Quando “O Silêncio dos Inocentes” estreou, no Dia de São Valentim de 1991, filmes e séries sobre serial killers eram raros. Hoje, pelo contrário, se fôssemos calcular o número real de assassinos psicopatas com base no que a televisão e o cinema nos mostram chegaríamos a números em que teríamos obrigatoriamente de incluir os vizinhos do lado, o dono do café, o motorista do autocarro e aquela vizinha que protesta diariamente com os funcionários municipais.
O filme revelou-se um sucesso inesperado. Jodie Foster era o nome mais forte do elenco. Dois anos antes, tinha recebido o Óscar para melhor atriz pelo seu desempenho em “Os Acusados”. Anthony Hopkins era um ator sólido, da escola britânica, mas não era uma estrela. O realizador Jonathan Demme, que tinha tido algum sucesso com os filmes “Selvagem e Perigosa” e “Viúva… mas Não Muito”, não parecia o nome mais indicado para dirigir um thriller no limite do filme de terror. A primeira adaptação ao cinema de um romance de Thomas Harris tinha sido um fracasso (“Caçada ao Amanhecer”, de Michael Mann). Contudo, no final da primeira semana de exibição, o filme estava pago. A partir daí foi só lucro. Dinheiro nas bilheteiras, crítica rendida e, um ano depois, os prémios da Academia, derrotando os favoritos “JFK”, de Oliver Stone, e “Bugsy”, de Barry Levinson, que revi recentemente só para confirmar que se o filme estivesse a arder só Annette Bening merecia ser salva.
Na altura, entre as muitas qualidades do filme, os críticos destacaram a química entre Foster e Hopkins ou, para ser exato, entre Clarice Starling, agente do FBI, e Hannibal Lecter, psiquiatra e sociopata que supostamente iria ajudá-la a apanhar Buffalo Bill, um assassino em série que matava e esfolava (literalmente) as suas vítimas. Nos momentos em que contracenam estão sempre separados, primeiro por uma parede de vidro, depois por grades de ferro, e executam uma dança sublime que tanto se assemelha a um ritual de sedução como a uma sessão de terapia. É um interrogatório e um combate de boxe, uma entrevista e uma partida de xadrez. As arremetidas de Hannibal (e da câmara de Demme, repare-se como nos momentos de fraqueza Clarice olha ligeiramente para fora do plano e Hannibal olha diretamente para a câmara, confrontando Clarice e os espetadores) expõem a vulnerabilidade da agente do FBI. Tal como o espetador, Clarice sai física e emocionalmente esgotada destes confrontos, a sacudir o pó e determinada a mostrar uma força que não sabe se tem. Além de novata, Clarice é também uma mulher num mundo de homens (numa das cenas iniciais, entra num elevador só com homens e, mais tarde, antes de fazer uma autópsia, tem de se impor aos agentes parolos, todos homens, de uma terreola de província). Este aspeto é relevante se tivermos em conta que as mulheres são as vítimas preferenciais de Buffalo Bill e que ele próprio deseja mudar de sexo.
Mas se a vulnerabilidade de Clarice – tão bem captada na cena no interior da masmorra do assassino – empresta verdade à personagem – muito diferente dos previsivelmente infalíveis heróis de Hollywood – não é exagero dizer-se que este é o filme de Hannibal Lecter. A interpretação de Hopkins é de tal forma intensa que só precisou de 25 minutos para dominar o filme, assustar os espectadores e ser eleito o maior vilão da história do cinema pelo American Film Institute, batendo, entre outros, Darth Vader, Norman Bates e Max Cady. Há uma cena de grande violência (o momento gore do filme), mas o que o torna mais ameaçador é a postura, a dicção, o olhar, sem os maneirismos que arruínam tantas interpretações de génios e de vilões e com toda a intensidade lunática que imaginamos ser a de uma mente brilhantemente doentia. Acreditamos sempre que a inteligência incomum de Lecter só tem rival na sua frieza. E o grau de ameaça que dele emana não diminui pelo facto de o vermos quase sempre atrás das grades ou de um vidro. Mesmo encarcerado e sem poderes sobrenaturais, Lecter é o senhor da cena. Como diz Jack Crawford, o mentor de Clarice Starling: “não vai querer Hannibal Lecter dentro da sua cabeça.”
Mas Lecter entrou nas nossas cabeças e na nossa cultura. A sua popularidade originou outros três filmes (dois deles com Hopkins e nenhum tão bom como “O Silêncio dos Inocentes”) e uma série de televisão, em que o dinamarquês Mads Mikkelsen desempenha o papel do psiquiatra. A sua deixa mais célebre é também a mais sinistra: “I ate his liver with some fava beans and a nice Chianti”, considerada pelo AFI uma das melhores da história do cinema.
