O Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) não avaliou ou emitiu qualquer parecer sobre os kits de testes que o Infarmed proibiu que fossem utilizados até serem esclarecidas dúvidas sobre o relatório de segurança e desempenho. Ao Observador, o INSA sublinha que não é da sua competência validar ou certificar dispositivos médicos, como é o caso das zaragatoas com meio viral de transporte.
A dúvida surgiu na sequência das declarações da ministra da Saúde, no passado domingo, durante a conferência de imprensa relativamente à situação epidemiológica em Portugal. Confrontada com a recusa do Infarmed em dar um parecer positivo aos kits para testes de despistagem da Covid-19, Marta Temido afirmou que, independentemente de estes kits já terem sido distribuídos, os testes analíticos “cumprem uma metodologia aprovada pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge“.
Na verdade, a responsável pela pasta da Saúde mistura dois elementos: os testes em si, que levam ao diagnóstico, e os produtos utilizados para fazer estes testes, como as zaragatoas com meio (o líquido que preserva a amostra recolhida). E, ao Observador, o INSA garante que o seu papel não é dar o aval sobre dispositivos médicos: “No âmbito das suas atribuições, o INSA não tem competências de validação ou certificação de dispositivos médicos.”
O Observador avançou, este domingo, que o Infarmed não deu um parecer positivo aos kits de zaragatoas, que resultam de um consórcio entre o Algarve Biomedical Center (ABC) da Universidade do Algarve, o Instituto Superior Técnico (IST) e as empresas Hidrofer e Logoplaste, tendo mesmo proibido a sua distribuição. Uma decisão que surgiu depois de já terem sido distribuídos mais de 48 mil kits para centros de investigação e utilizados para fazer testes em lares de idosos e creches.
Durante a conferência de imprensa desse domingo, a ministra da Saúde explicou que o país passou por “um período de grande dificuldade de abastecimento no mercado”, o que levou a que “novos operadores procurassem resolver e colocar no mercado produtos”. Para isso, foi criado “um sistema de avaliação desses artigos que envolve um conjunto de entidades” e que, garantiu Marta Temido, “funciona”.
“Independentemente de alguns desses artigos já terem sido utilizados sem ser comercialmente, mas na produção de determinados resultados, de determinados testes que, no caso dos testes analíticos, vale a pena dizer que cumprem uma metodologia aprovada pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge“, afirmou a responsável pela pasta da Saúde, acrescentando que se deve “distinguir aquilo que são critérios de realização de testagem daquilo que são critérios de introdução no mercado”.
“É natural que as entidades competentes façam a avaliação de uns e de outros e também é natural que os processos tenham, por vezes, momentos em que quem interfere diga ‘ainda não está completo’, ‘ainda é preciso mais estes testes, ainda é preciso mais esta ou aquela validação’. Penso que isso só nos deve deixar com a tranquilidade de que quem tem a função de avaliar o está a fazer“, adiantou ainda Marta Temido.
O Observador questionou o Instituto Ricardo Jorge a propósito destas declarações, para confirmar se tinham avaliados os kits e para perceber se a certificação que o instituto faz aos centros de investigação é independente do método de recolha utilizado — ou seja, se o facto de terem sido utilizados estes kits para a realização de testes à Covid-19 ou outros kits faz diferença para a testagem ser certificada.
O INSA adiantou que “validou as metodologias relativas ao diagnóstico do SARS-CoV-2 de mais 80 laboratórios“, desde o início da epidemia, entre os quais “laboratórios hospitalares, laboratórios privados e laboratórios de Universidades e Centros de Investigação e outros laboratórios habilitados para o efeito”.
Relativamente à questão dos kits do consórcio, tal como já tinha referido ao Observador, o INSA distingue o acompanhamento técnico de qualquer avaliação ou certificação, dizendo que “manteve contactos, tanto com o Instituto Superior Técnico como com o ABC Loulé/Universidade do Algarve, assim como com outras entidades, relativamente ao esclarecimento e definição de especificações técnicas para o fabrico das zaragatoas e, inclusive, do meio viral de transporte”.
