O ditado que diz que a “necessidade aguça o engenho” já foi mais que confirmado ao longo dos tempos mas há sempre mais qualquer coisa que volta a comprovar a sua validade. Depois da pandemia ter congelado quase totalmente os planos de férias e viagens de lazer de milhões de pessoas em todo o mundo, a chegada das vacinas veio abrir uma janela nova: o já chamado “imunoturismo”, por outras palavras, deslocações cujo principal motivo é a inoculação contra o novo coronavírus.
Mal começaram a ser administradas de forma mais abrangente as primeiras vacinas contra a Covid-19, ainda em dezembro de 2020, alguns operadores turísticos indianos começaram a lançar as primeiras propostas daquilo que hoje já se encontra em países como Reino Unido, Cuba, Emirados Árabes Unidos e EUA. Num artigo publicado a oito de dezembro do ano passado, a revista de viagens indiana Outlook Traveller publicava um texto cujo título dizia algo como “O turismo de vacinas descola na Índia”. Nesse trabalho é destacado como momento-chave a aprovação da vacina Pfizer/BioNTech no Reino Unido: terá sido a partir daí que algumas agências de viagens na Índia começaram a aproveitar a aprovação para criar pacotes para o Reino Unido, EUA e Rússia que incluíam a viagem, o alojamento, uma pequena excursão no destino e uma visita a um centro de saúde para que os viajantes fossem vacinados.
Algumas agências de viagens, na altura, ofereciam um pack de quatro a cinco noites, de Bangalor a Londres, por cerca de 1500 euros por pessoa. Outros, um de três a quatro noites, de Bombaim a Nova York, por 2000 euros por pessoa. Desde então este tipo de ofertas explodiram um pouco por todo o lado, acompanhando o ritmo de aprovação de novas vacinas e da sua utilização em diferentes países.
EUA. Esquemas, visons e o paraíso sob o sol da Florida
O primeiro caso mais mediático deste tipo de viagem foi o de um casal de milionários canadianos que alugaram um jato privado, voaram para a cidade de Beaver Creek, nos EUA — maioritariamente ocupada por uma população nativo americana — e mascararam-se de profissionais de saúde para receber a vacina. Depois desse episódio, como explica o The New York Times, foram vários os empresários e financeiros abastados que ligavam a médicos nos EUA a oferecer valores na ordem dos 20 000 dólares (quase 17 000€) para serem dos primeiros a ser vacinados.
Os EUA tornaram-se o país mais orientado para a este género de opções muito por culpa do seu plano de vacinação — ou melhor, planos de vacinação, no plural, já que o The Guardian explica que existem pelo menos 50, com regras e prioridades de vacinação a mudarem de estado para estado, isto porque o governo central só distribui as vacinas mediante as populações de região, o resto é o poder local que decide. O jornal britânico dá alguns exemplos: no Wisconsin, criadores de visons são considerados prioritários no plano de vacinação; em Nova Jersey os fumadores podem ter acesso prioritário e no Colorado os jornalistas são equiparados a profissionais de saúde em termos de vacinação. Ainda assim, o caso da Florida é o mais permissivo de todos.
Quando Ron DeSantis, o governador (republicano) do soalheiro território no sul dos Estados Unidos, decidiu que os maiores de 65 anos, mesmo os que não vivessem neste território, fossem prioritários, abriram-se as portas para uma torrente de “turistas”, vindos dos quatro cantos do mundo. Primeiro foram os norte-americanos mais ricos, residentes em outros estados, a encher os centros de vacinação — o caso do responsável máximo da Time Warner, Richard Parsons, foi muito comentado, por exemplo, quando assumiu que voou de Nova Iorque para a Florida só para ser vacinado. Depois começaram a chegar pessoas de outras latitudes.
No mesmo artigo do Guardian lê-se o depoimento de Jay Wolfson, um professor de saúde pública da Universidade de South Florida que descreve que há pessoas a chegar a este estado vindas de paragens como o “Canada, Brasil, Nova Iorque, Georgia, Minneapolis…”. O médico até ouviu relatos de colegas que diziam ter-se cruzado com venezuelanos e argentinos nas filas de vacinação. Dados recentes estimam que mais de 50 mil pessoas não residentes na Florida já foram aqui vacinadas e o estado começa a ser considerado o epicentro do “turismo de imunização”, tanto “para quem vem” como “para quem vai”.
Israel. Cheguem-se à frente: ‘temos vacinas para quem as quiser!’
A Forbes relata a história de uma agência de viagens local, a Memories Forever Travel Group, que está a organizar viagens de imunização a Israel. Apesar de só estarem disponíveis para naturais desse enclave no Médio Oriente (por enquanto são os únicos com permissão para entrar no país), o pacote tem tido bastante procura — há uma grande comunidade israelita a residir nos EUA. Roy Gal, o dirigente desta empresa, explica que os mais interessados tem sido pessoas com idades entre os 30 e os 40 que viajam para Tel-Aviv, cumprem os dez dias de quarentena (o valor do alojamento já está incluído) e quando chegam ao fim desse período esperam pelo final do dia para se deslocarem aos centros de vacinação — “Eles esperam até ao último minuto, quando os enfermeiros têm vacinas que sobraram, e para não as desperdiçarem literalmente vão para a rua a gritar ‘temos vacinas para quem as quiser!’ Só têm de se chegar à frente e já está”, conta Gal. Os preços que tem aplicado não são baixos: 850 dólares (715€) pela viagem de ida e volta mais 2 000 (1690€) por mês para pagar a renda de uma casa onde os viajantes podem não só passar o tempo de quarentena como o intervalo de tempo entre as duas tomas da vacina. No total, todo o processo pode durar dois meses e custar quase cinco mil dólares (4200€) por pessoa.
