A variante Ómicron chegou a muitos portugueses antes que estes tivessem tido oportunidade de tomar a dose de reforço da vacina contra a Covid-19. A infeção com o vírus também funciona como um estímulo ao sistema imunitário, o que faz perguntar se as pessoas com o esquema vacinal completo há mais de 14 dias que foram entretanto infetadas precisam ou não de mais uma dose da vacina?
Ouvidos pelo Observador, o epidemiologista Manuel do Carmo Gomes e o imunologista Marc Veldhoen apresentam as suas visões sobre a toma da dose de reforço. Verificamos também que as autoridades de saúde de países diferentes podem ter orientações distintas.
O que prevê a norma da Direção-Geral da Saúde?
Quem foi infetado deve, ainda assim, tomar a dose de reforço, segundo a norma da Direção-Geral de Saúde (DGS) relativa à campanha de vacinação — de acordo com a última atualização a 11 de janeiro de 2022. A regra para a dose de reforço, na verdade, é igual para quem nunca esteve infetado, para quem esteve infetado antes de completar o esquema vacinal ou para quem foi infetado depois disso. A única exceção é para quem teve como vacina inicial uma dose da Janssen.
Assim, para tomar a dose de reforço, deve esperar seis meses (no mínimo, cinco) desde a última dose da vacina ou desde a infeção (o que tiver acontecido em último lugar), mas para quem tomou a vacina da Janssen, o reforço deve ser dado ao fim de três meses da dose da vacina ou da infeção.
Está previsto que quem tomou duas doses das vacinas da Pfizer ou da Moderna, tome uma dose de reforço da mesma farmacêutica. Já nos casos das pessoas vacinadas com a AstraZeneca ou Janssen, o reforço deve ser feito com uma das vacinas de mRNA atualmente autorizadas (Pfizer ou Moderna).
Nos Estados Unidos, pelo contrário, parece não haver consenso sobre quando devem os infetados tomar a dose de reforço — nem sequer uma orientação oficial. Os Centros para o Controlo e Prevenção da Doença norte-americanos têm dito aos médicos que as pessoas podem tomar a dose de reforço assim que saiam do isolamento, reporta o jornal The Wall Street Journal. Mas as recomendações são variáveis: imediatamente para os mais vulneráveis e um mês para os restantes; 10 dias, duas semanas, um ou três meses, são algumas das opções.
Os infetados precisam da dose de reforço?
Tal como aconteceu noutros momentos da pandemia de Covid-19, quando as questões são recentes, as respostas nem sempre são consensuais, em larga medida porque ainda não foi possível reunir informação científica suficiente. Daí se justifica também a falta de orientações oficiais nos Estados Unidos.
Sobre a toma de duas doses e a diminuição da quantidade de anticorpos ao fim de alguns meses já existem vários estudos. Esta potencial perda de imunidade deu o mote para a toma da dose de reforço. Sobre o comportamento da imunidade depois da dose de reforço ou de uma infeção após duas doses, no entanto, há menos informação.
Manuel do Carmo Gomes, que faz parte da Comissão Técnica de Vacinação da DGS, alinha com a recomendação da autoridade de saúde e justifica que, “ao longo do tempo, ocorre decaimento da proteção humoral — isto é, dos anticorpos neutralizantes — mesmo depois de se ter tido infeção”. O epidemiologista acrescenta: “Não existem estudos sobre a recuperação da infeção por Ómicron há tempo suficiente para se saber como ocorre o decaimento da proteção induzida” por esta variante. Mas o especialista baseia-se no conhecimento sobre outros coronavírus para dizer que “ao fim de aproximadamente cinco meses o risco de ser reinfetado aumenta significativamente”, apesar de a proteção contra a doença grave continuar alta.
Depois da vacinação ou da infeção — no caso do SARS-CoV-2 ou outro vírus — há um período em que os anticorpos aumentam muito, depois mantém-se durante algum tempo, mas acabam por decair. Este processo é natural e representa uma forma de o organismo poupar recursos quando não precisa deles e evita que o sistema imunitário tenha uma resposta exacerbada. A desvantagem é que voltar a produzir anticorpos faz com que o organismo demore mais tempo a responder a uma infeção do que quando eles estão em circulação na corrente sanguínea.
Marc Veldhoen, investigador no Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa (IMM), reconhece que os anticorpos diminuem ao longo do tempo, mas considera que a infeção com o vírus já funciona como um “reforço” para o sistema imunitário. “Desde que o sistema imunitário veja a proteína spike [que dá o aspeto coroado ao vírus] três vezes, estamos bem.”
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Quem não deve deixar de tomar a dose de reforço?
Apesar de reconhecer que a infeção, quando já se completou o esquema vacinal há mais de duas semanas, é tão ou mais eficaz que a dose de reforço da vacina, Marc Veldhoen reconhece que os mais velhos e mais vulneráveis têm vantagem em tomar esta dose adicional mesmo depois de terem estado infetados.
Contactamos com os coronavírus que causam constipações (e até outros vírus) desde a infância e o organismo tem oportunidade de criar uma imunidade celular (com células T e células B) robusta, que vai sendo reforçada de cada vez que voltamos a ser expostos. Quando atingimos uma idade avançada, o sistema imunitário está mais debilitado, mas as células de memória foram criadas por um organismo jovem. Com o SARS-CoV-2, pelo contrário, o sistema imunitário dos idosos foi exposto a um novo vírus (ou a uma vacina) numa altura em que está mais frágil e tem mais dificuldade em preparar uma resposta imunitária eficaz e duradoura.