Ao Observador, o presidente do ABC, entidade responsável pela produção do meio viral de transporte para os kits, disse que o líquido não só é uma receita do INSA como tinha sido validado pelo instituto — mas, pela resposta do Instituto Ricardo Jorge, esse não é o seu papel. Além disso, segundo o próprio Nuno Marques, em declarações ao Sul Informação, quando recusou dar o parecer positivo o Infarmed pediu esclarecimentos não só sobre zaragatoas, mas também sobre “a própria receita do INSA”.
Além de garantir que o seu trabalho não passa por validar ou avaliar dispositivos médicos, o Instituto Ricardo Jorge referiu também que não tem competências “de licenciamento e fiscalização de laboratórios.” Ainda assim, disponibilizou recentemente “um programa de avaliação externa de qualidade laboratorial na área da Covid-19” através Programa Nacional de Avaliação Externa da Qualidade (PNAEQ), cuja participação por parte dos laboratórios é “voluntária e confidencial”.
O Infarmed já tinha explicado ao Observador que — tal como disse a ministra na conferência de imprensa —, no âmbito desta pandemia, foram criadas orientações específicas para a “colocação no mercado, de produtos sem marcação CE por parte de fabricantes nacionais que habitualmente não os produzem, nos quais se incluem as zaragatoas com meio”. Nessas orientações está especificado que o fabricante “tem de submeter ao Infarmed para avaliação um relatório de avaliação dos requisitos de segurança e desempenho do respetivo produto” e tem de ter um parecer positivo por parte de regulador para que “o fabricante seja incluído na lista de potenciais fornecedores”. Algo que não aconteceu: o relatório foi submetido pelo consórcio e não teve, até ao momento, um parecer favorável.
Ou seja, o papel do INSA não é avaliar dispositivos médicos como a zaragatoa com meio — esse papel cabe ao Infarmed — , mas sim validar metodologias quanto ao diagnóstico do novo coronavírus. E nem sequer compete ao instituto confirmar se os procedimentos que estão a ser seguidos pelos laboratórios estão ou não de acordo com as regras.
Institutos mantêm confiança nos kits e nos resultados dos testes
O Observador contactou as várias entidades com as quais o Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social (MTSSS) celebrou um protocolo para a realização de testes em respostas sociais, com o intuito de perceber não só se tinham recebido estes kits, como se mantinham a confiança nos resultados dos testes em que utilizaram estas zaragatoas com meio. Todas elas constam na lista do INSA como instituições universitárias, de investigação, entre outras, que têm capacidade de diagnóstico do SARS-CoV-2, à exceção do Instituto Politécnico de Castelo Branco. O Observador também contactou a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, o Instituto Gulbenkian da Ciência e o Laboratório de Bromatologia do Exército, que também estão certificados pelo INSA, mas não têm acordo com o MTSSS.
Nem todas as entidades receberam os kits para testes de despistagem à Covid-19, disponibilizados gratuitamente pelo consórcio, mas as que tiveram acesso mantêm a confiança não só nos kits, como nos resultados dos testes.
O Centro de Investigação em Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior (CICS-UBI), cujo laboratório criado em conjunto com a Faculdade de Ciências da Saúde se encontra nas instalações do Centro Hospitalar Universitário da Cova da Beira, indicou que recebeu estes kits de colheita, não referindo ao certo quantos. Contudo, Sílvia Socorro, responsável pelo laboratório de testes do CICS-UBI, referiu que o centro de investigação não utiliza os kits, uma vez que laboratório faz “apenas o teste genético para a deteção do SARS-CoV-2, não a colheita”.
Ao Observador foi avançado que o centro hospitalar recebeu três mil kits para fazer testes em lares de idosos, mas o centro hospitalar apenas realiza testes aos seus doentes e funcionários com kits comprados, cabendo à UBI a realização de testes a utentes e funcionários de lares de idosos, no âmbito de um protocolo com o MTSSS. O Observador procurou confirmar junto da responsável pelo laboratório esta informação e perceber quantos kits foram utilizados, se o centro de investigação sabia que os mesmos não tinham tido um parecer do Infarmed e se mantém a confiança nos resultados dos testes, mas até ao momento não obteve resposta.
