O número 10 da Seleção Portuguesa de Futebol tem um rosto e foi por ele que escorreram as lágrimas mais inspiradoras no mais recente Campeonato do Mundo. Não, não falamos de Bernardo Silva. Porque se o 7 é propriedade quase eterna no masculino, o 10 português escreve-se com um pronome possessivo feminino. É dela. É de Jéssica Silva. Mas para ser “dela”, muito teve de correr esta alentejana.
Insultos na escola por ser “melhor que os rapazes”, as lesões, a distância da família e a discriminação. Muita discriminação. Desde as sugestões de equipamentos “mais justos”, passando pela separação dos “extraterrestres” masculinos, ultrapassou tudo. Hoje, depois de um Mundial que fica para a história, já a param nos semáforos para pedir um autógrafo. E mesmo que continuem a existir “Rubiales” — agora menos –, promete que não vai parar de dançar. Foi assim Jéssica Silva, Em 40 Minutos.
(Veja aqui a entrevista completa em vídeo)
Jéssica, chega a esta a entrevista com um ritmo mais calmo, porque está a recuperar de uma lesão…
Sim, infelizmente sim, são ossos do ofício. Pior do que a lesão em si, é realmente o timing. Para as minhas colegas é um mês com muita competição. Mas, agora, é focar na recuperação e toca a apoiá-las desde as bancadas, faz parte.
O que é o futebol para si?
Continua a ser a minha maior paixão. Sinto muito amor por aquilo que faço. É aquilo que mais gosto de fazer, aquilo que me dá mais prazer e não me imagino sem futebol.
E sempre quis ser futebolista?
Não, claro que não (risos). Durante a minha infância, nem sabia que existiam equipas femininas. Nem que existiam jogadoras de futebol. Entretanto, uma colega minha apanhou-me a jogar na escola (como fazia sempre) e convidou-me para ir jogar. Ela via-me a jogar na escola com os rapazes e disse-me “tens de ir jogar à minha equipa”. E fui. Gostei muito, naturalmente. Era uma equipa só de raparigas e elas também gostaram de mim. Sentiram que tinha uma aptidão diferente para jogar. Aliás, nem era futebol, era jogar à bola! Porque não gostava de futebol, nem de ver na televisão.
Ouça aqui a entrevista na íntegra em podcast.
Era o futebol de rua, jogar até ao sol se pôr…
Exato! Era o estar a jogar à bola. Eu não tinha bolas, jogava com as laranjas verdes do quintal da minha avó e dava chutos nas cabeças das bonecas da minha irmã. Eu gostava era de jogar à bola ou com qualquer coisa redonda. E foi assim que cresci, até ir viver para Águeda. E foi aí que essa colega me descobriu e me levou a treinar. E como foi sempre o que mais gostava de fazer e tinha realmente prazer, lá comecei a treinar e a jogar nessa equipa. E pelos vistos, desde aí, tenho tido algum sucesso.
Apesar do amor que tem pelo futebol, alguma vez lhe passou pela cabeça desistir?
A minha carreira foi toda construída ultrapassando inúmeros obstáculos. Eu tive muitas barreiras quer dentro de campo quer fora. Sobretudo, fora. Mas, dentro de campo, dentro da minha rotina, tive as lesões, que também me fizeram crescer. E houve uma lesão gravíssima que tive. Na altura não quis desistir, sabia que ia continuar a jogar futebol. Mas aquilo estava a custar tanto. Estava fora, na melhor equipa do mundo.