“Para a maioria das pessoas [que tem duas vacinas e esteve infetada] não será necessária a dose de reforço, mas é importante a partir dos 60 anos”, disse o investigador com base nos dados de Israel já conhecidos.
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É melhor a infeção ou uma dose de reforço?
Quando somos infetados desenvolvemos uma resposta imunitária equivalente àquela que seria desencadeada pela vacina, com a vantagem de que na presença do vírus completo podem produzir-se anticorpos contra outras porções do vírus. Esta resposta mais diversificada poderá ser útil na presença de variantes do vírus que apresentam alterações na proteína spike — que serve de base às vacinas (e contra a qual são produzidos os anticorpos dos vacinados).
“Os nossos dados sugerem que a exposição adicional a antigénios [o vírus ou partes do mesmo] durante uma infeção natural aumenta substancialmente a quantidade, qualidade e amplitude da resposta imunitária humoral [por anticorpos], independentemente de ocorrer antes ou depois da vacinação”, concluiu uma equipa da Universidade de Saúde e Ciência do Óregon num artigo publicado na revista científica Science Immunology.
Apesar da aparente vantagem, o imunologista Marc Veldhoen alerta que não é uma boa opção deixar-se infetar propositadamente em vez de tomar uma dose de reforço. “É imprevisível”, diz sobre o impacto que a infeção pode ter na pessoa. “Ainda não é um vírus da constipação, é mais grave do que isso.”
Além disso, como concluiu um estudo publicado na Nature Medicine, o importante é ter sido exposto três vezes. “Concluímos que uma imunidade híbrida, induzida por infeção mais vacinação, ou uma imunização tripla [com vacinas] pode levar à produção de anticorpos de elevada qualidade e com capacidade de neutralização alta contra variantes de preocupação, incluindo a Ómicron”, escreve a equipa de investigadores alemã.
Vamos precisar de reforçar as vacinas no futuro?
Marc Veldhoen diz que ainda não é possível fazer uma previsão a longo prazo. O imunologista consegue antever a vantagem de uma segunda dose de reforço, mas mais do que isso vai depender das novas variantes do vírus e de quando elas surjam. O investigador não têm dúvidas que haverá variantes novas, mas não pode adivinhar que características terão ou em que momento vão surgir.
Manuel do Carmo Gomes, que também não exclui o aparecimento de uma nova variante, considera que uma segunda dose de reforço “será quase de certeza desnecessário”, exceto, eventualmente, para “pessoas de maior risco, como maiores de 70 anos, portadores de certas doenças crónicas, imunossuprimidos, doentes oncológicos ativos, etc.”.
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O imunologista do IMM defende que, ao contrário do que tem feito Israel (e do que origina a falta de recomendação nos Estados Unidos), se dê um maior espaçamento entre os reforços da vacina, pois dá mais tempo ao sistema imunitário para preparar e cimentar uma resposta eficaz.
Mas sobre os reforços lembra que o sistema imunitário tem um limite. “De cada vez que há um reforço [ou infeção] há produção de anticorpos e células imunitárias, mas o armazenamento das células de memória é limitado.” Ou seja, se o local de armazenamento das células de memória estiver cheio, para entrarem células novas, têm de ser descartadas outras que já lá estejam, limitando assim as vantagens de doses de reforço contínuas.
Alguns investigadores citados pela Nature dizem que a utilização de doses de reforço depende do objetivo que se tenha para elas: se é para prevenir infeções e abrandar a transmissão do vírus ou se é para reduzir a doença grave e evitar os internamentos. Manuel do Carmo Gomes lembra que o objetivo da vacina sempre foi proteger contra a doença grave. Danny Altmann, imunologista na Imperial College de Londres, disse à Nature que as doses de reforço não podem ser usadas indefinidamente como medidas de emergência.
Além disso, manter programas de vacinação de reforço, sem demonstração científica sólida das suas vantagens, vai continuar a limitar o acesso às vacinas por parte dos países com menos recursos económicos.
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Será melhor que a vacina de reforço seja diferente?
As vacinas desenvolvidas logo após o genoma do vírus de Wuhan (China) ter sido divulgado têm por base uma proteína spike diferente da que existe atualmente ou da que estava em circulação quando as primeiras vacinas começaram a ser dadas. Ainda assim, as vacinas mostraram-se eficazes na prevenção de doença Covid-19 grave.
Uma vacina que inclua algumas das mais importantes alterações da proteína spike será vantajosa como vacina de reforço porque apresenta novas opções ao sistema imunitário, levando à produção de novos anticorpos, procurando diminuir a capacidade de escape das novas variantes. Melhor do que intermináveis doses de reforço, será o uso de novas vacinas que “terão um efeito mais longo e duradouro e que vão permitir uma proteção adequada contra as diversas variantes que existem ou possam aparecer”, disse Ran Balicer, médico de Saúde Pública no Instituto de Saúde Clalit em Telavive, citado pela Nature.
Marc Veldhoen alerta, no entanto, que enquanto não houver uma nova vacina — contra a Ómicron (que ainda está a ser preparada e que não se sabe exatamente quando poderá começar a ser utilizada) ou contra múltiplas variantes — mais vale não esperar e tomar a dose de reforço disponível.