O nome – Atlas, ou Atlante – inspira-se no deus grego que foi condenado por Zeus a carregar, para toda a eternidade, o peso dos céus aos seus ombros. Vai chamar-se Atlante o fundo criado esta segunda-feira em Itália e que quer ajudar os bancos italianos a libertarem-se de algum do peso do crédito malparado que há vários anos carregam aos ombros. Em Portugal, os bancos também convivem há uma eternidade com um problema de crédito malparado que saltou para a ordem do dia no último fim de semana. Um Atlas à italiana pode servir para Portugal?
Ao cabo de várias semanas de negociações, o setor financeiro italiano chegou a acordo para a criação de um fundo que terá cinco a seis mil milhões de euros em capital mas que poderá multiplicar essa capacidade através de emissões de dívida. O objetivo é retirar a banca italiana dos “holofotes” dos mercados internacionais e assegurar que os bancos mais frágeis podem recorrer a esse fundo e, ao mesmo tempo, ajudá-los a desfazerem-se de créditos com maior risco que estão a entupir os seus balanços.
A solução foi encontrada pelos bancos (em conjunto com outras empresas do setor financeiro italiano) e será uma bandeira de Matteo Renzi, um dos chefes de governo europeus com quem António Costa tem melhores relações. O primeiro-ministro português defendeu este fim de semana a criação de um veículo com características que podem, em vários aspetos, ser similares ao que foi anunciado na noite de segunda-feira em Itália. Mas os especialistas ouvidos pelo Observador dizem que dificilmente o Atlas será a musa inspiradora para algo que venha a ser feito em Portugal.
Como vai funcionar o plano italiano (e vai funcionar?)
O tempo dirá se o Atlas é a “bala de prata” que resolve os problemas da banca italiana – as opiniões dividem-se, para já. Numa primeira reação, enviada aos clientes, os analistas do banco holandês Rabobank lembram que falta conhecer alguns “detalhes” importantes sobre como o fundo vai funcionar, mas arrisca já dizer que foi dado “um passo importante para estabilizar um sistema bancário que tem sido, simplesmente, incapaz de realizar progressos significativos após a crise financeira”.
Marco Elser, analista da Lonsin Capital que deu uma entrevista à Bloomberg na terça-feira, concorda que “este foi um passo muito importante no sentido certo”. Contudo, o especialista diz que “cinco mil milhões de euros não serão suficientes” para resolver um problema que se avalia em 360 mil milhões – mesmo que o veículo tenha formas de se alavancar, ou seja, de multiplicar a sua capacidade (possivelmente, tirando partido de uma garantia de Estado).
O Atlante, que será gerido por uma empresa privada independente – a Quaestrio Sgr –, pretende ser um fundo rede de segurança, que terá como primeira missão participar em aumentos de capital de bancos italianos mais pequenos que necessitem de se recapitalizar. Na impossibilidade de esses bancos se reforçarem por via privada, este fundo atuará como “investidor de último recurso”.
Segundo um analista de bancos italianos em Londres ouvido pelo Observador, esta será a primeira missão do Atlas. O fundo poderá, mesmo, intervir já nas próximas semanas no aumento de capital do Popolare di Vicenza. O banco, apanhado num escândalo de venda imprópria de ativos financeiros, ficou com um buraco que terá de ser preenchido por um aumento de capital de 1.750 milhões de euros. Se faltarem investidores, como alguns receiam, estará lá o Atlas.
A outra função importante do veículo agora criado será a absorção de ativos (créditos em falta, por exemplo), comprando-os aos bancos privados a desconto. Essa compra a desconto gera, contudo, necessidades de capital na instituição que fica sem os ativos – pela mesma explicação técnica que justifica a injeção de dinheiros no Banif depois da passagem de ativos para o veículo Naviget/Oitante. Os bancos que sentirem dificuldades na venda desses títulos poderão usar uma garantia do Atlas – espera-se até ao final da semana mais detalhes sobre como estas operações poderão funcionar em concreto.
O que dá Renzi, em troca, à banca italiana? O que ela quer
Os cinco mil milhões iniciais serão injetados pelas empresas financeiras, com os três maiores bancos – UniCredit, Intesa Sanpaolo e UBI Banca – como principais contribuintes. É do interesse de todos os italianos, e também dos bancos, que os investidores internacionais vejam um risco menor na banca do país. Recorde-se que seis dos 10 bancos europeus que mais desvalorizam em bolsa este ano são italianos – alguns dos quais perderam mais de metade do seu valor.