Foi na altura em que jogava no Olympique de Lyon, portanto…
Exatamente. Representava o Lyon, num momento em que achava que estava na minha melhor forma, que ia poder ter mais minutos e ganhar a confiança do treinador. Foi nessa altura que contraí a lesão, ainda por cima no início da pandemia… e custou-me. Ainda me causa alguma emoção. Foi uma rotura do tendão de Aquiles e foi doloroso. Só o tentar ganhar força doía. Saía de todas as sessões de fisioterapia a chorar. Não foi uma sessão, foi até ao último dia a chorar, saía de rastos. Porque todo o processo de recuperação envolvia dor. Quando voltei a jogar… doía. E, nessa altura, pensei: “Fogo, vale mesmo a pena estar tão longe da minha família a recuperar de uma lesão gravíssima, a lutar tanto para estar na elite?”. E pensava “Jéssica, se calhar, tens de dar uns passinhos atrás e vais para ao pé de casa”. Ainda por cima, foi numa altura em que todas as jogadoras estavam a voltar a Portugal. Não desisti, mas senti que o meu propósito de estar entre as melhores podia não continuar. Não foi uma desistência, porque desistir do futebol e do que realmente quero é impossível. Não posso. Mas questionei os meus objetivos. E a verdade é que dei a volta.
E não se arrepende de, mais tarde, ter mesmo voltado para Portugal?
Não, não me arrependo de nada. E mesmo aquela lesão fez-me crescer imenso. E tudo à posteriori correu bem. Acho que mantive sempre o meu mindset. Foi só uma fase em que questionei o inquestionável. Tenho os meus objetivos, os meus sonhos, quero estar aqui e pronto, acabou aqui a conversa. Nessa fase foi mais difícil. Sobretudo na altura da pandemia, estava longe da família, não saía de casa… custou um bocadinho, mas dei a volta. Tinha de dar.
De certeza que sonhou várias vezes em estar onde está. Mas sabemos como tudo é difícil para as mulheres no futebol. Como geriu esses sonhos, sendo mulher?
As coisas estão muito mais simples agora, mas ainda temos um longo caminho a percorrer. O mais difícil foram sempre as lesões, os momentos em que não pude fazer aquilo de que mais gostava e estar longe da equipa. Mas soube sempre gerir isso, porque sempre quis estar na elite do futebol. Sempre quis alimentar o meu sonho e o sonho de outras miúdas. Sempre senti que temos muito mais para dar. Não era só a Jéssica. Não é só a Jéssica. Houve muitas colegas com qualidade que acabaram por desistir. Acho que isso foi uma questão de mindset. Não sei. Acredito tanto que a nossa forma de pensar e de estar na vida é tão importante, que depois no campo as coisas acabam por sair. Acho que lá dentro acabamos por ser o que somos cá fora. Por isso, sempre quis alimentar esse sonho. Depois, comecei também a perceber que era uma referência para outras miúdas. E até miúdos. Isto até é um bocadinho estranho de dizer, mas eu tenho muitos miúdos a escrever-me, a dizer que sou um exemplo e uma referência para eles. Isso para mim é um motivo de orgulho, que me deixa muito satisfeita. Já disse isto outras vezes: eu não jogo só para mim, jogo também para outras miúdas acreditaram.
Durante o Campeonato do Mundo, a lendária jogadora brasileira Marta deu uma conferência de imprensa em que se emocionou com o passado. Chorou ao relembrar uma infância sem referências femininas no futebol, porque não se dava destaque à modalidade. Como é que foi para si crescer também sem muitas referências? Sem uma “Jéssica Silva” como modelo?
Na altura, lembro-me do Mundialito feminino ser transmitido num canal televisivo. Lembro-me da Eurosport passar os Europeus. Era daí que conhecia o futebol feminino. Mas parecia algo longínquo, porque nunca havia Portugal. Achava que era impossível tornar-me jogadora de futebol. Mas fui construindo esse caminho e tive referências. Via a Ana Borges jogar. Vi a Edite Fernandes jogar. Vi a Carla Couto. E elas foram as minhas grandes referências. Via-as e pensava “elas jogam lá fora, são jogadoras da Seleção, representam o país”. Aos 15 anos fui chamada à Seleção Sub-19 e nem sabia que existia uma seleção feminina. Portanto, sim, tive referências, mas era algo muito longínquo. Mas assim que percebi que era possível, comecei a trabalhar de forma muito dedicada para conseguir ser como qualquer uma delas. Queria muito chegar à Seleção AA e ter um contrato profissional de futebol. Agora, em Portugal, isso já é realizável, acontece, mas tive de sair do país para ter o meu contrato profissional, para ser jogadora de futebol.
