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© Hugo Amaral/Observador

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Chegou ao fim. Histórias de Cabul

Portugal começou a participar na missão da NATO no Afeganistão há 12 anos. Saiu há um mês. Pelo caminho, houve duas baixas e muitas histórias por contar pelos militares portugueses.

“Era um autêntico totoloto”, diz o coronel Paulo Domingos, recordando ao Observador os últimos seis meses em que esteve no Afeganistão ao serviço das Forças Armadas. “Nunca sabíamos quando é que íamos ter a nossa segurança em risco porque em Cabul o inimigo atua precisamente através de alvos de oportunidade”. Ou seja, “podíamos sempre ser os próximos”.

Paulo Domingos foi um dos oficiais que integrou o último contingente de tropas portuguesas enviadas para aquele palco de guerra. No dia 12 de novembro, fez parte do último grupo que fez as malas e saiu, fechando a porta à participação de Portugal na missão da NATO no Afeganistão. Para trás deixou 12 anos de experiência num dos teatros de operações mais “complexos e atípicos” onde Portugal alguma vez já participou. Mas as histórias, as memórias e até as amizades, essas, vieram na bagagem. Para memória futura.

A viagem começou em 2002, quando a ONU decretou a criação de uma Força Internacional de Apoio à Segurança (ISAF), no âmbito do combate ao terrorismo. A NATO assumiu o comando da missão e Portugal, como membro da organização, participou. “Portugal, que era o único país da NATO a não participar na ISAF, gerando algum incómodo, decidiu contribuir com elementos especializados no controlo e segurança aéreos”, anunciou em 2004 o ministro da Defesa, Paulo Portas. Primeiro foi apenas com uma equipa sanitária, depois com o envio faseado de militares dos três ramos das Forças Armadas (Exército, Força Aérea, Marinha e até GNR). Ao todo, passaram por terras afegãs mais de 3.200 militares portugueses em missões de treino e formação às forças de segurança locais. Só do Exército, foram destacados um total de 46 oficiais, 651 sargentos e 1.326 praças.

Objetivo: “Garantir a estabilidade, a paz na região, e dotar as forças armadas afegãs de instrumentos, materiais, treino e os equipamentos necessários para assumirem o controlo das operações anti-terrorismo”, explica o coronel Domingos ao Observador. Missão cumprida? “Sem dúvida. Claro que continuam a precisar de muito apoio mas neste momento já têm capacidades adquiridas e apetências desenvolvidas. Agora estão entregues a eles próprios”.

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Reduzir as probabilidades

A missão era “ombro a ombro”, ou shoulder to soulder, como se dizia por lá. Isto é, era um trabalho de equipa, lado a lado, não só dentro do batalhão como entre as tropas e os oficiais afegãos e forças de segurança locais. Tal como o coronel Paulo Domingos, também o sargento-chefe José Quelincho, assumia uma função de mentoria, ou de assessoria, como se quiser chamar. Mais correto ainda seria dizer que eram advisers – a língua inglesa domina todas as comunicações. Ambos estavam enquadrados numa divisão com cerca de oito mil homens e, cada um com a sua área específica, tinham de acompanhar o trabalho das forças militares afegãs ao minuto. E ensinar. Ensinar, ensinar.

Sargento-chefe José Quelincho, à esquerda, e coronel Paulo Domingos, à direita. Estiveram os dois no oitavo e último contingente enviado para o Afeganistão

© Hugo Amaral/Observador

Saíam em missões regularmente. E era aí que se jogava o “totoloto”. “Sempre que saíamos não sabíamos se regressávamos”, diz ao Observador o sargento-chefe Quelincho. “Porque eles atuam com alvos de oportunidade, podia ser a qualquer momento”, continua, lembrando as inúmeras vezes que foi “à despedida de muitos camaradas falecidos em situações destas de terrorismo quando saíam fora da base”. Mesmo dentro da base, o risco era iminente devido às granadas que “caíam lá dentro com alguma frequência”. Ou aos rockets que eram lançados para aquele alvo específico.