Um canibal à nossa mesa
Pois, há esse pormenor. Não foi apenas o desempenho de Brian Cox, o Dr. Lecter no filme de Mann, que foi obliterado pela extraordinária performance de Hopkins. Fascinados pelos seus modos inquietantes e irresistíveis quase esquecemos que Lecter é um canibal. E, se não esquecemos, pomos o seu canibalismo gourmet ao nível de um adereço que ajuda a definir a personalidade. Os hábitos culinários de Lecter são a Smith & Wesson de Harry Callahan ou o chicote e o chapéu de Indiana Jones. Em vez de uma prova das suas perturbações mentais são uma manifestação da sua superioridade intelectual e cultural (repare-se na sua obsessão pela falta de maneiras ou por qualquer forma de rudeza no trato).
Para criar a sua personagem, o escritor Thomas Harris, autor dos romances que deram origem aos filmes, inspirou-se em alguns assassinos em série reais, como o mexicano Alfredo Ballí Treviño, um médico de Monterrey suspeito de ter assassinado vários jovens que viajavam à boleia, e Albert Fish, violador de crianças e canibal que ficou conhecido como o “Vampiro de Brooklyn”. A atração e repulsa que casos semelhantes nos provocam distorcem a realidade do canibalismo porque o reduzem a essa dimensão patológica quando, de acordo com Carole A. Travis-Henikoff, no seu excelente livro Dinner With a Cannibal: the complete history of mankind’s oldest taboo, representam apenas 1% do total de casos conhecidos na longa história do canibalismo.
Foi Cristóvão Colombo quem, ao mesmo tempo que descobria a América para os europeus, legou o termo “canibal” à humanidade. Logo na primeira viagem, em 1492, registou nos seus diários a existência de índios comedores de carne humana. Os habitantes da ilha de San Salvador referiam-se a estes como “caribes” e é assim, ou como “canibes”, que Colombo os identifica. Na segunda viagem às Antilhas, fala pela primeira vez em canibais, querendo com isto dizer consumidores de carne humana.
Como é óbvio, o canibalismo (ou antropofagia) não passou a existir com a chegada de Colombo à América. Encontramos referências na mitologia, na Bíblia e na literatura (há o célebre episódio de Ugolino de Pisa no Inferno, de Dante, ao qual Jorge Luis Borges dedicou um dos seus nove ensaios dantescos). De acordo com o mito, o deus romano Saturno (inspirado no grego Cronos) devorava os filhos à nascença para que não se cumprisse a profecia de que seria deposto por um deles (o que, inevitável e tragicamente, acaba por acontecer).
A ingestão de carne humana é mencionada em pelo menos nove versículos bíblicos, e em quase todos como uma possibilidade atroz, uma profecia de desgraça. Em Levítico 26:29, Deus avisa o povo de Israel que a desobediência lhes sairá cara “porque comereis a carne dos vossos filhos, e a carne das vossas filhas comereis.” Em Deuteronómio 28:53, há uma nova ameaça divina contra os desobedientes: “e comerás o fruto do teu ventre, a carne dos teus filhos e das tuas filhas […] no cerco e no aperto com que os teus inimigos te apertarão.” E em Lamentações 4:9, 10: “Os mortos à espada mais ditosos são do que os mortos à fome; porque estes se esgotam como traspassados, por falta dos frutos dos campos. As mãos das mulheres piedosas cozeram seus próprios filhos; serviram-lhes de alimento na destruição da filha do meu povo.” O padrão é o seguinte: aos desobedientes, Deus ou os seus profetas mostram o mundo horrível que resultará dessa desobediência. Guerras, escravidão, fome. Esta será de tal ordem que até as mulheres piedosas acabarão a cozinhar os filhos.
Relatos de viagens
Apesar de estas e outras referências culturais, o conceito moderno de canibalismo foi formado a partir dos relatos dos viajantes que seguiram as rotas inauguradas por Colombo. Em 1503, Amerigo Vespucci, que deu o seu nome à América, publicou Mundus Novus, as cartas das duas viagens que tinha feito ao continente. Devido à enorme difusão da obra, Vespucci contribuiu decisivamente para a ideia do canibalismo generalizado daqueles povos, como refere Francisco Bethencourt em Racismos – das Cruzadas ao Século XX (Temas e Debates, 2015). A narrativa de Vespucci abundava em pormenores e tinha a vantagem do testemunho direto. O antigo companheiro de Colombo dizia, por exemplo, “ter vivido vinte e sete dias numa aldeia nativa onde viu pedaços de corpos humanos pendurados em traves nas casas, à semelhança da forma como na Europa se penduravam presuntos para serem fumados.”