Contudo, no comunicado emitido pelo governo de Matteo Renzi, percebe-se que houve uma outra moeda de troca. “Nos próximos dias, tornaremos as regras que regem os processos de insolvência mais céleres e mais simples, para que toda a gente possa ter a garantia de que recebe o seu dinheiro num período razoável”.
Segundo o Financial Times, os bancos demoram uma média de oito anos a recuperar alguma parte dos empréstimos que não são reembolsados, o que compara com a média europeia de dois a três anos. Quando o pagamento das dívidas falha, os bancos têm muitas dificuldades em apoderar-se das garantias colaterais que foram prestadas. Foi, em parte, assim que se acumularam 360 mil milhões em crédito malparado.
Segundo um especialista ouvido pelo Observador, esta alteração legislativa será ainda mais decisiva do que a criação do fundo. Isto porque a legislação italiana, excessivamente complexa, terá contribuído para que o problema do malparado na banca tenha chegado aos valores a que chegou. Os bancos têm dificuldades em anular muitos destes créditos ou em vendê-los a investidores externos. Resta saber se será fácil promover as alterações jurídicas e legislativas que o governo de Matteo Renzi prometeu para os próximos 10 dias.
Falta, também, saber se a Comissão Europeia irá aprovar este plano. O governo de Matteo Renzi está a sublinhar o caráter privado das contribuições para o fundo para sacudir quaisquer suspeitas de auxílio estatal que possam levar a Direção-Geral da Concorrência a rejeitar o plano. Uma das possíveis fragilidades da argumentação do governo é que um dos maiores contribuintes do fundo é a Cassa Depositi e Prestiti (CDP), que, não sendo exatamente um banco do Estado, é uma instituição que trabalha sobretudo com o Estado e presta contas regularmente a uma comissão parlamentar.
O mesmo modelo pode ser aplicado em Portugal?
“Algo deve ser feito em Portugal para resolver a questão dos bancos”. O último a comentar este tema foi José Manuel Durão Barroso, ex-presidente da Comissão Europeia. Barroso diz que não conhece a proposta de António Costa mas assinala que “a situação da banca portuguesa continua difícil apesar de todos os esforços feitos” e que “é do interesse português e europeu” encontrar uma solução.
Dados divulgados esta terça-feira pelo Banco de Portugal indicaram que o crédito malparado voltou a subir em Portugal, pelo segundo mês consecutivo, para quase 18 mil milhões de euros. Este valor de empréstimos em risco representa quase 9% do total de crédito que está, neste momento, em crédito concedido às famílias e empresas portuguesas.
Faz sentido, então, olhar para o modelo italiano do Atlas como musa inspiradora para a criação de um bad bank em Portugal? Um analista de bancos italianos em Londres começa por sublinhar que “o plano italiano não é um bad bank; é um backstop“, ou seja, uma rede de segurança que tornará mais fácil uma recapitalização das instituições. O objetivo principal não é acumular numa entidade os ativos problemáticos mas, sim, criar melhores condições para que outros investidores privados absorvam estes créditos e os tirem dos balanços dos bancos.
A mesma ideia, em traços gerais, poderia ser aplicada em Portugal. Mas há um problema, dizem os especialistas ouvidos pelo Observador. É que o governo tenta contornar as regras de auxílio de Estado com a injeção de capital por parte dos bancos privados. Mas “isto pressupõe que há um conjunto de bancos que estão em situação folgada e que conseguem fazer um investimento neste fundo”, diz um analista.
“Estes bancos italianos [sobretudo os três maiores] têm uma situação financeira mais folgada do que os três maiores bancos portugueses. E nenhum deles está a receber auxílio de Estado“, como é o caso da Caixa Geral de Depósitos e do BCP, por exemplo, que ainda não devolveram o empréstimo estatal que receberam após a chegada da troika.
Essa é uma diferença fundamental, dizem os analistas em relação a Portugal, e que limita até que ponto o Atlas pode servir de inspiração para um plano para a banca nacional. Contudo, não está ainda disponível toda a informação sobre como o Estado italiano poderá participar na atuação do fundo. Aí, o Atlas poderá, dizem os analistas, dar uma orientação sobre até onde é que a Comissão Europeia permite que se vá.
Um modelo de que inclua garantias de Estado é o preferido pela generalidade dos bancos portugueses para ajudar a empacotar ativos e vendê-los a investidores privados a um preço um pouco melhor para os bancos e com menos risco para o comprador. “Poderia haver apetite para investir. Tudo se vende, é uma questão de preço“, e uma garantia de Estado – eventualmente remunerada – poderia ajudar a fazer esses negócios e escoar alguns ativos, diz um analista.