Ou seja, sente que só a valorizaram depois de ir para fora?
Sem dúvida alguma. Mas isso aconteceu-me e a todas as outras, até às minhas referências. Porque o futebol feminino em Portugal não era conhecido. Aliás, até há pouco tempo diziam-me: “Jéssica, tens um corpo tão atlético, que desporto praticas?”. E respondia “futebol” e ouvia de volta um “Futebol?!”. Até há pouco tempo isto acontecia. Este processo está a ser feito, mas continua a ser um fenómeno muito recente comparando com outros países, em que, já se faziam contratos, onde já havia campeonatos profissionais.
Sentiu ser alvo de preconceitos na carreira. Alguma vez ouviu comentários que lhe provocaram um revirar de olhos?
Claro que sim. Com muita pena minha, cresci a ouvir esses comentários. Aliás, todos os rapazes da minha escola fizeram comentários impróprios, só porque era rapariga e era melhor do que eles.
Mas “deixavam-na” jogar com eles?
Quando era mais nova, não. Depois quando comecei a crescer, no secundário, já todos pediam: “Jéssica, vem para a minha equipa!”. Uma das coisas que mais gosto me dá é ver os miúdos mais novos — dos 7 aos 14 anos, naquela idade tonta — reconhecerem as jogadoras. Reconhecem o futebol feminino, até conhecem as Seleções de formação. Isso era impensável. Um miúdo a falar do futebol feminino?! Havia muito mais aquele comentário “o futebol não é para meninas”. Agora sinto que é diferente. Até o meu irmão, que tem 16 anos, está realmente interessado. Conhece as miúdas, conhece os prodígios todos… e isso nota-se. É a diferença, é o caminho que estamos a percorrer, e ainda bem que assim é. Tem de ser assim.
Como foi a reação da família quando disse que queria seguir este caminho?
Sempre me apoiou, mas nunca a minha profissão iria passar pelo futebol. Depois as coisas acabaram por acontecer de forma natural, porque também ganhei uma certa independência. Naturalmente, viram isso com bons olhos, mas nunca tive, mesmo hoje, a minha família inteira a apoiar-me no estádio. Também por força das circunstâncias. Mas sempre me apoiaram. Nunca me proibiram de jogar. A minha mãe sempre percebeu que eu gostava muito de jogar futebol. Toda a gente percebia. Quando comecei a levar as coisas mais a sério aceitaram isso.
Olhemos para o futuro da modalidade. Há algumas vozes que defendem a alteração de algumas regras para tornar o futebol feminino mais atrativo. A diminuição do tamanho das balizas é a mais falada. Concorda com essas sugestões?
Ah, por favor, não repitas isso outra vez! Não, não, não! Já tive quem sugerisse isso a sério, que as balizas deviam ser mais pequenas, que os equipamentos deviam ser mais justos…
O equipamento? Mas isso em termos de utilidade futebolística tem zero…
Exatamente, tem zero utilidade. Mas diziam que para o futebol ser mais atrativo, o equipamento devia ser mais justo, as balizas mais pequenas, porque as guarda-redes mulheres não têm a mesma capacidade de salto dos guarda-redes homens. Coisas do género. Já ouvi de tudo. Até vindo de pessoas importantes.
Não quer dizer nomes?
Não, não me quero meter em trabalhos. Mas não, por aí não. Isto devia ser regido pela equidade. Só têm de dar condições às jogadoras, à mulher, para que haja igualdade. E o que sinto é que falamos todos de igualdade – e não estou a falar dos salários – mas falhamos em coisas básicas, como as infraestruturas. Ainda há jogadoras a treinar em sintéticos. Porque é que os jogadores têm os melhores campos e as jogadoras estão a treinar no sintético? Porquê? Porque é que os jogadores têm os melhores horários para treinar e as jogadoras têm de treinar às oito e às nove da noite? Isto acontece, é uma realidade.
Até porque são problemas mais fáceis de resolver do que, por exemplo, as questões salariais…
Claro, é por aí.
