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Em 2013, para celebrar os vinte anos do Programa Especial de Realojamento, que em 1993 se propôs a erradicar barracas e construções precárias em 28 municípios do País — 19 na área metropolitana de Lisboa, nove na do Porto —, os responsáveis do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) foram tentar perceber quantas das 48.416 famílias recenseadas na altura continuavam ainda à espera de casa. No final do processo, ficaram agradavelmente surpreendidos.
“Estava 90 e tal por cento concluído, faltava muito pouca coisa”, recorda ao Observador Victor Reis, à data presidente do instituto, imediatamente antes de enumerar os “mas” que, de alguma forma, sete anos depois, nos trazem até à realidade destapada e agudizada pela pandemia, sobretudo nos municípios à volta da capital, onde já em 1993 os problemas eram maiores — na altura eram 33 mil as famílias a viver em construções precárias na área metropolitana de Lisboa e 15 mil as residentes no Porto.
“Percebemos que alguns bairros, apesar de já existirem na altura, não tinham sido integrados no PER. Foi o que aconteceu com o bairro da Jamaica, no Seixal, por exemplo. Depois havia alguns municípios que, ao contrário do que se previa no próprio PER, não tiveram uma atitude de fiscalização e de repressão relativamente à construção de novas barracas ou não trataram de demolir as que iam sendo deixadas vagas, e foram absolutamente permissivos”, revela o ex-presidente do IHRU.
Ou seja, mais de 43.500 das famílias que em 1993 viviam em condições precárias, muitas sem luz, água ou casa de banho e saneamento, tinham entretanto sido realojadas — mas inúmeras outras tinham ocupado as suas barracas ou construído novas, naqueles mesmos locais ou noutros bairros clandestinos, que foram crescendo à medida das necessidades de quem já cá vivia ou foi chegando ao país.
Na impossibilidade de, tendo em conta as novas variáveis, perceber a dimensão real do problema, Victor Reis promoveu um novo levantamento junto dos 308 concelhos portugueses. Em 2018 — já o responsável tinha deixado o cargo e o IHRU —, o resultado veio revelar que ainda eram 25.762 as famílias “em situação habitacional claramente insatisfatória” em 187 municípios, cerca de 19 mil nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, 13.452 apenas nos concelhos em redor da capital.
Não será uma coincidência o facto de os municípios com mais famílias por realojar — Lisboa, Amadora, Almada e Loures —, serem praticamente os mesmos que, nas últimas semanas, se têm revelado como os que mais novos casos de infeção pelo novo coronavírus têm registado. Para além de viverem em situação de pobreza, em habitações precárias e de dimensões exíguas, por vezes ainda sem água, luz ou esgotos, estas famílias tendem também a ter situações profissionais mais instáveis e a assegurar trabalhos impossíveis de concretizar à distância que o combate à pandemia recomenda.
No bairro da Cova da Moura, na Amadora, um dos municípios que mais preocupa as autoridades de saúde — Sintra, Lisboa e Loures são os outros —, a Associação Moinho da Juventude está a servir cinco vezes mais refeições do que antes do início da pandemia: eram 64 por dia, agora são 340. “São os últimos a ser contratados e os primeiros a serem despedidos. Há muita gente com vínculos precários e que foi mandada para casa”, descreveu recentemente ao Público um membro da direção da associação, que, por motivos de “agenda interna e fluxo de trabalho”, não se mostrou disponível para receber o Observador.
Neste, como nos demais bairros de origem clandestina do país, os moradores que conseguiram manter os empregos continuaram a trabalhar fora de casa durante os últimos três meses e a arriscar-se diariamente nos transportes públicos, enquanto uma outra parte da população cumpria a quarentena em teletrabalho e sem perda de rendimentos.
Podia ser apenas senso comum, mas são também as conclusões de um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública: 54% das pessoas que ganham menos de 650 euros e 76% das pessoas com escolaridade até ao 9.º ano têm de ir para os respetivos locais de trabalho, enquanto 75% das que têm rendimentos superiores a 2.500 euros e 74% das que têm um curso superior podem fazê-lo a partir de casa.