Às palavras juntaram-se, em edições posteriores da obra, imagens perturbantes dos hábitos canibais dos povos americanos. Esta mistura de antropologia avant la lettre e puro sensacionalismo marcou todo o pensamento ocidental posterior, influenciou o curso da ação política e sedimentou preconceitos que nem análises e opiniões clarividentes puderam derrubar. Nos seus Ensaios, Michel de Montaigne escreveu sobre os canibais, num breve manifesto de relativismo cultural em que apontava a incapacidade de os europeus verem a sua própria crueldade e os seus comportamentos bárbaros enquanto eram lestos a condenar os costumes dos índios.
Já em 1578, o viajante francês Jean de Léry tinha publicado Histoire d’un Voyage Faict en la Terre du Brésil, relato de uma viagem ao Brasil e do tempo que passou com os Tupinambás. Para as autoras de Brasil: Uma Biografia (Temas e Debates, 2015), o livro de De Léry é uma tentativa genuína de compreender o outro. Ele foi capaz de perceber que “a guerra e as práticas de canibalismo não significavam a satisfação de demandas alimentares; representavam, sim, formas de comunicação interna, práticas de dádiva, quando se trocavam valores, símbolos, bens.” Bethencourt afirma que “De Léry foi o primeiro a pôr em causa a suposta superioridade moral europeia.”
Em 1592, um século depois da chegada de Colombo ao Novo Mundo, foi publicado em França um livro com as observações de De Léry e a aventurosa e incrível história de Hans Staden, um soldado e explorador alemão que tinha passado dez meses como prisioneiro dos Tupinambás. A primeira edição do livro de Staden, de 1557, tinha sido um sucesso fenomenal, quer pela natureza quase fantástica do relato – Staden contava como tinha conseguido não ser devorado pelos seus captores e como finalmente lhes tinha escapado – quer pelas gravuras. A edição francesa conjunta de 1592 também incluía ilustrações chocantes dos índios brasileiros em rituais de canibalismo, com a particularidade de o seu autor, Théodore de Bry, nunca ter estado no Brasil.
O canibalismo nunca existiu
Ao construir uma imagem dos índios como seres que necessitavam de ser resgatados da sua condição pré-civilizacional, o livro de Staden, entre outros documentos da época, contribuiu para a narrativa que justificava o domínio europeu. Para muitos, as acusações de canibalismo tinham sido apenas instrumentos usados pelas potências coloniais para legitimar exploração de outros povos e continentes. Essa é a tese de um livro polémico de 1979, da autoria de William Arens. Em The Man-Eating Myth: Anthropology and Anthropophagy (Oxford University Press), este antropólogo dinamitou não apenas a credibilidade dos relatos de Cristóvão Colombo e de Hans Staden, mas também os trabalhos de campo de antropólogos proeminentes, como E. E. Evans-Pritchard ou Margaret Mead. Na opinião de Arens, não havia provas sérias de que o canibalismo alguma vez tivesse sido uma prática socialmente aceite em qualquer sociedade.
Nem mesmo o caso dos Fore, uma tribo da Papua-Nova Guiné, convenceu Arens. Os Fore foram alvo do interesse da comunidade internacional por causa de uma doença, kuru (uma encefalopatia espongiforme como, por exemplo, a doença das vacas loucas), que nos anos 50 e 60 vitimou várias centenas de membros da tribo, especialmente mulheres. Já na década de 1970 concluiu-se que a doença estava relacionada com a ingestão de carne humana infectada, nomeadamente o cérebro. Os Fore praticavam endo-canibalismo, ou seja, consumiam os corpos dos seus mortos em rituais funerários. Como a preparação dos manjares estava a cargo das mulheres, sempre acompanhadas pelas crianças, eram elas as principais vítimas. Um dos investigadores que estudou a kuru e estabeleceu a ligação entre a doença e o canibalismo funerário dos Fore, Daniel Carleton Gajdusek, recebeu o prémio Nobel da Medicina em 1976, mas nem ele se livrou das críticas de Arens, que afirmou que Gajdusek não tinha testemunhado a prática de canibalismo, o que demonstra o conceito muito particular de ciência de Arens. O caso dos Fore inspirou um episódio da segunda temporada dos Ficheiros Secretos, “Our Town” (um dos meus preferidos, devo dizer). No final, descobre-se que o xerife é um dos membros de uma comunidade de canibais. O nome do xerife? Arens.
