Um ano e meio depois da inédita cimeira que juntou em Roma os líderes da Igreja Católica de todo o mundo para discutir o drama dos abusos sexuais de menores, o Vaticano publicou na semana passada um manual de instruções para ensinar os responsáveis católicos a agir quando recebem uma denúncia contra um membro do clero. O manual de 164 pontos, destinado a bispos e responsáveis pelas organizações judiciais católicas, resume a legislação aprovada ao longo das últimas duas décadas (e sobretudo no último ano), mas a novidade é o foco colocado em recomendações que até recentemente não eram prática habitual da Igreja Católica nestes casos, como comunicar todos os casos à polícia ou investigar todas as denúncias, incluindo as anónimas e as que pareçam duvidosas.
Logo na introdução, lê-se que o documento tem como principal objetivo “dar resposta às inúmeras perguntas sobre os passos que se devem seguir nas causas penais” relativas aos delitos mais graves considerados pelas leis da Igreja Católica — os chamados delicta graviora, cujo julgamento está reservado à Congregação para a Doutrina da Fé, organismo do Vaticano responsável por assegurar o cumprimento das normas fundamentais do catolicismo. É nesta categoria que se incluem aqueles que a Igreja designa como “pecados contra o sexto mandamento” (que, apesar de textualmente se referir apenas ao adultério, abrange todas as dimensões da sexualidade humana) cometidos com um menor de 18 anos.
A lista de delitos ali incluída é extensa. “Relações sexuais (com e sem consentimento), contacto físico de ordem sexual, exibicionismo, masturbação, produção de pornografia, indução à prostituição, conversas e/ou propostas de caráter sexual inclusive através dos meios de comunicação”, mas também a aquisição e posse de imagens pornográficas com menores de 18 anos “por parte de um clérigo para fins de libidinagem”. Todos são, descreve o Vaticano, “uma ferida profunda e dolorosa” na Igreja Católica “que pede para ser curada”.
Bispos têm de aceitar e investigar todas as denúncias de abuso
Para evitar que casos de abuso fiquem por investigar devido à forma como a denúncia chegou às autoridades da Igreja, o Vaticano exige agora a todos os bispos e responsáveis católicos que aceitem e investiguem todas as denúncias de que tenham conhecimento, independentemente da via ou da quantidade de informação.
A denúncia pode chegar “de maneira oral ou escrita, pela presumível vítima, pelos seus tutores, por outras pessoas que alegam estar informadas dos factos”, mas também pode chegar ao bispo “pelas autoridades civis”, por ser divulgada pelos meios de comunicação social ou nas redes sociais ou ainda “através de vozes recolhidas e de qualquer outra maneira apropriada”. Em todos os casos, o bispo deve avançar para uma investigação prévia.
Até mesmo se chegar de forma anónima. “O anonimato do denunciante não deve levar automaticamente a considerar falsa” a denúncia, lê-se no manual do Vaticano — que alerta, contudo, para a necessidade de “ter muita cautela ao tomar em consideração esse tipo” de denúncias, “que de modo algum deve ser encorajado”.
“De igual modo, não é aconselhável descartar a priori a notitia de delicto [denúncia] proveniente de fontes cuja credibilidade possa parecer, à primeira vista, duvidosa”, acrescenta o manual. Ao mesmo tempo, uma denúncia que seja “vaga e indeterminada” e que não forneça “detalhes concretos” deve também “ser adequadamente avaliada e, na medida do possível, aprofundada com a devida atenção”.
Mantém-se, contudo, uma exceção: o segredo de confissão. Esta regra, que a Igreja Católica considera inviolável, tem sido uma das maiores polémicas na difícil relação entre autoridades religiosas e civis no que diz respeito aos abusos sexuais de menores. Um dos casos mais notáveis ocorreu na Austrália, onde vários estados determinaram que os padres que tivessem conhecimento, durante a confissão, de um crime de abuso sexual de menores e não o relatassem à polícia incorreriam também eles num crime. Mas o clero australiano recusou obedecer à lei. O arcebispo de Melbourne chegou a dizer que era preferível passar três anos na prisão a quebrar o segredo da confissão.