O major João Bernardino, militar experiente que já cumpriu sete missões em forças nacionais destacadas para o estrangeiro – do Afeganistão ao Kosovo, recorda o mesmo problema em Cabul: o medo que pairava, mesmo dentro da base militar, quando começavam os chamados “fogos indiretos”, ou ataques de rockets, sobre o local onde se encontravam. “Felizmente estivemos sempre em segurança e respondemos sempre à altura”, afirma, explicando que as bases têm sistemas que permitem garantir a segurança dos soldados antes que os morteiros atinjam o solo e firam os militares.

"Neste tipo de teatro as reações têm de estar mecanizadas, e por isso a segurança depende de termos tudo perfeitamente estudado e automatizado para reagirmos imediatamente"
Coronel Paulo Domingos

No Afeganistão esteve duas vezes. A primeira vez foi entre 2006 e 2007. Nessa altura, projetado por terra ou ar, o major paraquedista correu todo o país, de Herat, no sul, a Cabul, passando por Farah e Kandahar. Ao contrário da missão de assessoria que desempenhou em 2014, que era uma missão mais assente na relação com os locais, a primeira foi mais física. Nessa altura, a responsabilidade por toda a segurança no teatro de operações estava inteiramente a cabo dos militares da ISAF (das forças armadas dos vários países que compunham a missão) e por isso o trabalho era todo no terreno. Quando regressou, em 2008, chegou a admitir à comunicação social que o medo está sempre presente em terras afegãs, apesar de todo o treino e preparação que os militares têm para enfrentar as situações. Mas não deve ser um obstáculo, deve antes ser “um aliado”. Aos mais novos e inexperientes, o conselho que deixava antes de partirem era para estarem “alerta”, sempre, e para “nunca facilitar”.

Major João Bernardino já esteve em sete missões no estrangeiro, duas delas no Afeganistão.

© Hugo Amaral/Observador

Foi o que fez Paulo Domingos. Ao Observador, o coronel do oitavo contingente enviado para Cabul lembra como era importante “salvaguardar sempre a segurança” quando se deslocavam para qualquer lado. Mas como se fazia isso? Ora, se o inimigo atacava através de alvos de oportunidade, então a salvaguarda tinha de ser reduzir ao máximo a oportunidade. “Não criar rotinas, nunca sair à mesma hora, variar os locais de saída da base”, explica. Ou seja, “criar o maior número de variáveis possíveis” e, depois, baralhá-las.

Mas não chegava, ressalva José Quelincho. Antes de saírem para qualquer missão, recebiam um briefing com as últimas informações conhecidas sobre o trajeto que queriam tomar para puderem decidir qual o melhor caminho para chegar do ponto A ao ponto B, explica o sargento ao Observador. O problema era que “às vezes sabíamos que íamos sair num determinado trajeto em que meia hora ou dez minutos antes alguém se tinha feito rebentar ou tinha havido um ataque”. “E íamos na mesma, senão por ali, pelo percurso do outro lado”. O totoloto.

Roma Pereira e Sérgio Pedrosa: “Presente!”

Foi assim que Portugal perdeu dois militares nesta guerra liderada pelos norte-americanos. Em novembro de 2005 chegou a primeira notícia: morreu o sargento João Paulo Roma Pereira, de 33 anos, natural de Alhos Vedros. Estava em patrulha com mais três militares portugueses quando, a cerca de 12 quilómetros do Camp Warehouse, onde estava instalado o contingente português, um engenho explosivo rebentou em cheio sobre o veículo onde seguiam. Roma Pereira não resistiu, os restantes ficaram feridos.

Foi a primeira vítima mortal entre as forças armadas portuguesas em Cabul. E a décima desde que, há quase 25 anos, Portugal começou a participar em missões internacionais.

Os nomes dos dois militares mortos no Afeganistão foram inscritos no Monumento aos Combatentes, em Belém, junto dos nomes das vítimas da Guerra Colonial

© Hugo Amaral/Observador

Dois anos depois, em 2007, chegou a segunda notícia. Morreu o soldado paraquedista Sérgio Miguel Vidal Oliveira Pedrosa, de Vila Nova de Gaia, num acidente rodoviário num veículo blindado. Estava a fazer uma patrulha noturna nos arredores de Cabul quando o Humvee onde seguia foi à berma e capotou.