Sobrevivência
Contudo, Arens nunca negou a existência de outras formas de canibalismo, quer o patológico, quer o dito canibalismo de sobrevivência. Este último é o mais fácil de aceitar, mas também o único em que se levanta a questão moral. Numa situação extrema, o indivíduo tem, por um lado, um interdito alimentar e, por outro, o alimento que o pode salvar. O que escolher? Ficou célebre o caso da equipa de râguebi uruguaia cujo avião em que seguia se despenhou nos Andes em outubro de 1972. A certa altura, os 16 sobreviventes tiveram de fazer a escolha terrível: comer os cadáveres dos companheiros ou morrer à fome. “Estamos Vivos”, o título do filme baseado nesta história incrível, protagonizado por Ethan Hawke, elucida-nos quanto à escolha que fizeram. No seu livro, Travis-Henikoff diz que os sobreviventes regressaram a casa “mais devotos, mais dados à metafísica e menos materialistas. Recordam aquela experiência como um acontecimento intensamente religioso.”
[Veja aqui o trailer de “Estamos Vivos”]
Contudo, na maior parte dos casos a experiência é, digamos, menos intensamente religiosa. A exemplo do que acontece na natureza, trata-se apenas de obter alimento onde ele existe. Isso aconteceu frequentemente ao longo da história, em situações de catástrofe, naturais ou humanas. Aconteceu na Grande Fome na Irlanda do século XIX e na União Soviética de Estaline, no cerco de Leninegrado, em campos de prisioneiros de guerra dos japoneses durante a II Guerra Mundial (após o conflito, o general japonês Yoshio Tachibana foi executado por ter participado na morte e consumo dos cadáveres de soldados norte-americanos) e na China de Mao. Eis um excerto do livro Mao – A História Desconhecida, de Jung Chang (Quetzal, 2013): “Durante este período de fome [entre 1958 e 1961] algumas pessoas recorreram ao canibalismo. Um estudo pós-Mao (prontamente suprimido) sobre o condado de Fengyang, na província de Anhui, registou sessenta e três casos de canibalismo só na primavera de 1960, incluindo o de um casal que estrangulou e comeu o filho de oito anos. E Fengyang não era provavelmente o pior. Num condado em Gansu onde um terço da população morreu, o canibalismo era frequente. Um quadro de uma aldeia, cuja mulher, irmã e filhos todos morreram nessa altura, disse mais tarde a jornalistas: ‘Tantas pessoas na aldeia comeram carne humana… Veem essas pessoas agachadas junto ao escritório da comuna a apanhar sol? Algumas delas comeram carne humana… As pessoas ficavam loucas com a fome.’”
O drama da escolha entre a morte e o consumo de carne humana percorre A Estrada, o livro de Cormac Mc Carthy, também adaptado ao cinema. Num mundo pós-apocalíptico, sem esperança e que parece a concretização dos cenários previstos nos versículos bíblicos que citámos, um pai mostra ao filho que, mesmo em circunstâncias extremas, há valores dos quais não devemos abdicar porque sem esses valores a existência perde sentido. Podemos argumentar que A Estrada é um livro de ficção e que, numa situação real, a fome daquele pai poderia mais do que a dor. Contudo, não é esse o sentido da história real que o escritor Jonathan Safran Foer conta no início de Comer Animais (Bertrand, 2010). Durante a Segunda Guerra Mundial, a avó de Safran Foer e outros refugiados que tentavam escapar aos alemães comiam tudo o que apanhavam. “Nem te digo algumas das coisas que comi”, disse-lhe a avó. Um dia, faminta, bastante debilitada, quase sem forças para prosseguir, um camponês russo ofereceu-lhe um naco de carne. Ela recusou. Era carne de porco e ela era judia:
“– Era porco. Não ia comer porco.
– Porquê?
– O que queres dizer com porquê?
– Porque não era kosher?
– É claro.
– Nem para salvares a vida?
– Quando nada mais interessa, deixa de haver o que salvar.”
Regresso a Hannibal
De certo modo, a história do nosso canibal preferido também está relacionada com a Segunda Guerra Mundial e com os nazis. Em Hannibal, o terceiro romance com o Dr. Lecter, publicado em 1999, Thomas Harris conta que ainda criança, na Lituânia, durante a Segunda Guerra Mundial, Hannibal viu a irmã Mischa ser morta e comida por desertores lituanos que colaboravam com os nazis.
Também aqui Harris foi buscar inspiração a uma história real, a do infame assassino em série russo Andrei Chikatilo, que entre 1978 e 1990 terá assassinado pelo menos 52 mulheres e crianças. Quando Chikatilo era pequeno, a mãe contava-lhe a história do seu irmão Stepan, que teria sido morto e comido pelos vizinhos aos quatro anos de idade. Condenado à pena de morte, Chikatilo, que chegou a provar o sangue de algumas das suas vítimas, foi executado em 1994. No dia de São Valentim.
Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor, e autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago em 2015