No manual, o Vaticano diz que se um membro do clero souber de um crime destes durante a confissão deve procurar “convencer o penitente a tornar conhecidas as suas informações por outras vias, a fim de permitir agir a quem de dever”. Porém, fica de mãos atadas se o autor do crime não revelar os seus atos a mais ninguém — ou até ao mesmo padre, mas já fora do contexto da confissão.
Igreja tem de comunicar denúncias à polícia
Após um ano de formulações relativamente vagas sobre a forma como as autoridades religiosas se devem relacionar com as autoridades civis perante uma denúncia de abusos, o manual agora publicado é muito claro. “Mesmo na ausência duma explícita obrigação normativa, a autoridade eclesiástica apresente denúncia às autoridades civis competentes, sempre que o considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos”, determina o Vaticano.
Durante décadas, a Igreja Católica considerou que não tinha de comunicar às autoridades civis as denúncias de abusos sexuais de menores que recebeu, investigou e, muitas vezes, ocultou. Além dos casos que ganharam fama mundial (o caso Spotlight, nos EUA, mas também as investigações aos abusos em países como a Irlanda, a Alemanha ou a Austrália), também em Portugal ficaram denúncias por fazer.
Só é possível falar das que viriam a ser do conhecimento da polícia por outras vias. Foi o que aconteceu em 2013 na diocese de Santarém, quando as autoridades eclesiásticas investigaram em segredo denúncias relativas a abusos cometidos pelo padre da Golegã, que só chegaram à Polícia Judiciária quando um jornal regional revelou os motivos pelos quais o sacerdote havia sido suspenso temporariamente de funções. Na altura, o Ministério Público chegou a pensar em acusar a hierarquia da Igreja por não ter denunciado o padre à polícia.
Embora até este ano as normas não apontassem obrigatoriamente nesse sentido, também houve exceções em Portugal. Foi o caso em Vila Real, onde em 2013 um padre foi acusado e condenado por abusos contra duas menores institucionalizadas numa casa da Igreja. Na altura, a denúncia às autoridades civis partiu de um outro padre — e a hierarquia católica acabaria por ser mais dura na punição do sacerdote do que os tribunais.
Na sequência de repetidos apelos de dentro e fora da instituição, a Igreja Católica tem vindo a mudar, de forma gradual, a abordagem a esta questão, uma das mais polémicas. No ano passado, antes da cimeira do Vaticano, o padre jesuíta alemão Hans Zollner, um dos homens fortes do Papa Francisco para a questão dos abusos, reconhecia numa entrevista ao Observador que, mesmo quando não existe obrigação legal, os bispos têm uma “enorme obrigação moral” de denunciar os abusos à polícia.
Já na cimeira, o Papa Francisco deixou bem claro desde o primeiro dia que a Igreja Católica deve “informar as autoridades civis e as autoridades eclesiásticas superiores, em conformidade com as normas civis e canónicas”. Também o cardeal Seán O’Malley, presidente da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores, vincou que existia uma “obrigação moral” de todos os bispos e responsáveis da Igreja Católica de denunciar os casos de abuso sexual às autoridades civis.
A cimeira acabaria sem grandes medidas concretas, mas seguiu-se um ano de novas regras que foram cimentando a necessidade de os bispos denunciarem os casos à polícia. Primeiro, o Papa mudou a própria lei do Vaticano para dar o exemplo: no pequeno território, passou a ser obrigatório denunciar os abusos sexuais às autoridades. Mais tarde, introduziu um mecanismo de denúncia obrigatória dentro da própria Igreja, segundo o qual todos os membros do clero ficam obrigados a reportar à Santa Sé os casos de que tenham conhecimento. Por fim, em dezembro do ano passado, o Papa Francisco aboliu a imposição do segredo pontifício (o nível máximo de secretismo na Igreja) aos processos de abuso sexual.