Conclusão? A pandemia pode até ter vindo aumentar “o fosso das desigualdades” em Portugal, mas há muito tempo que ele tem vindo a ser escavado. No limite, esteve sempre lá, desde que em 1960 as populações rurais começaram a deslocar-se em direção a Lisboa e Porto, em busca de trabalho nos serviços e na indústria, e trataram de construir à mão, nos arredores, um sítio onde ficar.
Loures, Almada e Amadora são os casos mais graves: “Na cidade de Lisboa, tal como no Porto, já não há propriamente barracas”
“A maior parte das pessoas não tem memória do que eram as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto nos anos 80 e no princípio dos anos 90, em matéria de bairros de barracas e de miséria. Mas a verdade é que, em muitos casos, as pessoas limitaram-se a mudar de casa, a precariedade manteve-se”, diz ao Observador o presidente do IHRU entre 2012 e 2017.
Ainda assim, ressalva, quase 26 mil parecem-lhe demasiadas famílias em situação de profunda pobreza e carência habitacional. “Uma coisa é um bairro de barracas propriamente dito, ou seja, aquilo que nós podemos considerar total e completa precariedade habitacional — é preciso mesmo demolir, aquelas casas não têm qualquer viabilidade, as famílias têm mesmo de ser realojadas. Coisa distinta são casas onde pode haver alguma viabilidade de recuperação, mas em que as câmaras optam por demolir e as incluíram nesse universo de quase 26 mil famílias. Dá-me um bocado a ideia de que houve muitas câmaras municipais que exageraram no tipo de levantamento que fizeram.”
Mesmo que o número final até possa ter sido empolado, este será real: só na área metropolitana de Lisboa, 9.940 famílias moram em barracas. A terminologia é do próprio estudo, que subdivide o tipo de habitação consoante os materiais utilizados para a construção: 1.258 vivem em “barracas” e 8.682 em “barracas de pedra, alvenaria ou tijolo”.
Basta multiplicarmos cada uma delas por um número médio de quatro pessoas por família (um número baixo) para chegarmos a um valor ainda mais impressionante: 39.760, eis quantas pessoas podem estar hoje, em 2020, a viver em bairros ou aglomerados de barracas às portas de Lisboa.
De acordo com os últimos Censos, em 2011 havia, em todo o país, 6.690 pessoas a viver em barracas e 10.758 em habitações precárias. Em 2019, Rita Silva, dirigente da Habita! (Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade), já tinha alertado não só para o crescimento dos números, mas também para os novos casos acabados de surgir na zona de Lisboa, muitos graças à subida do preço das rendas e da habitação própria, já depois da divulgação do levantamento do IHRU: “Há quem monte novas barracas escondidas e há pessoas que, vendo-se sem habitação, têm vindo a ocupar casas e que não conseguem ter acesso a água ou luz”.
É uma história recorrente. “Em 1969, na Brandoa, caiu um prédio ilegal de cerca de seis andares que estava em construção, e foi aí que o Governo se deu conta de que existia esta realidade, que era crescente ao redor das áreas metropolitanas. Agora, com a Covid, está a acontecer o mesmo”, diz a arquiteta, urbanista e professora Isabel Raposo, que em 2016, no Grupo de Estudos Sócio-Territoriais, Urbanos e de Acção Local (GESTUAL), da Faculdade de Arquitetura de Lisboa, coordenou um levantamento das Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI) na área metropolitana de Lisboa.
1.713 foi o número a que chegaram, depois de dois anos de trabalho, e que não pode ser confundido, avisa, com o número de bairros precários (ou, como prefere chamar-lhes, “autoproduzidos”, por aquilo que diz ser a “capacidade de as pessoas resolverem o seu problema de habitação, apesar das carências, e de o fazerem fora das normas legais). Sobre esses bairros não há informação compilada. Ainda recentemente, por exemplo, identificou o bairro do Zambujal, no topo norte de Loures, que não conhecia.