Sente-se triste por não jogar habitualmente no Estádio da Luz e jogar antes no Seixal? Tal como o Sporting costuma jogar em Alcochete em não em Alvalade…
Acho que fazia sentido, no mínimo. Há tantos exemplos lá fora. Temos de nos reger pelos bons exemplos. Há tantas equipas europeias que abrem os estádios – normalmente da equipa masculina – para a equipa feminina jogar. Acho importante isso acontecer. E o Benfica tem-no feito e bem. Mas é mais do que isso. É sentir a diferença. Eles parecem uns extraterrestres, ninguém os pode ver. Há uma barreira muito grande. Uma das coisas mais bonitas que vivi, quando estive lá fora — lá fora, nisso, estamos mais à frente — ia almoçar à cantina do Lyon e os jogadores da equipa masculina estavam lá também. Sentavam-se ao meu lado e comíamos juntos, não havia diferença. Já por cá, uma colega minha de Seleção quis pedir uma foto com um colega da equipa masculina e havia uma barreira. Então, a fotografia ficou com ela de um lado e ele do outro. Com uma barreira ali no meio. Não faz sentido algum.
Mas quem cria essas barreiras?
Essas barreiras já estão criadas há muito tempo, têm é de ser desconstruídas.
E isso é papel dos clubes?
Ah, sim, sim. Um presidente devia cativar e promover essa união. No fundo, é o mesmo clube. Sinto que há muito esta separação. Há o futebol masculino e depois o futebol feminino.
Costuma estar perto dos jogadores do futebol masculino do Benfica, por exemplo?
Já estive. Como jogadora do Benfica as coisas são diferentes. Não treinávamos no Seixal, mas fomos para lá agora. Estamos mais próximos. Mas aqui em Portugal ainda há muito esta separação. Acho que o futebol masculino pode ajudar-nos a crescer.
Mas acha que o futebol masculino tem feito pouco?
Acho que não tem sido o suficiente. Gosto de falar de uma forma construtiva. Eles têm uma força tão grande, que devia haver uma interação maior. Não devia ser um problema e acho que o é. Porque não uma fotografia de família? Eles estão e nós também estamos. Somos as equipas seniores, os plantéis profissionais. Vamos juntá-los. Isso acontece noutros clubes e isso é muito importante. Até para catalisar a imagem do clube. Porque é giro, acaba por passar uma mensagem inclusiva. Acho que se isso acontecesse, se não houvesse essa separação entre futebol feminino e masculino, as coisas podiam ser muito melhores. Mas isto não é no Benfica, é de um ponto de vista geral. Acho que o caminho está a ser feito, mas ainda são baby steps. Não são novas regras que podem mudar isto, são as cabeças, que têm de estar alinhadas. As pessoas têm de querer o melhor para o futebol feminino. Não é muito difícil alinhar estratégias, não é muito difícil perceber qual é o plano para desenvolver a modalidade. Acho que nisso é que não estamos assim tão alinhados, porque o crescimento seria muito mais rápido. É uma questão de mentalidades. É o mais difícil, talvez.
Claro que as mentalidades são muito importantes para desimpedir estes obstáculos, mas é também preciso dinheiro. Neste momento, está a ser feito o caminho certo para trazer mais financiamento ao futebol feminino?
Sim, claro que sim. Para já, as jogadoras estão a fazer isso lindamente (risos).
E notou-se no Campeonato do Mundo…
Sim e nota-se no Benfica… a jogar a Liga dos Campeões (risos). Estou a brincar, mas é verdade. As jogadoras e os clubes – nem todos – já estão a pensar nisto com mais força e investem mais. Olham para nós de uma forma diferente, percebem que o futebol feminino tem um potencial de crescimento que outras áreas não têm. É importante continuarmos a aparecer. E o crescimento do futebol feminino continua a passar muito pela comunicação. Já não é estranho a Jéssica estar ali num placard ou num spot publicitário. E quem diz a Jéssica, diz outras jogadoras como a Kika Nazareth, a Ana Borges… Já tentam, pelo menos, perceber quem são as jogadoras. Afinal existem. O Mundial foi um ponto de viragem para nós também. Podemos falar de uma era do futebol feminino antes e depois do Mundial. A nossa presença veio ajudar muito a provocar o interesse das pessoas. Não só na Seleção Nacional, mas no futebol feminino no geral.
