É difícil contabilizar um universo. Mas ao Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, têm chegado nas últimas três semanas várias crianças que fugiram da guerra na Ucrânia e que não têm qualquer tipo de identificação — o que significa que podem mais facilmente ser arrastadas para redes de tráfico humano. “Quem garante que são filhas das pessoas que as estão a acompanhar? Que as pessoas que estão com elas não são traficantes?“. Não têm sequer passaportes. Saíram de um país em guerra e, quando chegam a Portugal, apenas têm para mostrar às autoridades uma certidão de nascimento. “Mas quem é que garante que correspondem àquelas crianças” cujos nomes os inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras lêem no documento que lhes é apresentado pelo adulto que as traz pela mão? “As certidões de nascimento não têm fotografia, não há como confirmar.” Mais do que perguntas, as inquietações que a inspetora da Unidade Anti-Tráfico de Pessoas do SEF, Edite Fernandes, vai partilhando, em conversa com o Observador, são as mesmas com que os inspetores dos controlos de fronteira se deparam diariamente.
Até às 13h00 desta quarta-feira, já 11.057 cidadãos ucranianos tinham apresentado pedidos de proteção temporária a Portugal, apurou o Observador. “A quase totalidade já está em território português”, assegura fonte do SEF. Dos que cá chegaram, “centenas atravessaram a Europa inteira e não foram controlados uma única vez“, garante Edite Fernandes. E o que fazem as autoridades nacionais, quando os cidadãos ucranianos chegam ao país? “Temos de os deixar entrar. Já entraram no Espaço Schengen. Utilizamos como boa a identificação que apresentam. Não deixamos de lhes dar proteção”, explica a inspetora.
Mesmo que isso implique deixar entrar potenciais traficantes de pessoas que levam pela mão crianças órfãs, fazendo-se passar por seus pais. Ou, então, criminosos, que trouxeram ao engano, prometendo-lhes uma vida em Portugal, mulheres ucranianas para as explorar a nível laboral ou sexual. “Infelizmente, com toda a crueldade, a guerra é uma boa matéria-prima para alimentar essas redes criminosas, que podem vir a ser aumentadas no âmbito desta confusão”, diz ao Observador Jorge Bacelar Gouveia, presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT).
É que este é um problema que começa muito antes, a milhares de quilómetros de distância de Lisboa, nas fronteiras da Ucrânia, de onde já saíram mais de três milhões de pessoas. “Nestas alturas de crise, em que as pessoas estão aflitas e só querem chegar a um porto seguro, há muita gente que, tomando partido desta fase de confusão institucional e pessoal, tenta lucrar com isto”, explica Edite Fernandes.
ONU. Mais de 4,8 milhões de pessoas fugiram da Ucrânia, 2,8 milhões para fora do país
“Imaginemos a mãe de uma criança que está na Ucrânia e que só quer que o filho chegue a Portugal, onde está a tia ou um tio. E aparece alguém: ‘Não consegues sair da Ucrânia? Pagas-me mil e quinhentos ou dois mil euros e eu levo-te o filho’.” A inspetora da Unidade Anti-Tráfico de Pessoas do SEF não precisa de continuar a imaginar o resto da história — já sabe como ela acaba. Já viu a mesma situação acontecer uma e outra vez, como no ano passado, no terramoto do Haiti.
“Neste momento, só podemos especular com base em situações anteriores e no conhecimento que temos da forma como as redes criminosas operam. No meio do caos, há possibilidade para tudo”, diz Edite Fernandes, continuando: “Imagino que muitas crianças estejam a atravessar a Europa quase sozinhas. O grande risco é perder o rasto destas crianças todas. Não sabemos quem são, não sabemos sequer que estão a viajar. Sabemos que estão muitas em trânsito. E será que vão alguma vez chegar ao destino? E quem é que vai dizer que cá estão? E se não chegarem, quem vai dar por falta delas?”
Reforço de controlo de fronteiras pode vir tarde para muitas vítimas
Mais perguntas, zero respostas. Nem o SEF nem a Europol têm, para já, dados de crimes transfronteiriços detetados desde a invasão russa da Ucrânia. Aliás, só na semana passada — duas semanas após a invasão — é que a Europol anunciou um reforço nos postos de controlo de segurança secundários nas fronteiras externas da União Europeia, para evitar a entrada de criminosos ou de produtos ilegais. “Nós acabámos de começar a prestar apoio, no que diz respeito à situação na Ucrânia, e é muito cedo para ter resultados para anunciar”, disse fonte da Europol, questionada pelo Observador.
Em Portugal, o SEF também ainda não detetou casos de tráfico de seres humanos ou tentativas de entradas de criminosos ou terroristas, mas na sequência do alerta da Europol, anunciou que vai fazer controlos móveis aleatórios na fronteira com Espanha, para evitar o tráfico de pessoas em fuga da Ucrânia. Só que pode já ser tarde, muitas crianças e mulheres podem já ter caído nas redes de tráfico humano. “Nos países de entrada em Schengen, há uma enchente. Temos visto filas de horas e horas. Aquilo em que temos de insistir é que essa primeira triagem seja feita, para irmos buscar o fio à meada. É por isso que os postos de controlo nos países na fronteira com a Ucrânia têm de ser reforçados”, defende Edite Fernandes.
Alertar é agora a palavra-chave. A começar pela imigração ilegal: “As pessoas não precisam de pagar a ninguém para chegar a Portugal. Há sempre alguém que supostamente oferece uma garantia disto ou daquilo: ‘Se vieres comigo, eu levo-te aqui e arranjo-te um emprego. Pagas-me 1.500 euros e levo-te até Portugal‘. Temos de alertar as pessoas para não recorrerem aos serviços de qualquer intermediário”, diz a inspetora Edite Fernandes. Até porque a probabilidade de o destino ser outro que não aquele que lhes foi prometido é grande. As possibilidades são infinitas.
