O questionário foi enviado pela Direção-Geral da Administração e Emprego Público a mais de 500 mil trabalhadores da administração central do Estado e tem um objetivo: perceber o que motiva e desmotiva os funcionários públicos. É apresentado pelos serviços como uma “segunda edição” de um questionário feito em 2015, mas este tem perguntas novas que estão a indignar alguns funcionários. Isto porque são “convidados” a responder se o período da troika (que coincide com a governação de Passos Coelho) os desmotivou ou se políticas marcantes da “geringonça” — como a “reposição dos salários” ou “descongelamento progressivo das carreiras” — os deixaram mais motivados.
Assim, o governo fica com acesso a uma espécie de “focus group” em larga escala à administração pública sobre a sua governação em ano eleitoral. Já a DGAEP, em resposta ao Observador, justifica que foram os trabalhadores que pediram estas perguntas nas “sugestões” de um anterior questionário. A presidente da UGT (e dirigente dos TSD, Trabalhadores Sociais Democratas), Lucinda Dâmaso, diz que as “perguntas eram obviamente de evitar“, mas que “em campanha eleitoral, vale tudo“.
O questionário chegou por email aos trabalhadores e terá de ser respondido até 30 de setembro. Em concreto, as perguntas polémicas surgem numa secção dedicada a “Fatores de motivação/satisfação no trabalho na Administração Pública”. São estas:
- “O período da Troika influenciou negativamente a minha motivação no trabalho”
- “A reposição dos salários afetou positivamente a minha motivação no trabalho”
- “O descongelamento progressivo das carreiras é motivador“
- “Sinto-me hoje mais motivado no trabalho do que há 5 anos?“
Há, para as questões, quatro respostas possíveis: “Totalmente em desacordo”; “Em desacordo”; “De acordo”; e “Totalmente de acordo”.
A DGAEP, em resposta às questões do Observador, diz que este questionário “constitui um follow up do questionário realizado em 2015 sobre a motivação dos trabalhadores em funções públicas”. No entanto, o questionário de 2015, apenas tinha perguntas do tipo: “O meu superior hierárquico reconhece a qualidade do meu desempenho?”; “Sinto-me realizado(a) profissionalmente?”; ou “As minhas potencialidades profissionais estão plenamente aproveitadas?”. Desta vez, além destas questões (e de outras como a condição económica ou a relação com a chefia), os funcionários públicos são questionados sobre atos concretos da governação socialista.
Estas perguntas destacam-se também por fugirem à lógica das restantes. Não só no conteúdo, mas também na forma. As perguntas são formuladas de forma positiva na parte referente a medidas adotadas por este Governo (“afetou positivamente”, “motivador” ou “mais motivado” são as expressões escolhidas) enquanto outra sugestiona o “período da troika” como negativo (“afetou negativamente”).
Sobre o teor das perguntas, a DGAEP diz apenas ter respondido à “‘taxa de resposta e sugestões recolhidas’ dos resultados do inquérito de 2015 em que se identificaram precisamente algumas das questões colocadas nesta versão de 2019″.
Ora, em 2015 havia três sugestões mais proeminentes: a primeira era sobre o aumento das 35 para as 40 horas (que o governo reverteu em vários setores, mas deixou de fora deste questionário de 2019), outra sobre o congelamento das remunerações (que é, de facto, uma das questões) e outra sobre o congelamento das carreiras (que é aqui referido aos trabalhadores como “descongelamento progressivo”, a forma de descongelamento proposta pelo governo).
Ainda assim, não há nada que aponte diretamente para uma questão sobre a influência negativa do período da troika, tendo em conta que o programa de assistência terminou em maio de 2014. E essa questão é feita. Além disso, o questionário dista quatro anos do anterior, mas a pergunta é feita sobre se está mais motivado do que “há cinco anos atrás [sic]”. Esta referência temporal (cinco anos) está a ser entendida por alguns trabalhadores como uma forma de deixar claro que se trata do tempo do passismo (quatro anos daria 2015, o que podia criar confusão na análise, já que o governo Costa toma posse em novembro desse ano).
A DGAEP desvaloriza esta questão, dizendo que “foi preparado um novo questionário pela equipa de investigadores (e docentes universitários) que concebeu e analisou o instrumento anterior, sendo suportado na literatura científica especializada”.
Na mesma resposta ao Observador, a DGAEP destaca que na sequência do questionário de 2015 pretende-se “atualizar a informação recolhida, de forma a aferir a tendência evolutiva nos diferentes parâmetros analíticos”. Porém, em algumas destas questões, isso não se coloca: não se pode avaliar a evolução quando há perguntas que não foram feitas há quatro anos. O mesmo organismo explica ainda que em 2015 o “questionário esteve aberto em abril e maio e o relatório respetivo foi apresentado em outubro”. Já na presente edição “o prazo de preenchimento termina a 30 de setembro, sendo os dados tratados subsequentemente e o relatório apresentado até final do ano”.
O polémico processo de liderança da DGAEP
A Direção-Geral da Administração e Emprego Público é liderada por Vasco Hilário, que tem um vasto currículo na administração pública e foi adjunto, assessor e chefe de gabinete de vários governantes socialistas. A escolha do atual diretor-geral está envolta em polémica e levou mesmo a presidente da CRESAP, Júlia Ladeira, a ter de se explicar na Comissão de Orçamento e Finanças do Parlamento em julho.