Ao contrário do que acontece com os bairros de barracas, que começaram a surgir em torno de Lisboa e Porto na década de 60 do século passado, as AUGI, contextualiza, são bairros ilegais, mas não são necessariamente precários — e isso faz toda a diferença, tanto no sentido prático como no legal. “Embora a construção não fosse reconhecida nem oficializada, e tenha sido feita em zonas onde não existia um plano urbano, as pessoas eram proprietárias dos terrenos onde construíram as suas casas — ou em altura ou moradias. No fundo, foram os loteadores clandestinos que se substituíram ao Estado, que não resolvia o problema da habitação de quem chegava à cidade, e que deram a estas pessoas oportunidade de terem um alojamento com algumas condições não muito longe dos centros e das zonas industriais onde iam trabalhar”, explica.
Mas mesmo nestes casos há algumas situações mais precárias, porque estão em zonas que não podem ser requalificadas ou porque estão em risco de construção. “É o que acontece no chamado conjunto de bairros da vertente sul de Odivelas, que se encontra numa zona muito inclinada e não é reconvertível no quadro da lei das AUGI, que apareceu em 1995, como uma possibilidade de regularizar as situações destes moradores. Na Amadora, por exemplo, Moinhos da Funcheira e Brandoa foram AUGI, que entretanto foram objeto de várias intervenções. De acordo com o estudo, que atualizámos em 2017, só em 30% dos casos é que essa reconversão já tinha sido feita”, conclui.
Por muito que dentro de Lisboa ainda existam, por legalizar, bairros de génese ilegal, o mesmo já não acontece com os chamados bairros de barracas, garante Victor Reis. “Na cidade de Lisboa, tal como no Porto, já não há propriamente barracas, poderá haver algumas situações, mas residuais, em terrenos privados. Onde há situações com grande expressão de barracas é em Loures e na Amadora, e em especial em Almada — o Segundo Torrão, na Trafaria, e as Terras da Costa. Depois, no Seixal, há o bairro da Jamaica e Santa Marta de Corroios, que é um dos grandes bairros de barracas da margem sul e que até foi incluído no PER, mas o processo praticamente nem foi iniciado”, enumera.
Por um lado, acredita, terá havido falta de empenho na resolução do problema por parte de algumas autarquias, por outro existirão questões mais complicadas, como as financeiras: “O Governo não tem dinheiro para isto, são muitos milhões, e agora com esta crise mais difícil se tornará”.
O papel das autarquias é fundamental: “O PER tinha uma disposição que dizia que as câmaras tinham a obrigação de impedir o aparecimento de mais barracas. Houve municípios que tiveram uma vida difícil, mas levaram até às últimas consequências essa política, com a demolição de barracas. Foi o que aconteceu em Lisboa, na altura era Vasco Franco o vereador com o pelouro da habitação social, enquanto Jorge Sampaio era presidente da Câmara, e depois com o próprio João Soares. E aconteceu em Oeiras, com Isaltino Morais; com Narciso Miranda em Matosinhos; em Cascais; na Amadora, com Carla Tavares [ex-vereadora e atual presidente da câmara]… Se tivesse havido essa atitude em todo o lado, como é evidente, não estávamos hoje perante a situação que temos”, acredita o ex-responsável pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana.
Mesmo assim, por muito que pudesse não ser tão grave, reconhece, o problema da precariedade habitacional continuaria a colocar-se, sobretudo na zona da capital. “É uma distribuição que tem muito a ver com a pressão migratória de comunidades provenientes do estrangeiro e também com o fenómeno que faz com que as comunidades ciganas sejam empurradas do Alentejo para Lisboa, e não para o Norte. Ficam em Lisboa porque é aqui que têm as suas teias de relações familiares, têm muito a lógica dos clãs”, contextualiza. “No Porto não há aquilo que se podem considerar bairros de barracas, mas ainda há as ilhas, que são aquelas construções nos interiores dos quarteirões da cidade, que são dois corredores com casas muito pobres, de um lado e de outro, com casa de banho ao fundo. Estão a tentar reabilitá-las, mas ainda há muitas famílias a viver nessas condições e sem casas de banho.”
Contactadas pelo Observador, no sentido de perceber quantas famílias estão atualmente em situação de carência habitacional nos respetivos concelhos e na tentativa de saber se com a pandemia aumentaram os casos de ocupação de casas ou de construções de novas habitações precárias, as Câmaras Municipais de Loures, Almada e Amadora, que em 2017 reportaram ao IHRU, respetivamente 2.673, 2.735 e 2.839 famílias por realojar, não responderam.