O Politécnico de Leiria confirmou que utilizou as zaragatoas e o meio de transporte desenvolvidos pelo consórcio, mas não só não precisou quantos kits adquiriu — o Observador tinha indicação de que tinha recebido pelo menos mil kits e tinha feito outra encomenda para mais três mil. Algo que, garante a instituição, “não compromete a qualidade e a fiabilidade dos testes efetuados”, indicando que o que está em causa é o material de recolha das amostras biológicas e não os testes em si.
“Na verdade, os ensaios têm sempre um controlo positivo, facto que atesta a qualidade do teste, desde a recolha até à análise laboratorial. Deste modo, podemos dizer que temos profunda confiança no procedimento, incluindo no material de recolha que estamos a utilizar.”
O politécnico disse ainda não ter conhecimento de que estes kits não tinham um parecer por parte do Infarmed, mas que esta situação nada tem a ver com os testes realizados. “Trabalhámos com os kits de uma entidade altamente credível como é o consórcio UA/IST e não tínhamos qualquer informação sobre a falta de certificação do Infarmed. De qualquer forma, o assunto do parecer do Infarmed não tem relação direta com a atividade do nosso centro de diagnóstico Covid-19″, referiu ainda o politécnico, acrescentando que estão “descansados e confortáveis com os procedimentos adotados.”
Além de um protocolo com o Ministério da Segurança Social, para a realização de testes a funcionários e utentes de lares de idosos e de Serviços de Apoio Domiciliário, o Politécnico de Leiria tem um protocolo com os Ministérios da Saúde e do Mar para testar pescadores. O Observador questionou a instituição para saber se estes kits tinham sido utilizados também no âmbito deste último protocolo, mas não obteve resposta.
Já o Instituto Universitário Egas Moniz, em parceria com Faculdade de Ciências e Tecnologia (Universidade Nova de Lisboa), levantou três mil kits no IST, mas destes foram usados apenas 1.993, no âmbito do protocolo com o MTSSS. Apesar de ser o Ministério da Segurança Social a dar indicações à Proteção Civil sobre onde devem realizar os testes, Helena Barroso, responsável pelo Laboratório de Microbiologia Aplicada Egas Moniz (LMAEM), acredita que a maioria dos kits tenha sido usada em lares de idosos.
O instituto disse que não tinha conhecimento de que as zaragatoas com meio ainda não tinham tido luz verde do Infarmed. Aliás, de acordo com Helena Barroso, que também é coordenadora da equipa que realiza os testes, foi o próprio MTSSS que lhes deu a indicação para estes kits. “Fomos informados de que estes kits estavam a ser feitos, de que poderíamos usá-los e que eles não eram comercializáveis“, afirmou a professora ao Observador, recordando que até surgiram, na televisão, notícias deste consórcio e do que estavam a desenvolver.
Ainda assim, apesar da questão com o Infarmed, Helena Barroso não vê necessidade de repetir os testes realizados com estes kits. “Acho que não faz sentido repetir. A questão do Infarmed não põe em causa a qualidade dos kits. É uma questão do processo não ter sido conduzido [da forma como devia]”, disse a responsável, acrescentando que os kits “funcionam lindamente”. “Não vejo diferença nenhuma em relação aos [kits] comerciais. Espero que rapidamente se resolvam as coisas.”
O Centro de Estudos de Doenças Crónicas (CEDOC-NMS), da Faculdade de Ciências Médicas (NMS|FCM) da Universidade Nova de Lisboa, adiantou que recebeu “cerca de 10 mil zaragotas disponibilizadas pela Hidrofer” e não os kits propriamente. Este produto foi adquirido diretamente à fábrica de Vila Nova de Famalicão, tendo o centro de estudos feito a esterilização das mesmas e produzido o seu próprio meio líquido, cumprindo os “critérios definidos pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA)” em ambos os procedimentos.
O centro de estudos indicou que só soube que as zaragatoas não tinham parecer do Infarmed quando foram alertados pelo consórcio. Ainda assim, não lhes poupam elogios: “Essas zaragatoas merecem a total confiança do CEDOC-NMS, que as utilizou para realizar testes em lares geridos pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com quem a NMS|FCM estabeleceu um protocolo”, informou o centro ao Observador, acrescentando que as zaragatoas “demonstraram bom desempenho e segurança nos testes realizados“. No entanto, não foram mais utilizadas devido às orientações do regulador e o CEDOC adquiriu zaragatoas comerciais.