Foi o pior que Portugal trouxe de 12 anos naquele que foi considerado pelo chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, o general Artur Pina Monteiro, o “teatro de operações mais complexo, perigoso, atípico e desafiante” que as Forças Armadas portuguesas já pisaram. Na cerimónia, com honras de Estado, que decorreu na quinta-feira no Forte do Bom Sucesso em Belém, o capelão António Borges foi ao microfone prestar-lhes homenagem. Na presença do ministro da Defesa, José Pedro Aguiar-Branco, e dos vários soldados que, em parada, representavam todos os contingentes passados por terras afegãs, o capelão chamou a plenos pulmões pelos dois falecidos. “Presente!”, responderam todos com igual força pulmonar. Poucos seriam os soldados que chegaram a conhecer Roma Pereira e Sérgio Pedrosa, mas no Afeganistão como em qualquer outro palco de guerra, o sentimento é coletivo.

Um trunfo: a genética

“Há uma coisa que noto sempre cada vez que vou em missão para o estrangeiro”, diz o major João Bernardino do alto das suas sete missões longe de casa. “É a facilidade que temos, por sermos portugueses, de nos aproximarmos dos outros povos de uma maneira franca e aberta”, diz. “Não somos frios, não somos calculistas”, e isso reflete-se na relação que os militares portugueses estabelecem com os locais. Aguiar-Branco chama-lhe “ativo estratégico” inato, esse da capacidade humana, enquanto Pina Monteiro lhe chama “genética militar portuguesa”. Certo é que não há quem não reconheça essa “idiossincrasia tão nossa” que até num cenário de guerra distingue os portugueses dos norte-americanos, dos canadianos, dos europeus nórdicos e dos italianos.

"Fomos o último contingente a chegar e por isso as relações com os locais e os outros militares já estavam consolidadas. As pessoas já gostavam de nós, não de A, B ou C, mas dos portugueses. Foi um bom ponto de partida para trabalharmos em conjunto"
Sargento José Quelincho

João Bernardino destaca esse valor genético para o trabalho que desempenhou neste últimos seis meses ao serviço da ISAF. O ambiente em si é inóspito se comparado com Portugal – no verão demasiado quente, no inverno demasiado frio. A cultura, o povo, a língua, são estranhos e diferentes. Por isso, antes de darem aconselhamento e formação ao exército afegão, os militares portugueses são sujeitos a um curso inicial para “aprender a respeitar a cultura, a conhecer as pessoas e a termos background suficiente para conseguirmos lidar com os elementos com quem vamos trabalhar”, explica o major. E resulta? “Sim”. Mas para cimentar relações leva tempo, até para os portugueses. “Primeiro precisamos de ganhar a confiança das pessoas (o raport, dizem), depois eles têm de ver e nós credibilidade, alguém que lhes pode ajudar e ser útil para o futuro”.

2 fotos

No final, ficam as amizades que não se esperavam fazer. “Pensava que eram mais rudes, pelas dificuldades e pela guerra, pensava que tinham a mente mais fechada, mas não, sempre se mostraram disponíveis e com vontade de aprender”, afirma o sargento José Quelincho, lembrando com humor as semelhanças culturais que, ainda assim, conseguia identificar com os afegãos. A cordialidade, a dedicação à família, e até a palavra Inshallah (oxalá) repetida vezes sem conta.

“O fator humano foi o que mais me enterneceu”, diz o coronel Paulo Domingos, apontando a “amizade conquistada com pessoas com quem nunca pensei travar amizade” como “a maior riqueza que trago do Afeganistão”. É o que de melhor se recorda dos meses passados em Cabul. Isso e claro, um momento muito específico: o da despedida. Que atire a primeira pedra quem não considera esse o melhor momento de toda a missão. O coronel Domingos não hesita em pôr a pedra no bolso. “Para ser sincero, o melhor momento que passei lá foi o dia em que entrei no avião para vir embora e vi que estávamos todos”, diz.

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