EAU. Viagens de luxo e nómadas digitais seduzidos pela “vida junto ao mar”
Olhando para a Europa, outro caso que gerou bastante mediatismo aconteceu no Reino Unido. No passado mês de fevereiro o The Guardian contava a história de como a Knightsbridge Circle, um auto-descrito “serviço de viagens e lifestyle” que cobra aos seus membros cerca de 25 mil libras em quotas por ano (quase 30 mil euros), estava a organizar viagens de vacinação aos Emirados Árabes Unidos para todos os seus membros que tivessem mais de 65 anos. Ao jornal britânico, o clube explicou que este pacote incluía regalias como “transporte com motorista”, por exemplo, e os membros que tivessem nacionalidade dos EAU receberiam a vacina da Pfizer enquanto os outros receberiam a chinesa Sinopharm. “Knightsbridge Circle fez uma parceria com os Emirados Árabes Unidos para promover o turismo”, disse o porta-voz do clube. Mais tarde, o fundador deste Knightsbridge Circle, Stuart McNeill, revelou ao The New York Times que o clube tinha recebido mais de duas mil novas inscrições desde que o negócio com os EAU foi anunciado.
Por falar em Emirados Árabes Unidos, o Dubai lançou há pouco tempo uma nova campanha direcionada aos chamados nómadas digitais, trabalhadores cujo ofício não os prende a nenhuma localização geográfica específica e que, esperam as autoridades dos EAU, possam ir trabalhar para esta mega-cidade no Médio Oriente durante um ano. Este programa é vendido como uma oportunidade de “viver e trabalhar junto ao mar”, requer um pagamento de 287 dólares (cerca de 241€) por pessoa e um rendimento mensal garantido de pelo menos cinco mil dólares (4200 euros) e usa o trunfo da vacinação garantida contra a Covid-19 como atrativo extra.
Imagine you could live & work remotely in #Dubai while continuing to serve your employer in your home country. Dubai’s new virtual working programme for overseas professionals is all about remote working with unrivalled connectivity & top co-working spaceshttps://t.co/zSRnYJNda9 pic.twitter.com/z0wdWE1IlY
— Dubai Media Office (@DXBMediaOffice) October 15, 2020
“Praia, mojitos e vacina”, a combinação cubana
Numa linha semelhante encontra-se o exemplo de Cuba, um destino que já antes da pandemia era muito popular no segmento do turismo de saúde e que agora vira-se para o combate à pandemia. O jornal Miami Herald conta que no passado mês de janeiro o canal estatal venezuelano Telesur exibiu um vídeo promocional que prometia “praias, mojitos e a vacina” a quem visitasse Cuba, algo igualmente prometido por Vicente Vélez, o Anthony Fauci cubano, que prometeu a inoculação de turistas. O país de Che Guevara e Fidel Castro está a produzir a sua própria vacina, a Soberana 2, e pretende produzir 100 milhões de doses até ao fim da primeira metade deste ano, como disse o mesmo Veléz numa entrevista à agência noticiosa estatal Prensa Latina.
Portugal fora da rota dos packs (pelo menos por agora)
“Mas e em Portugal?”, é a questão que sobra. A resposta é simples e é dada pela Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo (APAVT) ao Observador: “É um assunto que conhecemos mas não se sente qualquer procura nesse sentido”. Enquanto representante deste setor em Portugal, a APAVT admite ter conhecimento destas práticas e campanhas que no estrangeiro já existem mas explica que não só não tem havido procura por parte do mercado como os próprios operadores não estão a propor ou organizar estes packs de “imunoturismo”. A juntar a isso há o debilitado panorama geral do turismo em tempo de pandemia em confinamento, algo que diminui radicalmente o número de viagens que se pode fazer — “As informações que nos chegam à Associação, em termos de viagens, estão próximas do zero. Há uma ou outra a acontecer mas são números tão ridículos que chegam a ser inexpressivos no ponto de vista estatístico”, disse fonte da APAVT.
Uma outra fonte no setor, que conta com vários anos de experiência, confirma que esta realidade ainda não se verifica no panorama português e explica porquê — por causa do preço, principalmente. O universo de clientes em Portugal é maioritariamente dominado por pessoas “que gastam no máximo mil euros” no momento de organizar as suas férias e “só um por cento, se tanto”, eventualmente conseguiria chegar aos preços que estes pacotes exigem. “Não seria rentável, quer em termos monetários quer em esforço logístico/de recursos humanos”, montar pacotes desse género porque. Na eventualidade de haver interessados, o papel das agências também não seria central: “Ou a organizar voos e estadias, ficando o resto ao critério do cliente; ou a desenhar uma proposta personalizada para este ou aquele cliente em específico”, uma experiência mais “taylormade”.
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O Observador consultou ainda outro especialista conhecedor do setor que, face à possibilidade de no futuro, eventualmente, poder existir algum programa semelhante aos já vendidos lá fora, afirmou que já pode haver quem considere “destinos como Cuba ou os Emirados Árabes Unidos”. Ainda assim “não há nada de minimamente concreto”. Este tipo de turismo, explicou a mesma fonte, pode enquadrar-se no chamado turismo de saúde, realidade que também não é muito comum em Portugal mas é bastante procurada nos EUA, por exemplo. Regra geral, o turismo de saúde centra-se mais na área das “cirurgias de reconstrução ou estéticas” e pode passar por programas de “um mês, um mês e meio”, por exemplo, que tem como principal destino a Índia e a Tailândia — “há hotéis associados a clínicas só para isto, sítios fantásticos, de cinco estrelas”, explica o especialista.