Mesmo ao lado do aeroporto de Lisboa: “As cobras e as ratazanas entram à noite e as crianças são mordidas”
“Descalabro” é a palavra que o Irmão José Manuel, Missionário Comboniano há três anos a dar apoio social às famílias mais necessitadas da freguesia de Camarate, em Loures, utiliza para descrever a situação instalada nos últimos três meses. “São situações que se foram acumulando ao longo do tempo, desde 1970, e que nunca foram sendo resolvidas, ficaram sempre pior. Agora então é o descalabro. Todos os dias aparecem novos casos de infeção, todos os dias surgem famílias a pedir ajuda. Damos apoio a 26 bairros, precários e sociais, dentro de Camarate, uns com uma realidade mais dramática do que outros, como os bairros da Torre, das Mós, temos uma família ou outra na Quinta da Fonte, no bairro dos Fetais, no de Angola, no de Santiago, no de Santo António”, vai enumerando.
Os efeitos da Covid-19 são visíveis: “Só no banco alimentar estamos com mais de 200 famílias, antes da pandemia tínhamos 70. Há famílias que perderam todo o rendimento e quase todas têm um ou outro bebé, o que complica ainda mais a situação. Depois, são famílias muito frágeis a nível económico, gastam à medida que recebem o salário, não conseguem ter uma provisão no banco para aguentarem muito tempo sem receber. E já passaram três meses, está a ser uma situação caótica — se já estavam mal, com o vírus ficaram muito pior.”
Poucas situações serão mais extremas do que a que se vive atualmente no Bairro da Torre, mesmo ao lado do aeroporto de Lisboa, já tinha garantido ao Observador a arquiteta Isabel Raposo. Sem água e sem luz há quase quatro anos, as 15 famílias que ainda lá moram (chegaram a ser cerca de 80, mas na primeira década dos anos 2000 a autarquia de Loures deu finalmente início ao processo de realojamento) vivem em condições sub-humanas, denuncia. “Sem luz, as pessoas não podem guardar os alimentos nos frigoríficos, as cobras e as ratazanas entram à noite e as crianças são mordidas enquanto estão na cama”.
A arquiteta descreve os problemas económicos de quem vive no bairro: “Neste momento, estas famílias, que são essencialmente são-tomenses e portuguesas de etnia cigana (sendo que estas têm ainda mais dificuldades, em termos de estigma, em arranjar trabalho, o pouco que conseguem é em venda ou nas vindimas, no verão, sobretudo no Alentejo), sobrevivem com apoios de solidariedade social. Acho que não é a solução, são soluções assistencialistas, mas nesta altura é preciso dar comida a pessoas que não conseguem comer.”
Como acontece em praticamente todos os outros bairros precários da região, os homens trabalham sobretudo na construção civil e as mulheres fazem limpezas — em casas particulares, lares de idosos, hospitais, escritórios, fábricas ou até no vizinho aeroporto. “Ou não puderam parar durante a pandemia ou pararam e precisaram de um apoio exterior para sobreviver”, resume a arquiteta. Muitos, acrescenta, ficaram infetados no processo. Só a necessidade poderá justificar o resto: “No bairro da Torre, por exemplo, a família da presidente do bairro foi ao enterro de um dos sobrinhos e todos ficaram com Covid. São 12 irmãos, ficaram todos em casa e não podiam sair. Como é que estas famílias se sustentam? Como é que têm acesso à alimentação, quando não podem sair de casa para ir trabalhar? O que está a acontecer é que muitas famílias vão mesmo assim trabalhar, de transportes públicos, e pelo caminho infetam outras famílias. É por isso que o Covid está a aumentar nestes bairros”, diz Isabel Raposo.
