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A Autoridade da Concorrência não vai ter, afinal, o poder de apreender emails não lidos ou apagados no âmbito das suas ações de busca. Esse era um dos poderes que o anterior Governo quis atribuir à entidade supervisora, liderada por Margarida Matos Rosa (na foto), no âmbito da proposta que entregou no Parlamento para alterar a Lei da Concorrência e que visa transpor uma diretiva comunitária. Um poder que logo foi catalogado pelos partidos da oposição como podendo ter problemas de constitucionalidade.
O Governo teve de apresentar no Parlamento uma nova proposta para alterar a Lei da Concorrência, para transpor uma diretiva comunitária, depois da primeira versão ter caducado com a dissolução da Assembleia da República que resultou num novo Governo, eleito a 30 de janeiro.
Esta é uma das poucas mudanças de uma versão para a outra. O Conselho de Ministros da passada quinta-feira, 5 de maio, aprovou a nova proposta de Lei. Na altura, questionado pelo Observador sobre as alterações e se tinham sido reformulados preceitos para afastar o risco de inconstitucionalidade, o Ministério da Economia recusou-se a identificá-las: “à semelhança de todas as iniciativas legislativas apresentadas junto da Assembleia da República, esta proposta de lei poderá ser brevemente consultada no respetivo sítio da internet do Parlamento”.
Esta semana a proposta entrou na Assembleia. Estas alterações à Lei da Concorrência visam transpor para o ordenamento jurídico nacional a diretiva que atribui às autoridades da concorrência mais poderes.
Retirada norma que daria poder de apreensão de emails apagados ou não lidos
“Proceder à busca, exame, recolha e apreensão ou cópia, sob qualquer forma, de informações ou dados, em qualquer formato, físico ou digital, designadamente, documentos, ficheiros, livros, registos ou mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante, independentemente de parecerem não ter sido lidas ou de terem sido apagadas, qualquer que seja o suporte, estado ou local em que estejam armazenadas, nomeadamente num sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, servidores, computadores portáteis, telemóveis, outros dispositivos móveis ou outros dispositivos não previamente identificados com precisão, acessíveis ao visado ou à pessoa sujeita a busca e relacionadas com o visado.”
Esta era a norma que constava da primeira versão do diploma que vai alterar a Lei da Concorrência e que, agora, nesta nova proposta é modificada. Era uma norma que tinha suscitado dúvidas de constitucionalidade e isso mesmo tinha sido referido nas reuniões que ainda aconteceram, no Parlamento, na discussão da primeira versão. Mas nem tudo pode ter ficado sanado.
Na defesa dessa primeira versão coube ao então secretário de Estado do Comércio e Defesa do Consumidor, João Torres — que hoje se senta na bancada parlamentar do PS e que subiu a secretário geral adjunto no partido — rejeitar que poderia haver inconstitucionalidades. “Queria deixar aqui bem claro que se o Governo apresenta esta proposta de Lei é porque a não considera inconstitucional”, mas deixou a porta aberta para em sede de especialidade poder fazer-se “as devidas ponderações sobre as normas que o Governo sugere”.
Agora o Governo — que tem apoio de maioria parlamentar — deixa cair essa norma. Isto acontece até depois do Tribunal Constitucional ter considerado contra a lei fundamental a legislação do cibercrime que dava ao Ministério Público o poder de aceder a comunicações eletrónicas privadas em investigações de crimes desta natureza, sem autorização prévia de juízes. Mas é mesmo por causa desse veto que a nova versão pode, segundo advogados ouvidos pelo Observador, não estar completamente limpa de ferir a Constituição.
É que, segundo esta nova versão, nos poderes de busca, exame, recolha e apreensão da Autoridade da Concorrência, fica inscrita a possibilidade de “inspecionar os livros e outros registos relativos à empresa, independentemente do suporte em que estiverem armazenados, tendo o direito de aceder a quaisquer informações acessíveis à entidade inspecionada” e “tirar ou obter sob qualquer forma cópias ou extratos dos documentos controlados e, sempre que o considere adequado, continuar a efetuar esse tipo de pesquisa de informação e seleção de cópias ou extratos nas instalações da AdC ou em quaisquer outras instalações designadas”.
A redação é nova, mas continua a suscitar dúvidas a alguns advogados, que ainda questionam a constitucionalidade de a Autoridade da Concorrência, no âmbito de buscas, poder aceder a correio eletrónico. É uma questão que tem, aliás, sido levantada em vários processos contra-ordenacionais, mas ainda nenhum caiu por causa disso já que se obtém, até, outro tipo de provas.
Com a retirada destas apreensões cai, consequentemente, por terra a admissibilidade como prova “quaisquer documentos, declarações orais ou escritas, mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante, independentemente de parecerem não terem sido lidas ou de terem sido apagadas, gravações, ficheiros e quaisquer outros objetos que contenham informações, independentemente do formato e do suporte em que tais informações se encontrem armazenadas.” Mas fica a admissão de provas que “não forem proibidas por lei”.
