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PAUL ELLIS

PAUL ELLIS

Saída para um final feliz

Há seis meses a Irlanda deixava o programa de ajuda externa da troika. Meio ano depois, o que mudou no dia a dia dos irlandeses?

Os últimos cinco anos da história da Irlanda parecem ser o exemplo perfeito de uma epopeia heroica: o Tigre Celta perdeu as garras, foi obrigado a pedir ajuda e tornou-se o primeiro país a conseguir livrar-se do resgate. Tudo está bem quando acaba bem. Ou, como diria Shakespeare, all’s well that ends well.

“Os irlandeses são os verdadeiros heróis desta história”, disse o ministro das Finanças, Michael Noon, no dia em que o FMI desembolsou a última fatia do bolo de 85 mil milhões de euros. Faltavam dois dias para o fim do programa de ajuda externa.  A 15 de dezembro de 2013, o plano de resgate da troika – Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia – foi oficialmente dado por encerrado e o primeiro-ministro, Enda Kenny, falou em direto para os irlandeses: “A Irlanda está agora a caminhar na direção certa”, e tudo graças a “vocês”, os heróis celtas.

O Taoiseach, termo gaélico dado ao líder do Executivo irlandês, mostrou-se, no entanto, relutante em pôr um ponto final neste capítulo. Garantiu que a política de austeridade iria continuar e anunciou que já estava em marcha um plano de crescimento para recuperar o pleno emprego.

“Parecia cansado, o que dizia soava cansado”, notou a jornalista irlandesa Miriam Lord, numa crónica escrita para o Irish Times. Estava isolado em frente à câmara, e logo Kenny, que foge das câmaras sempre que pode, as mãos pesadas demais para estarem suspensas no corpo. A última vez que tinha falado aos irlandeses estava atrás de uma secretária – “menos mal”. Ao fundo, no canto superior direito do ecrã, estavam duas bandeiras: a irlandesa, dentro do plano, e a da União Europeia, que, já de fugida, só deixava duas das suas 28 estrelas a descoberto. “Um indício, talvez, de que os irlandeses se voltaram a erguer nos seus dois pés”, ironizou a jornalista.

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Após a declaração do primeiro-ministro, não faltaram elogios da Europa. “O programa irlandês é uma história de sucesso”, rematou Jörg Asmussen, membro executivo do Banco Central Europeu, ao mesmo tempo que o ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble, dizia que “a Irlanda fez o que tinha de fazer” e que agora, finalmente, “tudo estava bem”.

All’s well that ends well.

Mas antes do final feliz (para quem acredita que houve de facto um final, e que foi feliz), esta é uma história de altos e baixos. Comecemos pelo início.

A Irlanda entrou na União Europeia (ainda CECA) em 1973, como um dos países mais pobres. Num curto espaço de pouco mais de 15 anos, no entanto, construiu a imagem gloriosa do Tigre Celta e, na década de 1990, era já o segundo país mais rico da UE, a seguir ao Luxemburgo.

“Enquanto o setor imobiliário crescia, o país crescia, quando o imobiliário veio abaixo, o país veio abaixo com ele”, resume Frederico Fonseca, um português emigrado na Irlanda há 16 anos. Foi a elevada exposição dos bancos ao crédito imobiliário que, entre 2007 e 2008, fez rebentar a bolha da prosperidade económica. Perante a falência das instituições bancárias, em especial do Anglo Irish Bank, o Governo decidiu assegurar as dívidas através da injeção de capital. Resultado: um impacto brutal nas contas públicas que se revelou insustentável e que levou ao pedido de resgate financeiro à troika.

Frederico Fonseca, 48 anos, em Dublin há 16

Em Dublin desde 1998, Frederico Fonseca, de 48 anos, passou por todas as fases, da ascensão à queda do Tigre. “De 1998 até há quatro ou cinco anos, o preço da propriedade estava sempre a subir; subia, subia, subia exponencialmente. Com a crise dos bancos e a vinda da troika, desceu de forma abrupta”, explica  o empresário, que trabalha por conta própria no ramo da informática. “Uma casa que antes custava dois, três ou quatro milhões, passou a custar à volta de 500 mil”, o que significa que nem as pessoas as quiseram vender por esse valor, nem os bancos quiseram ficar com elas.