Ao telefone com o Observador, acabado de chegar da distribuição semanal de cabazes alimentares aos infetados na freguesia, o Irmão José Manuel confirma a teoria. “O medo de perderem o pouco trabalho que têm obriga as pessoas a saírem de casa, mesmo infetadas. Os que trabalham nas obras, como estão assintomáticos, vão trabalhar. E as mulheres, que fazem limpezas, também. São famílias com recursos económicos muito precários, sobretudo pelo tipo de trabalhos que fazem, na maior parte dos casos sem contrato. A maioria é de São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Angola. Depois há uma ou outra de Moçambique, e nos últimos dez anos tem chegado muita gente do Paquistão e do Bangladesh e também do Brasil.”
De regresso a Portugal, e a fazer trabalho social nesta freguesia de Loures há três anos, depois de 18 a ajudar na Colômbia, no Equador e no Peru, o missionário diz-se chocado com a realidade com que se veio deparar, mesmo às portas de Lisboa. “Nunca imaginei que em Portugal pudesse haver situações tão dramáticas como as que existem nos nossos bairros; nem nunca ninguém me tinha falado disso sequer. O problema inicial é a pobreza, sim, mas tudo o que de mau vem com ela também vai aumentar. Os grupos de controlo, armados, dentro dos próprios bairros, já estão mais visíveis; temos grupos de jovens que estão ligados a vendas ilegais e contrabando; e os vícios, o consumo de álcool e de drogas, também têm tendência a aumentar. Os conflitos familiares também se agravaram muito: são muitas pessoas em cada casa, estarem todo o dia fechadas com as crianças que não podiam ir à escola fez com que se agravasse a saúde mental”.
O problema nem será sequer exclusivo dos bairros precários e ilegais — em muitos bairros sociais, em apartamentos funcionais e construídos como mandam normas e projetos mas, com o passar dos anos, a rebentar pelas costuras, a situação não será muito diferente, garante o missionário. “Damos apoio a três bairros de estrutura social — Loureiras, Mós e Quinta da Fonte. Aquilo que acontece é que os próprios bairros já não correspondem à estrutura e às necessidades das famílias. Temos casos de T2 com nove ou dez pessoas dentro, e isto é transversal a todos os bairros da zona”, revela. “As pessoas não têm capacidade de renda, por isso os filhos crescem, casam, constituem as suas próprias famílias e continuam a morar com os pais”:
A questão do realojamento: “Há quem cozinhe nas escadas do prédio, com fogareiros”
O realojamento em massa ou em grandes conjuntos habitacionais não é, para Isabel Raposo, necessariamente a melhor solução porque cria outros problemas. “Nesses bairros, as famílias não têm de pagar renda, nem muitas vezes eletricidade ou água, porque fazem puxadas. Quando são realojados, apesar de a sua situação profissional não se alterar, vão passar a ter de pagar tudo isso”. Como consequência, por vezes começam a recorrer a situações ilegais, como o tráfico de droga.
Victor Reis, durante cinco anos à frente do instituto que tutela a habitação em Portugal, também acredita que o regime de rendas sociais pode ajudar a perpetuar a estigmatização e a marginalização das famílias realojadas. “Quando uma família é colocada num bairro social, cria-se-lhe a ideia de que ganhou um direito para o resto da vida; cria-se-lhe a ideia de que se não pagar a renda, na prática, não acontece nada. Este clima cria uma situação onde as pessoas não são estimuladas a entrarem no chamado elevador social, a procurarem trabalho, a quererem melhorar a sua condição de vida, e vivem numa economia informal, subterrânea e clandestina”, diz ao Observador.
Outro motivo para as dificuldades na resolução do problema da habitação em Portugal, acredita, vai no sentido diametralmente oposto: como existe um teto máximo para as rendas, frequentemente podem dar-se casos de famílias que já romperam com o ciclo de pobreza, mas continuam a usufruir da habitação social — que poderia servir para realojar quem realmente precisa. E dá um exemplo concreto do tempo em que estava no IHRU: “Em Guimarães, quando, após 40 anos sem as rendas serem mexidas, mandei atualizar os rendimentos das famílias fiquei em estado de choque. De repente, realizei que tinha pela frente quadros superiores com rendimentos mensais de três e quatro mil euros líquidos a pagar rendas de três e quatro euros — alguns até de 2,5 euros!”