Isto além de poder “aceder sem aviso prévio a todas as instalações, terrenos, meios de transporte, dispositivos ou equipamentos do visado, ou às mesmas afetos”, “proceder à selagem de quaisquer instalações, livros ou registos relativos ao visado, ou às mesmas afetos, em que se encontrem ou sejam suscetíveis de se encontrar as informações, bem como os respetivos suportes”, “solicitar a qualquer representante ou trabalhador do visado, esclarecimentos necessários ao desenvolvimento das diligências” e “inquirir, no decurso das diligências, qualquer representante ou trabalhador da empresa ou da associação de empresas, sobre factos ou documentos relacionados com o objeto e a finalidade da busca, registando as suas respostas”.
Muitos destes poderes já estão consagrados na atual Lei da Concorrência. Qualquer destes poderes de busca e apreensão exige “autorização da autoridade judiciária competente“. Mas continua a haver dúvidas nesta formulação.
Quando a primeira versão chegou ao Parlamento, a referência a autorização judiciária competente encerrou críticas por parte de alguns advogados, na medida em que consideravam que os poderes de busca e apreensão eram muitos para que se pedisse apenas a intervenção de autoridade judiciária, o que poderia significar a autorização apenas do Ministério Público e não de juiz. Agora os poderes já não chegam tão longe, mas a figura da autorização da autoridade judiciária mantém-se. Mas já é essa a formulação da atual Lei da Concorrência.
Autoridade da Concorrência alvo de ingerência pelo Governo?
“A AdC é independente no exercício das suas funções e não se encontra sujeita a superintendência ou tutela governamental, não podendo o Governo dirigir instruções ou recomendações nem emitir diretivas ao conselho de administração sobre a sua atividade, nem sobre as prioridades a adotar na prossecução da sua missão, podendo contudo ser destinatária de regras estratégicas gerais ou orientações em matéria de prioridades não relacionadas com inquéritos setoriais ou com processos específicos para aplicação dos artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.”
É assim que passa a constar dos estatutos da Autoridade da Concorrência, tendo sido introduzida nesta alteração a possibilidade de a entidade supervisora ser destinatária de “regras estratégicas gerais ou orientações em matéria de prioridades”.
Esta mudança já estava prevista na primeira proposta, o que levou à crítica de que se trataria de uma forma de ingerência do Governo na atuação da Autoridade da Concorrência.
Nos comentários feitos à primeira versão da proposta de Lei, logo a Autoridade da Concorrência tinha referido que, no seu entender, a norma era “uma modalidade nova de intervenção do Governo sobre a missão da Autoridade da Concorrência”, realçando, mesmo, na altura que a mudança era contrária ao espírito da diretiva que é transposta que pretende reforçar a independência destes reguladores.
Também na discussão no Parlamento sobre a primeira versão, João Torres garantiu que “não existe nem nenhuma vontade nem intenção de pôr em causa a independência da Autoridade da Concorrência”.
Uma nova prática restritiva da concorrência
“Estabelecer, no âmbito do fornecimento de bens ou serviços de alojamento em empreendimentos turísticos ou estabelecimentos de alojamento local, que o outro contraente ou qualquer outra entidade não podem oferecer, em plataforma eletrónica ou em estabelecimento em espaço físico, preços ou outras condições de venda do mesmo bem ou serviço que sejam mais vantajosas do que as praticadas por intermediário que atue através de plataforma eletrónica.”
Ou seja, inclui-se, agora, uma nova prática restritiva que tem a ver com as plataformas eletrónicas de alojamento e preços. Não constava da primeira versão da proposta de Lei, a que caducou pela dissolução da Assembleia da República, mas já tinha estado num anteprojeto. E nesse âmbito tinha sido comentada pela Autoridade da Concorrência — que agora terá de voltar a pronunciar-se sobre a proposta — que colocou dúvidas no estabelecimento desta norma.
É uma novidade nesta nova versão que deve levar a mais audições no Parlamento e requer adaptação do regime.
Autoridade da Concorrência deixa de ter dinheiro das coimas
Já estava previsto na primeira versão do diploma e mantém-se na que entrou agora no Parlamento. A Autoridade da Concorrência deixa de ter direito às receitas das coimas que aplica.
O fruto dessas contra-ordenações passará a reverter em 80% para o Estado e em 20% para o Fundo para a Promoção dos Direitos dos Consumidores, face ao que se passa hoje em dia em que as coimas seguem em 60% do valor para o Estado e 40% ficam na AdC.
Uma mudança que a própria Autoridade da Concorrência anuiu, dizendo que é uma norma que visa dar mais imparcialidade às entidades supervisoras, já que não decidem em causa própria, a pensar no seu próprio orçamento.
O financiamento da AdC é salvaguardado pelos contributos dos reguladores setoriais. ASF (seguros), CMVM (mercado de capitais e fundos), Anacom (comunicações), AMT (transportes), ANAC (aviação), IMPIC (imobiliário e construção), ERSAR (águas e resíduos), ERSE (energia) e ERS (saúde) são os reguladores que anualmente têm de enviar dinheiro para a Concorrência.
O Estado, além de ficar com mais dinheiro das coimas, pode mesmo garantir montantes mais elevados já que existe, no novo regime, uma alteração com referência às coimas. É que estas passam a ser no máximo de até 10% mas do “volume de negócios total, a nível mundial”. Na atual redação prevê-se apenas que o volume de negócios considerado seja o de cada uma das empresas infratoras.