As pessoas traficadas para Portugal como mercadoria e a equipa que as tenta salvar
Além do caos nas fronteiras, as características das pessoas que estão a fugir da Ucrânia — maioritariamente mulheres e crianças — são precisamente aquelas de que as redes de tráfico humano se aproveitam: fragilidade e vulnerabilidade. “Neste momento, as vítimas ucranianas tiveram de abandonar os seus pertences, o seu país, os seus familiares. A fragilidade emocional é tão grande que é muito fácil, mesmo para pessoas com conhecimentos nestas áreas, serem levadas ao engano e entrarem em redes de tráfico humano — a terceira atividade mais rentável do mundo, depois do tráfico de drogas e armas”, explica ao Observador Vitor Silva, presidente da Associação Portuguesa de Criminologia, lamentando: “Além de serem vítimas da guerra, algumas vão ser vítimas destes indivíduos.”
As crianças são a grande preocupação das autoridades, por serem mais vulneráveis que os adultos. Casos com um final feliz são mais difíceis de encontrar. Mas existem: como o do rapaz de apenas 11 anos que, ao décimo dia da invasão russa da Ucrânia, conseguiu chegar sozinho à fronteira da Eslováquia, com uma mochila às costas, um saco de plástico numa mão e um número de telefone escrito a caneta na outra.
Cerca de milhão e meio de crianças já foram obrigadas a fugir da Ucrânia, segundo dados divulgados pela Unicef esta terça-feira: são 73 mil por dia — o que significa que uma criança torna-se refugiada quase a cada segundo que passa. “Objetivamente, haverá órfãos. A guerra vai matar muita gente e também vai matar pais e não matar filhos. É um dado objetivo”, começa por explicar Bacelar Gouveia, acrescentando: “Os criminosos aproveitam a situação de vulnerabilidade, que neste caso é de vários tipos: não saber a língua, não estar no seu país, a sua idade, imaturidade. São várias vulnerabilidade que se juntam e potenciam o grande risco que é o de essas crianças serem submetidas a essas redes internacionais de tráfico — que não vêm de fora da UE, que estão cá dentro.”
“Uma guerra é uma boa oportunidade para terroristas e criminosos entrarem na União Europeia”. E também droga, armas e produtos ilegais
No anúncio feito pela Europol acerca do reforço nos postos de controlo de segurança secundários, esta agência alertava para a possibilidade de entrada de terroristas na União Europeia. “Uma guerra é uma boa oportunidade não só para os terroristas, como em geral para todos os criminosos entrarem. Num esforço de guerra, há uma concentração de atividades do Estado num certo sentido e, como os meios não são elásticos nem inesgotáveis, a zona da segurança fica descurada a favor da zona do bem estar, da alimentação aos refugiados, da saúde”, diz ao Observador Bacelar Gouveia. Para o jurista, a lista da União Europeia dos terroristas pouco serve já que, “se as pessoas não têm passaporte, não podemos saber se estão ou não nessas listas”.
Unicef. Guerra na Ucrânia faz 73 mil crianças refugiadas por dia
O diretor da OSCOT alerta também para a possibilidade de, “na massa de pessoas que entram em vários países através da Ucrânia”, haver um “conjunto de pessoas que também sejam criminosas”. E especifica: “Pessoas que não estejam documentadas e estejam registadas como condenadas, ou sobre as quais pende um mandado de captura internacional. Portanto, se as pessoas entram sem registo, não se sabe bem qual é a sua situação do ponto de vista penitenciário. Podem ser pessoas condenadas e que estão em fuga.”
A par do tráfico de seres humanos e das preocupações mais direcionadas para os menores de idade, o tráfico de droga é outro tipo de crime que a guerra pode potenciar. “Se nós necessitássemos de tirar uns quilos de droga ou armas ou algo ilegal de um país, teríamos de aproveitar uma oportunidade — e a guerra é uma boa oportunidade”, argumenta o presidente da Associação Portuguesa de Criminologia. “As próprias entidades, ao ver aquela coluna de camiões e carros que vão dar apoio, não vão fazer uma fiscalização de embalagem a embalagem“, acrescenta Vítor Silva, ressaltando no entanto que “dificilmente as coisas poderão acontecer em grande escala”.
Equipas do IEFP e do SEF na Polónia e Roménia para apoio aos refugiados
Fiscalizar os refugiados “não é uma medida para os perseguir”, mas para os proteger
Seja qual for o crime, o objetivo das forças policiais é sempre evitar que eles sejam cometidos. “É por isso que os controlos têm de ser reforçados”, explica a inspetora Edite Fernandes, acrescentando: “Não é para dificultar a vida, é para manter a segurança da Europa e dessas pessoas, para garantir que, a partir do momento em que entram [em território comunitário], estão sinalizadas: são requerentes de proteção temporária.”
A inspetora da Unidade Anti-Tráfico de Pessoas insiste na necessidade do controlo na entrada dos países vizinhos da Ucrânia: “Quanto mais conseguirmos triar quem entrar, mais facilmente essas pessoas aparecem no sistema.” No mesmo sentido, Bacelar Gouveia lembra que “há sobretudo uma segurança das pessoas que vão entrar porque ficam registadas e os seus dados, origem, história, ficam na posse das autoridades do país para onde querem ir”. “Não é uma medida para as perseguir, é uma medida de proteção dessas pessoas”, remata.