Num aspeto, o ex-presidente do IHRU concorda com Isabel Raposo: os processos de realojamento, a cargo das autarquias, contribuem frequentemente para criar novos problemas. “São processos muito melindrosos, e muitas vezes podem correr mal. No caso do bairro da Jamaica, começaram a comprar casas, espalhadas por todo o município do Seixal, em edifícios de condomínios normais e estão a realojar essas pessoas. Imagine o choque cultural e social que está a ocorrer entre os condóminos desses prédios e estas famílias que lá estão a chegar, que têm hábitos e vivências completamente diferentes nas formas como usufruem dos espaços comuns de um prédio. Há quem cozinhe nas escadas, com fogareiros, por exemplo.”
Não é um processo de adaptação fácil. “Estas pessoas têm os seus próprios hábitos e modos de vida — que merecem todo o respeito. Não se pode agarrar nelas e atirá-las para ambientes hostis ao seu modo de vida. No final acaba por se criar um problema aos próprios e aos que já lá vivem”, defende Victor Reis, para depois dar mais um exemplo real. “As famílias de etnia cigana que viviam no bairro da Torre, em Loures, ao lado do aeroporto, e que foram realojadas no bairro do IHRU em Vale Figueira, em Almada, estão em choque total com a comunidade local, a ponto de, neste momento, o bairro estar em pandemónio com ocupações ilegais de casas, que estavam vagas, por parte de outras pessoas de etnia cigana, que os que foram realojados estão a trazer para lá.”
Além disso, é difícil para as câmaras encontrarem soluções diferentes de realojamento. Isabel Raposo dá o exemplo concreto do bairro da Torre, onde há dois anos houve um incêndio. “Treze famílias ficaram sem casa e a câmara foi encontrando soluções de forma individual e realojando família a família”. Problema: nesse processo, com cada família a ir para um sítio diferente, quebrou-se a “capacidade de entreajuda” que existia.
Maria Rita, do bairro de barracas para o bairro social
Quando casou, em 1982, Maria Rita foi viver para a “barraquinha” que a sogra e o marido tinham construído na década de 1960, quando chegaram de Trás-os-Montes com cinco filhos, mais uma na barriga, e se instalaram em Vila Chã, na Amadora, um bairro então a nascer, mesmo aos pés do mais conhecido Santa Filomena. A sua história de vida, ao longo dos últimos 38 anos, acaba por ser um exemplo de como funcionaram — ou não — as políticas sociais de habitação implementadas em Portugal.
“O meu sogro era carpinteiro. Como não arranjou logo trabalho, pediu à dona de uma fábrica de sedas, que era proprietária dos terrenos, e ela deixou-os ficar lá. Pediram madeiras e construíram a barraquinha; tinha três quartos, uma sala e a cozinha ao lado, mas não tinham casa de banho, faziam as necessidades numa lata e iam deitar ao ribeiro que passava ali em baixo”, conta ao Observador, a partir de memórias em segunda mão. “Eram tempos muito ingratos, como não tinha trabalho e tinha seis filhos para sustentar, o meu sogro acabou por atirar-se para debaixo de um comboio, tinha a minha cunhada mais nova apenas três meses.”
Casada muito depois da tragédia, aos 17 anos, Maria Rita trabalhava desde os 10, altura em que acabou a escola primária e passou a fazer ela própria os trabalhos de limpeza que a mãe, grávida em fim de tempo, já não conseguia assegurar, mas que não podia perder. Depois disso, nunca mais parou: “Fiz limpezas, vendi farturas à porta do metro de Sete Rios, fui paquete, organizei arquivos e depois comecei a trabalhar em cozinhas e em bares”. O marido, nove anos mais velho e o último de seis irmãos a casar, também tinha emprego fixo, como fundidor e restaurador de pratas e casquinhas.
Aos poucos, foram melhorando a “barraquinha”, onde viviam com a mãe dele, que eventualmente transformaram numa casa: “No início tínhamos uma casa de banho no quintal e fizemos uma fossa. Tínhamos luz — legal —, mas tínhamos de ir buscar água a um chafariz; só muitos anos mais tarde é que veio a água da companhia”.