A crise da especulação imobiliária repercutiu-se imediatamente no mercado de arrendamento, muito forte nos centros urbanos irlandeses, de Dublin a Cork, passando por Galway. “Quando aqui cheguei, vivia numa casa com outros três colegas e pagávamos 1.600 euros de renda, depois passamos a pagar 1.400”, exemplifica Pedro Nolasco, amigo de Frederico Fonseca, que se mudou para Dublin há oito anos.

O efeito dominó não é novo nem surpreendente: com a explosão da bolha imobiliária, a oferta sobrepôs-se rapidamente à procura. As pessoas passaram a procurar casas mais baratas e os proprietários, com medo de perder os inquilinos cumpridores, viram-se obrigados a baixar os preços. Pedro Nolasco aproveitou a tendência e deixou o andar que partilhava com os colegas para ir viver com a família, que, entretanto, chegava de Portugal.

Mudou-se para uma casa “grande e localizada mesmo às portas de Dublin” (“como de Benfica ao Rossio”, na escala de Lisboa), pelo preço de 950 euros por mês. Este ano foi o primeiro em que o valor da renda aumentou, em 175 euros. Um sinal dos tempos, diz Pedro Nolasco, que garante já haver indícios de crescimento económico desde janeiro. “Agora, um anúncio de arrendamento de uma casa dura no máximo um, dois dias”, diz.

A exposição elevada dos bancos ao crédito imobiliário fez rebentar a crise

MIGUEL RIOPA

Indícios de crescimento económico e de mudanças de longo prazo. O abastecimento de água nas casas particulares, por exemplo, estava inteiramente a cargo do Estado mas vai começar a ser cobrado por imposição da Europa. “Os contadores já começaram a ser instalados para a água começar a ser cobrada em 2015”, explica Pedro Nolasco. A medida está a ser vista como o primeiro grande teste ao Governo irlandês depois do resgate, mas como cobrar e quanto cobrar continua a ser nos últimos meses uma das grandes dores de cabeça do Executivo de Enda Kenny.

Pedro Nolasco tem 55 anos. Foi para Dublin depois de muitas e frustradas tentativas de arranjar trabalho em Portugal. Trabalhou durante vários anos na área da distribuição e logística e, vendo-se desempregado na casa dos 40, foram mais as portas que se fecharam do que as que se abriram em Lisboa. Valeu-lhe a mão do sobrinho, que estava a trabalhar em Dublin e o incentivou a seguir-lhe as pisadas. A Xerox tinha anunciado vagas para o mercado português e o sobrinho referenciou-o para o cargo. A decisão não foi difícil. A empresa pagava-lhe a viagem, garantia-lhe alojamento durante 15 dias e ainda lhe dava 1.200 euros para os gastos. Se ficasse mais do que três meses na empresa, o sobrinho que o tinha referenciado também recebia um bónus de 600 euros. “Não deu para hesitar”, diz.

Pedro Nolasco foi trabalhar para a Xerox de Dublin, onde vive há oito anos

Corria 2006, num tempo em que a palavra crise não fazia parte do vocabulário celta e aquele pequeno país do norte da Europa era o paraíso para as multinacionais estrangeiras, e a porta de entrada dos anglófonos para a zona euro. “Um irlandês com um salário médio sabia que ia a um banco pedir dinheiro para comprar casa e saía de lá com um empréstimo a 110%, com dinheiro para uma casa muito maior do que previa e ainda para um carro e umas férias”, explica João Oliveira, profissional na área da informática a morar em Galway, na costa oeste irlandesa, também desde 2006.

A torneira do crédito acabou por fechar, mas “a grande diferença em relação a Portugal”, acrescenta o jovem de 32 anos, é que “o irlandês sabe que no fim do mês continua a ter um rendimento médio de 2.000 a 2.500 euros assegurado”.