Tudo começou quando a 19 de dezembro um despacho da secretária-geral da Administração Pública recusou os três nomes indicados pela CRESAP para diretor-geral da DGAEP. Justificação: foi idenficado no período de seleção “um candidato com um perfil mais compatível com as orientações estratégicas definidas” face às propostas da CRESAP (que incluíam diretor-geral e subdiretores adjuntos). Depois disto a presidente da CRESAP foi chamada (pelo PSD) ao Parlamento em fevereiro.
Entretanto, em dezembro foi nomeado em regime de substituição Vasco Hilário, que se mantém no cargo. Em maio a Lusa noticiou que o próprio ministério estava há mais de cinco meses à espera de um nome da CRESAP. No entanto, em julho, no Parlamento a presidente da CRESAP explicou porque é que a entidade que lidera não indicou nomes: porque o próprio Ministério das Finanças não indicou um perito. Assim, Vasco Hilário continua a liderar a DGAEP.
TSD. “Perguntas eram de evitar. Mas em ano eleitoral, vale tudo”
A presidente da UGT e da mesa do Congresso dos TSD (Trabalhadores Sociais Democratas), Lucinda Dâmaso, considera que em “período de campanha eleitoral não se fazem estas perguntas em questionários aos funcionários públicos” e que “obviamente eram de evitar”. Lucinda Dâmaso não se surpreende, já que “em ano eleitoral acaba por valer tudo”. E acrescenta: “Não tenho memória de um questionário deste tipo alguma vez ter sido feito, que assim acaba por ser uma espécie de uma sondagem”.
Apesar disso, a presidente da UGT diz que antes de ser social-democrata é sindicalista e que não tem problemas em dizer que “o período da troika influenciou muito negativamente os trabalhadores da administração pública”, já que foi “um período muito difícil, que exigiu mais a todos os trabalhadores”. No entanto, destaca que “esses cortes já vinham do tempo de José Sócrates, da parte final do mandato, com o congelamento de carreiras e a redução dos salários. Os trabalhadores já estavam num acumular de sofrimento quando chegou a troika e ainda sofreram mais”.
Lucinda Dâmaso antevê que as respostas possam não agradar muito ao executivo. “Digo-lhe já que não estão muito satisfeitos. Há trabalhadores que foram tendo cada vez mais trabalho. No caso da educação, por exemplo, houve situações de professores que tinham menos tempo de serviço à frente na carreira de professores com mais tempo. Portanto, está longe de haver uma paz e uma motivação geral na Administração Pública.
Já o secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores da Administração Pública (SINTAP, também afeto à UGT), José Abraão, não vê problema em que as perguntas sejam feitas. “Podem ser feitas, até porque os tempos da troika levaram a um efeito de desmotivação em toda a administração pública“, justificou. E prontamente se disponibilizou a responder às quatro (não numa escala de totalmente de acordo a totalmente em desacordo) mas de forma qualitativa. As respostas são bastante críticas para o Governo:
O período da Troika influenciou negativamente a minha motivação no trabalho?
José Abraão: É verdade. Influenciou negativamente de forma muito significativa. Houve aumento de impostos, aumento das horas de trabalho, redução dos salários e do pessoal, o que influenciou muito negativamente o trabalho na Administração Pública.
A reposição dos salários afetou positivamente a motivação no trabalho?
José Abraão: Não foi motivadora porque a reposição dos salários não foi imediatamente acompanhada pela reposição do número de trabalhadores que saíram para a aposentação, não melhorando em nada a motivação dos trabalhadores que em áreas como a Justiça, Segurança Social ou Educação acabaram por ter mais cargas horárias, face embora a redução para as 35 horas. Por isso, a motivação mantém-se baixa. Depois os aumentos salariais nem chegaram para repor os valores de 2009, por isso não motivou de forma significativa. O que cresceu foi a confiança, porque já não houve mais cortes. Mas havia expectativas que não foram correspondidas.
O descongelamento progressivo das carreiras é motivador?
José Abraão: Foi desde logo desmotivador, porque foi de forma faseada, muito devagarinho, e na esmagadora maioria dos casos mal foi sentida. Os que receberam mais 20 euros receberam cinco euros em quatro fases, o que quase não se sente. Havia uma expectativa maior no que diz respeito ao descongelamento, é verdade que foi tudo descongelado e que já não houve cortes, que foi mais ou menos reposta a normalidade.
Sente-se hoje mais motivado do que há cinco anos?
José Abraão: A motivação não cresceu assim tão suficientemente que se possa dizer que há hoje uma maior motivação da Administração Pública, porque há muitos problemas para ultrapassar, como a política dos baixos salários. Depois há concursos a que não concorrem pessoas. E, o que vou dizer parece contraditário, mas foi agora aberto um concurso para reserva de recrutamento com 1000 vagas para técnicos superiores para os próximos dois anos e concorreram 18 mil trabalhadores Isto parecem pequenos sinais de motivação, mas são jovens licenciados que vão ganhar 870/880 euros líquidos, por isso a motivação não deve perdurar.
O questionário termina a 30 de setembro, 6 dias antes das eleições legislativas, mas a Direção-Geral da Administração e Emprego Público, tutelada pelo Ministério das Finanças de Mário Centeno, já começou a receber as primeiras respostas.