Fazendo uso da estratégia de união que a arquiteta Isabel Raposo garante que é um dos principais motores da vida no bairro, conta, os vizinhos juntaram-se e começaram por pedir autorização à autarquia para “fazer uma puxada de um ramal que passava na estrada, para pormos um chafariz mais perto”. “Depois, em 1992, na altura em que nasceu o meu filho mais novo, começámos a construir a nossa casa: deixámos a de madeira por dentro e construímos em tijolo por fora — a câmara só deixava construir assim”, lembra.
Três anos depois de ter tido uma casa de banho dentro da própria casa e uma cozinha a funcionar com água corrente, já os filhos tinham 12 e 3 anos, a Câmara Municipal da Amadora aderiu ao PER, mas só dez anos depois, em 2005, é que a família conseguiu finalmente sair do bairro, para uma casa própria, comprada ao abrigo do PER Famílias, programa entretanto criado para acelerar o original e a erradicação de barracas nas áreas de Lisboa e do Porto. “Entrei num concurso público da câmara e comprei um T4 com duas casas de banho na Boba, estou a pagar a casa ao banco”, explica Rita que, aos 55 anos, trabalha como cozinheira para a autarquia.
Na casa que deixaram, realojados pelos serviços sociais da câmara, ficaram uns primos, que tinham três filhos e zero condições de habitabilidade. “Não tinham quartos nem casas de banho, demoliram a casa deles e eles ficaram na nossa. Em 2019, já eles não moravam lá, a casa veio finalmente abaixo”, recorda Maria Rita. Que, por seu turno, com o marido, a sogra e o filho mais novo — o mais velho já tinha, entretanto, casado e saído de casa — seguiu para um novo bairro, de ruas de alcatrão e prédios altos, a menos de um quilómetro e meio de distância.
“O bairro onde moro é um bairro social com realojamento — há rendas pagas à câmara e partes vendidas, como a minha, a preços controlados. A maior parte das pessoas veio dos bairros das Fontainhas e 6 de Maio, na Damaia, e de Santa Filomena e Vila Chã. Há muitas pessoas a viver na mesma casa, há muita gente que não faz nada, a viver dos rendimentos mínimos, e há muito passar de droga. E também há muita gente trabalhadora, há cantoneiros, motoristas, fiéis de armazém e empregadas de limpeza…”, descreve.
De acordo com a Câmara Municipal da Amadora, o bairro Casal da Boba, na freguesia da Mina de Água, uma das mais afetadas pela Covid-19 na zona da capital, tem 700 apartamentos — “502 acolheram famílias oriundas de bairros inscritos no PER, 188 foram alvo de concurso de venda a custos controlados e 10 utilizados para outros realojamentos”.
No local, as diferenças culturais entre moradores acentuam-se sobretudo pela forma como se vivem os espaços comuns, já tinha apontado Victor Reis e concorda Maria Rita, que muitas vezes tem de ir dar uma volta maior para conseguir entrar no próprio prédio, como os demais, protegido por uma pesada porta de ferro, à prova de tudo.
“Fazem-se muitos ajuntamentos na rua, mesmo agora em tempo de Covid. Às vezes chegam a juntar-se aos 50, debaixo do túnel de acesso ao meu prédio. Levam grelhadores, comem, bebem, dançam, falam alto, cantam. Quando não têm aparelhagem, ligam os rádios dos carros. Começam às 19h ou 20h, às vezes às 4h ainda lá estão. No dia seguinte, quando saio para trabalhar, está tudo sujo, há ossos no chão e muitas, muitas garrafas vazias, nem se dão ao trabalho de ir pôr as coisas ao lixo.”
Apesar de a polícia estar atenta (há uma esquadra dentro do próprio bairro) e de, durante o estado de emergência, ter avisado várias vezes os moradores para a necessidade de afastamento social, pouco se alterou — é como se o bairro vivesse de acordo com as suas próprias regras. “Há pessoas que vendem milho grelhado ou asas de frango, chouriços e torresmos feitos em casa, cocadas… há uma grande economia paralela, porque também há muita gente, sobretudo pessoas mais velhas, que não conseguem trabalho”, explica a cozinheira que, já depois dos 30, ao abrigo de outro programa governamental, o Novas Oportunidades, completou o 9.º ano de escolaridade.