Culpados? Nós

“Ninguém culpa a crise pelo mal que lhes causou”, diz João Oliveira com assertividade. Nem o Governo por ter obrigado a população a apertar o cinto. Certo é que “os irlandeses não vivem obcecados pela política nem pelas suas personagens e enredos”. “Preocupam-se muito mais com o círculo político local do que com o Governo de Dublin” e reúnem-se várias vezes com o deputado eleito na zona onde vivem para discutir os problemas locais.

João Oliveira foi parar à Irlanda por mero acaso. Candidatou-se a um posto de trabalho numa área de competência diferente da sua área de estudos, mas isso não foi problema. Durante os primeiros seis meses de trabalho foi-lhe dada a formação técnica e as soft skills necessárias. “Nunca mais olhei para trás”.

Depois de anos de consumo desenfreado, há, na Irlanda, a perceção de que a crise não é mais do que “a consequência natural de anos e anos de irresponsabilidade”, afirma João Oliveira. Sobre a troika, nem uma palavra. “Fala-se sobre a recessão, sobre a maior dificuldade em arranjar trabalho, fala-se na emigração, mas aqui não se fala na troika”, garante Filipa Henriques, uma jovem estudante a morar em Dublin há quase dois anos, que explica esse comportamento com o facto de “os irlandeses não se queixarem tanto como os portugueses”. Isso e, claro, com o facto de serem um povo otimista por natureza e dotado de um sentido de humor profundamente irónico. “Os provérbios irlandeses vão muito ao encontro do ‘Estás a morrer? Não? Então está tudo bem, as coisas resolvem-se’”, lembra a estudante de 26 anos, entre risos.

Irlandeses são optimista por natureza e com um sentido de humor muito irónico, diz Filipa Henriques

AFP/Getty Images

Filipa Henriques chegou a Dublin através de um programa europeu de voluntariado e por lá foi ficando. Está a tirar o mestrado na área da Terapia da Fala mas mantém as visitas voluntárias a um lar de idosos. “As senhoras mais velhas falam-me dos seus problemas, falam da história da Irlanda, do período da Fome, da emigração” – já que quase todas têm a família a viver no estrangeiro, entre a Austrália e os EUA – “mas nunca me falam desta crise, muito menos da troika”. A verdade é que, diz, os idosos na Irlanda têm ajudas do Estado para pagar os medicamentos, o aquecimento das casas, assim como têm transportes públicos gratuitos.

A história da República da Irlanda está muito presente no sentimento coletivo e as dificuldades sentidas pelas gerações anteriores durante o período da Grande Fome (de 1845 a 1854) continuam a ser o mote das canções que os irlandeses tanto gostam de cantar quando se juntam nos pubs. Desde o século XVIII emigraram cerca de dez milhões de irlandeses, o que, num país que atualmente tem pouco mais de 4,5 milhões de habitantes, deixa marcas. Por isso, remata João Oliveira, “sabemos que esta crise é apenas uma pena leve comparada com o que os bisavós tiveram de passar”.

“Quem sentiu mais os efeitos da crise foi quem trabalhava na construção civil e nos serviços associados”, porque assim que foi detetado o buraco financeiro houve uma “paralisação imediata da construção”, explica Pedro Nolasco.

"Na Irlanda não há espaço para estádios nem para hipermercados” e “as autoestradas que há em todo o país podiam caber na área de Lisboa”, garante Pedro.

O que mais se sentiu foi a incerteza. O medo daquilo que estava para vir e uma maior desconfiança face à economia, que se traduziu numa quebra do consumo familiar e na adaptação a um estilo de vida mais contido. Houve restaurantes a fechar, outros a optar por abrir apenas no horário de jantar numa tentativa de rendibilizar esforços e reduzir custos, já que a rotina habitual dos irlandeses é a de almoçar qualquer coisa rápida nos pubs perto do trabalho. Frederico Fonseca diz, mesmo, que houve até quem passasse a levar “marmita”, coisa rara há alguns anos.

