Os bispos católicos portugueses — todos, sem exceção — comprometeram-se esta semana a criar nas suas dioceses “instâncias de prevenção e acompanhamento em ordem à proteção de menores”, anunciou nesta quinta-feira o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, padre Manuel Barbosa. Na prática, estas instâncias serão comissões como a criada recentemente no Patriarcado de Lisboa e que inclui antigos polícias, magistrados, psiquiatras e juristas, detalhou D. Manuel Clemente, cardeal patriarca de Lisboa e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa.

A decisão surge após sinais de clara divisão entre os bispos sobre a criação de comissões para acompanhar casos de abuso sexual de menores na Igreja Católica. Dias depois do anúncio da criação da comissão em Lisboa, o bispo do Porto, D. Manuel Linda, disse em entrevista à TSF que criar uma comissão semelhante na sua diocese faria tanto sentido como criar “uma comissão para estudar os efeitos do impacto de um meteorito na cidade do Porto”. Já o bispo de Lamego, D. António Couto, disse ao Público que não era “daqueles que criam comissões que depois não terão nada para fazer”. Também os bispos de Santarém e do Funchal rejeitaram esta semana a possibilidade de criar comissões para acompanhar os abusos sexuais.

“A Assembleia refletiu sobre as orientações vindas do encontro sobre a proteção de menores na Igreja, que decorreu em fevereiro no Vaticano, destacando os pontos principais do discurso conclusivo do Papa Francisco. A resposta eclesial deve ter as seguintes dimensões: a tutela das crianças; a seriedade impecável; uma verdadeira purificação; a formação; o reforço e verificação das diretrizes das Conferências Episcopais; o acompanhamento das pessoas abusadas; a atenção pastoral ao fenómeno crescente dos abusos no mundo digital e no turismo sexual. Os Bispos comprometem-se a criar instâncias de prevenção e acompanhamento em ordem à proteção de menores nas suas Dioceses e a atualizar as diretrizes aprovadas pela Conferência Episcopal em 2012, tendo em conta as orientações da Santa Sé”, diz o comunicado final da assembleia plenária dos bispos, que decorreu esta semana em Fátima.

Na conferência de imprensa que fechou a reunião plenária dos bispos, o cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, desvalorizou as diferenças de opinião que antecederam a assembleia, sublinhou que “o que aconteceu foi a formalização de algo que já estava em curso” e assegurou que a decisão de criar comissões em todas as dioceses foi “uma decisão unânime de todos os bispos portugueses”.

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D. Manuel Clemente garantiu também que o objetivo das comissões não será apenas o acompanhamento de casos de abuso sexual — mas “sobretudo a prevenção”. Como? “Faremos tudo o que for necessário, tendo em conta que o valor maior é a proteção da pessoa que foi abusada”, garantiu, assinalando que as diretrizes aprovadas em 2012 pela Conferência Episcopal Portuguesa serão reforçadas.

Questionado pelos jornalistas sobre se esta alteração às normas incluirá a obrigatoriedade de denúncia às autoridades por parte dos bispos que tiverem conhecimento dos casos, D. Manuel Clemente sublinhou apenas que será feito “tudo o que vá no sentido da colaboração estrita e direta com as autoridades civis”, mas sempre salvaguardando as “realidades que são do foro interno”, nomeadamente “o que se passa no sacramento da confissão”. “Não nos podemos precipitar nem substituir ao próprio”, sublinhou.

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Sobre a possibilidade da divulgação de estatísticas a nível nacional relativamente aos casos de abuso sexual, D. Manuel Clemente recusou para já a realização e divulgação de estudos estatísticos sobre este assunto. Mas garantiu que a Conferência Episcopal sabe “o que aconteceu” e não chegou “lá a olho”. “Tudo o que precisar de ser tratado será tratado, mas não posso dizer mais do que isto”, rematou o cardeal.

D. Manuel Clemente falou ainda sobre a possibilidade de responsabilização dos bispos que tenham conhecimento de casos e que não os comuniquem às autoridades, lembrando que “além dos procedimentos civis há os procedimentos canónicos” para julgar estes casos.