Também o Instituto Politécnico de Bragança só utilizou zaragatoas: “Só usámos zaragatoas, porque nós próprios fizemos o meio, segundo as instruções do INSA”, afirmou o presidente da instituição ao Observador, acrescentando que o politécnico foi ao IST levantar cinco mil, mas só utilizaram cerca de duas mil em lares de idosos, no âmbito do protocolo com o MTSSS.
Orlando Rodrigues não estava a par da falta de parecer do Infarmed no que toca às zaragatoas, mas disse que elas cumpriam as indicações da Direção-Geral da Saúde (DGS): “Não sabíamos, nem se entendeu que fosse necessário que houvesse [parecer], porque as zaragatoas cumpriam o que estava na DGS e todos os centros entenderam que isso era motivo suficiente para as utilizar.”
O presidente do instituto não vê necessidade de repetir os testes em que foram utilizadas as zaragatoas do consórcio, indicando que mantém a confiança não só nos resultados, como no próprio produto. “Obviamente que sim. Não há nenhum motivo para supor que elas [zaragatoas] não são eficientes, porque o que se passa, tanto quanto sei, é que o Infarmed disse que não estavam homologadas e que, por isso, não podiam ser usadas”, afirmou ao Observador. “Tanto quanto sei não há nenhuma determinação a dizer que estas zaragatoas não cumprem as normas, elas não podem ser utilizadas, porque o Infarmed tem dúvidas.”
No entanto, o Politécnico de Bragança já tinha tido acesso a estas mesmas zaragatoas antes de o consórcio começar a disponibilizá-las. Isto é, o instituto já tinha ido buscar 500 zaragatoas à fábrica da Hidrofer e até chegou a testá-las. “Estas zaragatoas começaram a ser produzidas numa situação em que não havia no mercado e, nessa medida, tinham todas as características que estão no manual da DGS”, explicou Orlando Rodrigues, acrescentando que estas zaragatoas foram utilizadas em testes “de forma a perceber se as recolhas davam resultados fiáveis como as outras”.
Tal como o Politécnico de Bragança, o Instituto Politécnico de Viana do Castelo (IPVC) também só adquiriu zaragatoas, que foi levantar ao IST — o meio é adquirido “comercialmente”. No entanto, a instituição não chegou a utilizá-las. “O IPVC nunca disponibilizou estes kits. Recebeu, muito recentemente, 3000 zaragatoas, mas nunca as mesmas foram utilizadas, encontrando-se atualmente em stock”, adiantou o politécnico, que também não vê motivos para não confiar nos kits.
“Tanto quanto sabemos o Infarmed solicitou esclarecimentos, e os mesmos estão a ser preparados por quem de direito, pelo que, de momento, não existem motivos para não ter confiança nos kits que foram produzidos numa altura absolutamente excecional, em que a escassez dos mesmos condicionava a capacidade de testagem do país, por equipas cientifica e tecnicamente muito capazes. De qualquer forma, até haver o esclarecimento da situação por parte do Infarmed, as zaragatoas em stock não serão utilizadas.”
O Observador perguntou se o IPVC tinha conhecimento de que este produto não tinha sido alvo de um parecer por parte do Infarmed, mas não teve resposta até ao momento.
Também a Universidade de Évora nunca chegou a utilizar os dois mil kits que recebeu, indicando que estão, atualmente, a utilizar outros equipamentos para fazer os testes à Covid-19, no âmbito do protocolo com o MTSSS. “Estamos a acompanhar este processo de certificação por parte do Infarmed para que no futuro, caso tenham o aval desta autoridade reguladora, possam ser utilizados em testes de despistagem à Covid-19 em lares e infantários da região Alentejo”, esclareceu a universidade.
Quanto ao facto de saberem ou não que estes kits ainda não tinham luz verde do regulador, a universidade disse que tinha conhecimento de que estes kits tinham sido “desenvolvidos no âmbito da rede de laboratórios para os testes Covid-19 para serem utilizados pelos diversos laboratórios cumprindo estes os critérios de testagem do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA)”.
O Observador também contactou a Faculdade de Farmácia e a Faculdade de Ciências, ambas Universidade de Lisboa, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, o Instituto Politécnico de Castelo Branco, mas até ao momento não obteve respostas.