Quando Jéssica Biscaia morreu, a 20 de junho do ano passado, o Governo apressou-se a anunciar a criação de um grupo de trabalho para analisar e alterar os mecanismos de proteção de crianças e jovens, para que a história da criança de 3 anos que morreu vítima de múltiplas agressões, em Setúbal, não voltasse a repetir-se. Este grupo de trabalho só foi constituído no início de novembro, praticamente cinco meses depois de anunciado, e ainda não são conhecidas as suas conclusões, apesar de o prazo para a apresentação de conclusões ser de seis meses.
O relatório deste grupo de trabalho, cuja criação foi avançada pelo Expresso, só chegou às mãos do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, do Ministério da Justiça e da Ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares no mês passado, um ano depois da morte de Jéssica, cujo julgamento está já na fase final, com a leitura da sentença marcada para dia 1 de agosto. “O relatório, entregue em junho, encontra-se em análise pelas três áreas governativas”, confirmou ao Observador o ministério tutelado por Ana Mendes Godinho.
Este grupo de trabalho nasceu para criar “um modelo uniforme de avaliação do perigo” e para aperfeiçoar o “sistema de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo”, explicou a Procuradoria-Geral da República, que fez parte da equipa coordenada pela coordenadora nacional da Garantia para a Infância, Sónia Almeida. Além de dois representantes designados pela PGR, estiveram também dois representantes da área da Justiça, dois dos Assuntos Parlamentares e dois da Segurança Social. O Observador pediu, aliás, à PGR as conclusões destes trabalhos, mas foi encaminhado para o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que ainda não as divulgou.
Grupo de trabalho tinha seis meses para apresentar resultados
No despacho publicado em Diário da República, a 8 de novembro do ano passado, é indicado que o grupo de trabalho tinha quatro meses para a apresentação do respetivo relatório, podendo esse prazo estender-se por mais dois meses, “desde que ponderosos fundamentos, que deverão ser expressamente invocados, assim o imponham”, lê-se no documento. No total, o Governo indicou então como prazo máximo seis meses para apresentar um relatório para criar um novo modelo, mais eficaz, de proteção de menores.
A tutela reconhece que existe um modelo complexo de intervenção em contexto de proteção de crianças e jovens e que é necessário, sobretudo em casos mais graves e urgentes, “garantir igualmente uma intervenção expedita”. Para isso, foi pedido aos membros do grupo de trabalho um “levantamento de modelos de referência de intervenção”, a “identificação dos principais fatores de perigo associados às fragilidades/vulnerabilidades das crianças e jovens”, a “planificação de um modelo uniforme, visando a aplicação articulada pelas diversas entidades”, a formulação de propostas, que podem incluir alteração legislativa, e um plano de execução.
CPCJ não tem autonomia se pais recusarem intervenção
O caso de Jéssica despertou a atenção para o modelo de acompanhamento de crianças e jovens em perigo. Esta criança passou vários dias em casa de uma família, onde terá sido espancada violentamente e cujas lesões causaram a sua morte. A criança estava sinalizada pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens desde o dia em que nasceu. Nessa altura, em 2019, o processo de acompanhamento pela equipa de assistentes sociais começou a ser feito, porque todos os seus cinco irmãos mais velhos já tinham sido sinalizados em algum momento das suas vidas. E já nenhum deles vivia com a mãe.
Mas, como confirmou no ano passado ao Observador a presidente da CPCJ de Setúbal, Isabel Braz, o acompanhamento desta comissão só durou um ano. A partir de 2020, o caso passou para as mãos do Ministério Público, uma vez que os pais de Jéssica não deram autorização para que o acompanhamento da CPCJ continuasse. Aliás, esta é uma das barreiras burocráticas e legais em relação ao acompanhamento de crianças e jovens por parte destas comissões: só podem intervir se tiverem autorização dos pais ou representantes legais.
Como não foi dada essa luz verde por parte de Inês Sanches e de Alexandrino Biscaia, pais de Jéssica, o Ministério Público abriu um processo em maio de 2020, “com base numa sinalização de violência entre os progenitores ocorrida na presença da criança”, informou, também no ano passado o tribunal de Setúbal, onde decorre neste momento o julgamento deste processo.
Ministério Público arquivou processo dias antes de Jéssica morrer
“Foi aplicada a favor da Jéssica a medida de promoção de apoio junto dos pais, com a supervisão da avó materna, pelo período de um ano, estabelecendo-se ainda um conjunto de obrigações de cuidados relativos à criança que removessem o perigo que esteve na origem do pedido, qual seja a violência entre os progenitores, medida essa que obteve o consentimento destes e da avó materna”, acrescentou o tribunal. Praticamente um ano depois, em junho de 2021, voltou a ser feita uma nova avaliação e a equipa técnica que acompanhava o caso relatou ao tribunal que “a situação de violência doméstica acalmou”.
Passou mais um ano e, quando a equipa voltou a casa de Jéssica, a criança já vivia com a mãe e com o companheiro de Inês Sanches, numa nova casa. “Foi efetuada uma nova avaliação, referindo que o casal estaria separado, estando o progenitor a trabalhar no estrangeiro desde há cerca de quatro meses, deixando de subsistir o quadro de violência entre o casal”, lê-se na nota divulgada pelo tribunal. No dia 24 de maio de 2022, o Ministério Público determinou o arquivamento do processo, por já não existir uma “situação de perigo”, tornando “desnecessária a aplicação de medida de promoção e proteção”. Este despacho foi assinado no dia 30 de maio e Jéssica morreu a 20 de junho, menos de um mês depois.
As datas mencionadas pelo tribunal, sobre as avaliações feitas e, sobretudo, sobre o arquivamento deste processo, ganham especial relevo quando comparadas com a acusação do Ministério Público que acusa Inês Sanches e as três pessoas que terão agredido Jéssica do crime de homicídio qualificado.
De acordo com o documento do MP, a mãe de Jéssica terá pedido os serviços de bruxaria “seguramente” antes do dia 11 de maio e a criança terá sido dada como moeda de troca, pela primeira vez, ainda durante esse mês. Jéssica sofreu múltiplas agressões nos dias anteriores à sua morte, quando o seu processo na justiça já estava arquivado.