Se pudesse, gostaria certamente de viver noutro local, mas, como não pode, Maria Rita nem perde tempo a pensar no assunto. Tanto que, garante, até já se habituou a chegar a casa depois do trabalho e a dar com as ruas barradas por agentes armados, de capacete, colete à prova de bala e “shotgun” na mão. “Só tenho medo que comecem aos tiros. A polícia, de vez em quando, faz rusgas grandes, vêm as carrinhas celulares, o corpo de intervenção. Vão alguns presos e a coisa acalma durante uns tempos. Mas eles já não têm grande respeito pela polícia. Pelo menos a mim e à minha família nunca nos trataram mal.”
Casas vagas não são solução, reabilitar também não
Como é que o problema se resolve? A taxa de propriedades vazias — que era de 32% em 2011 segundo os Censos, e que é apresentada como uma das mais elevadas em toda a Europa — tem sido sugerida como solução possível para o problema. Mas, garante ao Observador Victor Reis, também não será por aí.
“Os Censos de 2011 dão 735 mil casas vagas. Qual é o problema? Primeiro: uma boa parte destas casas está em ruínas, não passa de um monte de pedras. Segundo: outra boa parte delas está em zonas do país em desertificação, onde não há gente, não há procura e para onde ninguém quer ir. Terceiro: uma outra parte está nas mãos de heranças indivisas, cujos herdeiros não se entendem”, vai enumerando. “O que sobra é aquilo a que se chama a carne do lombo, a preços exorbitantes, nas zonas históricas das cidades.”
E aqui entra a segunda eventual solução: a reabilitação. Para o ex-presidente do IHRU, trata-se de “um erro estratégico”. “Aquela ideia do reabilitar como regra leva a que, por exemplo, a Câmara de Lisboa esteja a fazer operações na Avenida da República que, na prática, vão fazer com que cada uma das casas reabilitadas custe o triplo do preço de outras casas que fossem fazer de raiz, por exemplo, dois quilómetros ao lado, no Vale de Santo António ou no Lumiar. Operações como estas, com aqueles prédios que a Câmara comprou à Segurança Social para fazer casas de renda acessível, são puramente suicidas”, defende, para depois dar outro exemplo que considera mal sucedido. “Para fazer o realojamento dos fogos daquela torre do bairro da Jamaica, que entretanto foi resolvida, em vez de ter montado uma estratégia para construir casas e fazer soluções de edifícios para realojar aquelas famílias, o que teria sido mais barato, a Câmara do Seixal meteu-se a comprar casas no mercado. O que é que aconteceu? Provocou inflação de preços e agora as casas estão muito caras e há escassez de oferta.”
A solução, acredita, terá sempre de passar pela construção de mais bairros de raiz, para realojar quem vive em condições que violam o próprio direito constitucional à habitação. “Fala-se em guetos, sim. Mas qual é a alternativa? O que faz os guetos? As casas ou as pessoas? Ou a mistura dos dois?”, questiona Victor Reis. “Conheço ‘n’ exemplos de alojamentos que não deram guetos nenhuns. Como os bairros de Santa Maria da Feira, que foram construídos com o fundo de fomento à habitação dos anos 70 e 80, e que hoje estão absolutamente integrados na comunidade, ninguém os distingue do resto dos edifícios urbanos que há ali à volta”. Segundo Victor Reis, “há ‘n’ exemplos no país de bairros construídos com fins sociais que não viraram guetos, não são guetos”. Porquê? “As famílias criaram os seus modos de vida, os seus empregos, integraram-se, não há questões de estigmatização. É preferível encontrar soluções para que as comunidades possam ter o seu espaço e criarem as suas vivências, do que estar a pretender um tipo de integração à força que depois resulta em conflito.”
Já a arquiteta e urbanista Isabel Raposo, que defende que as soluções alternativas, como os realojamentos in loco, podem ser o caminho a seguir, acredita que a solução terá sempre de fazer parte de um plano maior. E alerta: o problema não diz apenas respeito a quem passa por ele. “A sociedade tem de ter consciência de que esta desigualdade cria problemas para estas famílias, mas também provoca a instabilidade social de todos”. Por isso, avisa: “Não é possível, isto tem de mudar”.