que tive, as decisões clínicas que tomei são tão verdadeiras quanto me lembro. Tive um grande dilema moral e, para ser sincero, quando inicialmente pensei em escrever este livro, pensei que não pudesse fazê-lo porque seria errado falar dos meus pacientes.
Uma espécie de traição?
Sim, uma espécie de traição para com o paciente. Mas li outros livros e vi que outras pessoas lidaram com este problema ao mudar os detalhes e, de facto, é uma tradição que remonta a Freud. Pensei em localizar as pessoas e pedir-lhes autorização, mas isso seria um problema porque algumas já estariam mortas. E, mesmo que conseguisse, as pessoas dizem uma coisa num dia e depois mudam de ideias. Até podia dizer que sim e depois, quando o livro saísse, mudar de ideias, portanto isso não seria solução. A questão é tentar ser o mais fiel possível ao fenómeno clínico sem qualquer tipo de identificação.
Mas por que decidiu escrever sobre si e sobre este episódio?
O motivo pelo qual escrevi sobre mim: porque senti que, se estava a usar a vida de outras pessoas para escrever este livro, senti-me obrigado a expôr-me um bocadinho também. Algumas pessoas acham que os psicólogos têm uma vida perfeita e tomam sempre boas decisões. Este é um exemplo de como eu, quando era jovem, estava constantemente a tomar más decisões. Casei-me muito novo, com a pessoa errada, e acabei numa situação muito pouco sensata. Esse incidente em particular achei que era fascinante do ponto de visto da psicologia. Não era psicólogo na altura, mas percebi o que se estava a passar. No livro dou conta de teorias psicológicas que podem explicar como ocorreu aquele esgotamento. Foi uma experiência assustadora. Muitas pessoas perguntam-me se a história é verdadeira porque parece uma história de terror — e eu já escrevi histórias de terror –, mas é totalmente verdadeira. Escrevi-a de uma maneira que, se calhar, não enfatizei quão assustado estava. Achei que ia morrer.
Foi este episódio que o fez querer estudar psicologia?
Não diria que foi determinante, mas claramente acelerou o meu rumo na psicologia.
O que o levou a escolher estes casos em particular?
Em primeiro lugar, toda a gente se apaixona. portanto é um tema que apela a todos. Queria fazer deste livro algo diferente. Um livro que explorasse o facto de quando nos apaixonamos estarmos a aproximarmo-nos perigosamente da loucura, de como o amor é uma experiência que tem muitas qualidades que associamos à doença mental. Escrevi um livro mais académico em 2004, chamado “Love Sick”, que é sobre a história dos males de amor. Foi há muito tempo e ainda recebo emails de pessoas de todo o mundo que vivem essas experiências. Este livro não é tão académico, é mais humano, porque conta histórias verdadeiras.
Depois deste livro, está a pensar regressar à ficção?
Estou a escrever um livro chamado “The Act of Living” [“O Acto de Viver”, numa tradução livre]. Nas livrarias há uma série de livros de autoajuda e, se reparar nas estatísticas das doenças mentais, nunca houve tantas pessoas infelizes, ansiosas, pouco satisfeitas. Quanto mais liberdade temos, quanto mais posses temos, quanto mais informação temos, mais infelizes ficamos. Nunca houve tanta depressão e ansiedade nas pessoas com menos de 14 anos. O suicídio mata mais pessoas que a guerra ou o terrorismo. E muitos dos livros de autoajuda são um absurdo porque aquilo que oferecem são soluções rápidas e muitas vezes estranhas.
Como por exemplo?
Por exemplo, um recente bestseller no Reino Unido foi um livro sobre como estar em paz e felicidade através da arte norueguesa de cortar madeira e guardá-la, e há vários livros destes. E eu pensei: “Estão à procura em todo o lado, exceto no sítio onde podem encontrar uma resposta”. Se olhar para a psicoterapia, de Freud até aos dias de hoje, há figuras ótimas: Freud, Jung, Adler, Erich From. Intelectuais cujo trabalho do dia a dia era lidar com a infelicidade e eles tinham ideias sobre de onde vinha esta infelicidade e as soluções [para a mesma]. Espantou-me que ninguém tenha considerado esta tradição.
O livro fala sobre estas tradições?
O que estou a fazer — e às vezes desejava não ter enveredado por esta tarefa, porque é muito difícil — é olhar para a tradição da psicoterapia, as ideias destes grandes pensadores sobre a origem da infelicidade e a sua solução, e pôr tudo junto [num livro] de uma forma acessível para o público. Se conseguir concluir este projeto, acho que será útil e, depois disso, vou rever a situação. Talvez volte a escrever ficção. Também estou a trabalhar em guiões para filmes com um produtor no Reino Unido, portanto continuo a fazer trabalho criativo.