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Os bispos aguardam agora o envio do guia prático prometido pelo Vaticano no final da cimeira de fevereiro dedicada aos abusos sexuais, que deverá ajudar as conferências episcopais de todo o mundo a reforçar as normas de proteção dos menores. “Estamos numa certa expectativa do que é que a Santa Sé nos vai dizer mais. Sabemos que o Papa, para o seu território, já fez legislação própria”, sublinhou — legislação essa que tornou obrigatória a denúncia de casos de abuso sexual, impondo até pesadas multas a quem omitir a denúncia.

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O cardeal patriarca referiu-se também às situações de padres que violam os votos de celibato e têm filhos, sublinhando que “se alguém tem um filho é responsável por esse filho” — a proteção destas crianças enquadra-se no quadro geral da proteção dos menores discutida em fevereiro no Vaticano. “No caso de ser um sacerdote, o facto de poder ou não poder permanecer no ministério tem de ser visto caso a caso, tal como o documento da Santa Sé diz”, declarou D. Manuel Clemente.

Recentemente, o jornal norte-americano The New York Times revelou que o Vaticano tem um documento interno com as normas a adotar em casos de padres que têm filhos. A existência do documento foi revelada ao jornal norte-americano pelo irlandês Vincent Doyle, líder da Coping International, associação que presta apoio a milhares de filhos de padres em todo o mundo. Numa entrevista ao Observador em fevereiro, Vincent Doyle disse ter conhecimento de casos de filhos de padres que foram ocultados por indicação da hierarquia da Igreja Católica, acabando privados de ter uma vida familiar.

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Nas últimas semanas, o líder da Coping International enviou ao cardeal patriarca de Lisboa informações e perguntas sobre a posição da Igreja Católica em Portugal relativamente a estes casos — nomeadamente sobre o número de pedidos de ajuda chegados a partir do país àquela associação internacional. Em resposta ao Observador sobre este assunto, o porta-voz da Conferência Episcopal, padre Manuel Barbosa, assegurou que o tema está entre as prioridades dos bispos portugueses e que todas as informações úteis serão tidas em conta.

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Além da proteção dos menores na Igreja, os bispos portugueses aprovaram nesta assembleia plenária duas cartas pastorais: uma sobre o matrimónio, que ainda não foi publicada, e outra sobre “um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da doutrina social da Igreja”. Nesta segunda, já distribuída aos jornalistas, os bispos pretendem “ajudar os católicos do nosso País e tantos outros portugueses a abraçar os principais desafios com que hoje se deparam no mundo em geral e especialmente em Portugal e na Europa”.

Os bispos dedicam a primeira secção deste novo documento ao direito à vida, posicionando-se contra práticas como o aborto e a eutanásia, mas destacando também o direito à vida na fase do crescimento, sublinhando o “respeito pelas crianças”, ao qual se opõe “o abuso sexual de que algumas delas têm sido vítimas. Um abuso absolutamente condenável, venha de quem vier, mas muito mais grave se for por pessoas da sua confiança a praticá-lo”.

“Entre eles têm estado infelizmente membros da Igreja. Pelos irreparáveis danos que provocam pela total contradição com o amor evangélico de que devem dar testemunho, tais abusos têm sido condenados pela autoridade da Igreja, principalmente pelos últimos papas, com medidas e penas há muito não vistas. Tudo pelo bem que se quer às vítimas, destes e de qualquer outro tipo de abusos: violências, descuidos, abandonos, bullyings, entre outros. Estamos em total sintonia com o Santo Padre. E comprometemo-nos a tudo fazer para, do mesmo modo, tratar e prevenir tais casos”, lê-se na carta.

Os bispos dedicam ainda a carta a temas como o bem comum, as migrações, a crise económica, a Europa, a distribuição de rendimentos, a educação e a saúde. “Queremos contribuir para um melhor discernimento sobre as realidades do nosso País e da Europa, numa altura em que somos chamados a participar através do voto em eleições europeias e nacionais, visando a construção de uma sociedade mais justa e fraterna”, conclui a carta.