Para João Oliveira, no entanto, a contenção não se vê tanto nas despesas e nos rituais do dia-a-dia, porque os pubs, esses, continuam cheios de irlandeses a beber cerveja Guinness e a cantar a plenos pulmões. A contenção do irlandês com um salário médio vê-se no “não ir a Nova Iorque às compras”, “não comprar outro carro este ano”, “pagar o empréstimo da casa” ou “não sair tantas vezes à noite e gastar 200 euros num restaurante”.

Irlandeses têm o hábito de frequentar pubs com música ao vivo

Dan Kitwood

Em 2014, depois de três anos de pacto fiscal, o salário mínimo irlandês continua a ser igual ao aplicado desde 2011: 8,65 euros por hora para um funcionário adulto e com experiência, ou seja cerca de 346 euros semanais e perto de 1.522,4 mensais. O que faz da Irlanda o quinto país com o maior salário mínimo da União Europeia, atrás do Luxemburgo, Holanda, Bélgica e França, e um posto à frente do Reino Unido. O salário, porém, varia ligeiramente consoante a idade do trabalhador, se tem mais de 18 anos, e os anos de experiência no mercado de trabalho.

Mas não houve cortes nos salários? “Não propriamente”, explica Frederico Fonseca. Antes da crise havia, por norma, aumentos salariais todos os anos, tanto no setor público como no privado. O que aconteceu foi que “deixou de haver aumentos, mas também não houve reduções”. Houve, sim, aumento de impostos, reduções de benefícios – “como abonos e incentivos à natalidade” – e reduções dos prémios de mérito (os bónus) dados aos funcionários, “que normalmente equivaliam a 20 ou 25% do salário anual”, acrescenta o empresário.

Desde janeiro de 2011, primeiro ano da troika em Dublin, entrou em vigor uma taxa extra, a Universal Social Charge (USC) – equivalente à Taxa Social Única aplicada em Portugal – que afeta todos os contribuintes que ganhem um rendimento anual bruto superior a 10.036 euros, mas numa cobrança progressiva que, segundo Frederico Fonseca, “quase não se sente no salário”.  João Oliveira vai direto aos números:

“A minha carga fiscal aumentou de 21% para 47%. Ou para 60% se contarmos com a altura de receber bónus”
João Oliveira

Percentagens elevadas, caso se tenha em conta que a Irlanda é um país onde o sistema de saúde não é gratuito e as infra-estruturas “deixam muito a desejar”. Em contrapartida, diz João Oliveira, “o rendimento disponível também aumentou significativamente nestes últimos oito anos desde que cá estou”.

Frederico, Pedro, Filipa e João, como tantos outros portugueses, saíram de um país que se afundou na crise e acabaram por ir mergulhar noutro. Mas não há dia em que se arrependam. “Aqui toma-se conta dos empregados”, remata Pedro Nolasco. “Aqui as pessoas interessam-se genuinamente pelo próximo, pelos seus problemas, histórias e ambições”, confirma João Oliveira.

Os quatro partilham a ideia de que o Tigre Celta ainda tem um longo caminho pela frente até recuperar a máxima força. Mas todos dizem que já se notam os efeitos do plano de crescimento económico pós-troika, nomeadamente na criação de emprego. A taxa de desemprego tem estado em curva decrescente no último ano e em abril, chegou aos 11,9%, segundo dados do Eurostat, atingindo o seu valor mais baixo desde o início da crise, em 2008. A produção industrial aumentou 2,5 pontos percentuais de março para abril de 2014 e o Banco Central irlandês prevê um crescimento do PIB de 2% este ano, alimentado pelo aumento do emprego e pelo maior investimento das empresas.

Os quatro acreditam que o aumento da carga fiscal é provisório e, mais cedo ou mais tarde, vai voltar a ser reduzido. Provavelmente mais tarde do que cedo, porque, adivinha Frederico Fonseca, a história ainda não chegou ao fim: “Estamos fora da troika, mas ainda temos a dívida para pagar”.

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