Agora, o manual publicado pelo Vaticano vem dar grande prioridade à comunicação das denúncias às autoridades. Durante a investigação prévia — o momento que se segue à receção da denúncia e que antecede o julgamento interno segundo as leis da Igreja —, é “absolutamente necessário evitar (…) qualquer ato que possa ser interpretado pelas presumíveis vítimas como um obstáculo ao exercício dos seus direitos civis perante as autoridades estatais”, avisa o Vaticano.
Apesar de a investigação prévia estar sujeita ao chamado “segredo de ofício” (para não pôr em causa o bom nome dos envolvidos), isso “não impede que o denunciante — sobretudo se tem intenção de dirigir-se também às autoridades civis — possa tornar públicas as suas ações”, lê-se no documento.
“A investigação prévia canónica deve ser realizada, independentemente da existência ou não de uma investigação correlativa pelas autoridades civis. Mas, se a legislação estatal impuser a proibição de investigações paralelas à sua, a autoridade eclesiástica competente abstenha-se de iniciar a investigação prévia e comunique à Congregação para a Doutrina da Fé tudo o que foi denunciado, anexando qualquer material útil”, acrescenta o manual.
Casos que já tenham prescrito têm de ser investigados na mesma
Atualmente, as leis internas da Igreja Católica determinam que os delitos mais graves cujo julgamento está reservado à Congregação para a Doutrina da Fé (incluindo, além dos abusos de menores, uma série de crimes como a heresia, o cisma, a profanação da hóstia, a tentativa de ordenar uma mulher como sacerdote ou a simulação da missa) têm um prazo de prescrição de vinte anos. No caso dos crimes cometidos contra os menores, o prazo de prescrição começa a ser contado a partir do momento em que a vítima completa 18 anos de idade.
Por esse motivo, muitas denúncias de abuso sexual por todo o mundo acabaram por não ser investigadas (ou por nem ser apresentadas à Igreja), porque as vítimas acharam que o prazo de prescrição impediria uma investigação. Porém, as leis da Santa Sé deixam uma possibilidade em aberto: em casos específicos, a Congregação para a Doutrina da Fé tem o direito de “derrogar a prescrição”.
O manual do Vaticano lembra precisamente essa possibilidade e pede a todos os bispos e superiores religiosos que investiguem todas as denúncias — até as que já tenham prescrito. “Mesmo constatando que decorreu o tempo para a prescrição, deverá igualmente dar seguimento à notitia de delicto [denúncia] e à possível investigação prévia, comunicando os seus resultados à CDF, a única a quem compete decidir se manter a prescrição ou derrogá-la”, diz o manual.
Na lei portuguesa, o prazo de prescrição de um crime de abuso sexual de menores é até a vítima completar 23 anos de idade, independemente da idade que tinha quando aconteceu.
O documento debruça-se ainda sobre outro problema que marcou a forma como a Igreja Católica respondeu aos casos de abuso sexual: as transferências de paróquia dos padres abusadores como forma de contornar as denúncias. No manual, o Vaticano reconhece a necessidade de aplicar medidas cautelares — que não são uma pena — aos visados durante a investigação prévia.
Todos os bispos portugueses vão criar comissões para acompanhar casos de abuso sexual na Igreja
Porém, como se lê no manual, “deve-se evitar a opção de realizar simplesmente uma transferência de ofício, de circunscrição, de casa religiosa do clérigo envolvido, pensando que o seu afastamento do local do suposto delito ou das presumíveis vítimas constitua solução satisfatória do caso”.
Em Portugal, o manual deve ser seguido pelos bispos e superiores religiosos em articulação com um outro documento — as diretrizes da Conferência Episcopal Portuguesa para o tratamento de casos de abuso sexual, que os bispos portugueses se comprometeram a “atualizar” com base nas diversas orientações que chegaram do Vaticano ao longo do último ano — e também em diálogo com as comissões de proteção de menores, que todas as dioceses católicas portuguesas foram obrigadas a criar na sequência da ordem expressa do Papa Francisco nesse sentido.