Sentiram esse apoio, mesmo estando no lado oposto do mundo?
Sentimos o apoio lá, sem dúvida alguma. Mas não tínhamos a noção de que tinham sido tantas pessoas. Sabíamos números, mas não tínhamos a noção de que Portugal parou para nos ver jogar. Isto era impensável às 8 da manhã. Portugal acordou mais cedo para nos ver jogar. E quando voltámos, sentimos o fenómeno das pessoas pararem para nos ver. Eu estar a entrar num restaurante e as pessoas irem ter comigo. Ou estar parada num semáforo e saírem do carro para me baterem no vidro…
Isso acontece?
Sim, sim. É incrível. Dantes éramos conhecidas, mas era muito mais tranquilo. Agora não deixa de ser tranquilo – porque é bom sentir o carinho das pessoas –, mas não tinha noção de que tanta gente nos tinha estado a ver. E agora, tenho a certeza de que se o Benfica encheu a Luz com 27 mil pessoas na época passada, este ano quando lá voltarmos vamos ter muitas mais. Foi muito boa esta presença na Nova Zelândia. Podia ter sido melhor, competitivamente, se tivéssemos passado.
Não estivemos muito longe…
Não estivemos muito longe e acho que conquistámos muito fora de campo. Acho que isso foi mesmo muito importante.
Aqui na Rádio Observador fizemos o relato do jogo de estreia e a imagem mais marcante foram as tuas lágrimas durante o hino nacional. Como é que foi esse momento?
Não consigo banalizar o hino. É um momento muito especial para mim. E no primeiro Campeonato do Mundo, passou-me tudo pela cabeça. Já disse isto antes: cada uma de nós tem a sua história. E todas acabámos por escrever um livro mesmo incrível. E quando ouvi o hino, relembrei tudo o que tinha acontecido para estar ali. Há muita gente que não sabe, mas tenho um percurso com alguns percalços. Foi sempre na luta, sempre a ir à procura da felicidade. E chegar ali, ao Mundial, foi mesmo especial e foi um dos momentos mais gloriosos da minha carreira. Foi mais um momento que faz jus àquilo que levo comigo sempre: o não desistir do que queremos ser. Nunca! Independentemente que digam “não consegues”; “não podes”; “não vais voltar igual depois da lesão”; “a Jéssica já é um flop”… Tu só dependes de ti. E foi por isso que chorei tanto. Foi muito especial. Foi a nossa primeira vez e foi mesmo bonito.
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E lembra-se do que sentiu segundos antes de entrar em campo?
Estava nervosa nos jogos. Mas quando começa, desligo. Estou é desesperada, desejosa, para que comece! Porque assim que o apito inicial acontece, acabam-se os nervos e vamos é jogar.
Tem algum ritual antes dos jogos?
O único ritual que acontece sempre é dançar no balneário. Se não dançar, alguma coisa não está bem. Enquanto estamos no pré-aquecimento, no fisioterapeuta… estou sempre a dançar. Danço imenso, gosto muito.
Alguma música específica ou qualquer uma?
Qualquer uma, eu quero é dançar.
É um ritual quase de agradecimento por estar onde está…
Sim! Jogar futebol continua a ser a minha grande paixão. Porque há um dark side no futebol, há um lado negro. Já o senti. Mas a verdade é que continua a ser o sítio onde estou mais feliz. Estar com as minhas colegas no balneário, ir para o campo, fazer aquilo que melhor sei fazer e que mais amo… é um privilégio e eu tento sempre desfrutar dessa atmosfera.
Por falar num lado negro do futebol: o Mundial fica marcado por coisas muito boas, mas também por uma muito negativa, o Caso Rubiales. Falou com alguma das tuas colegas da Seleção Espanhola sobre isso?
Sim, tive a oportunidade de falar com duas colegas espanholas. Já joguei em Espanha, acompanho o futebol espanhol. Sou fã da qualidade delas. Elas são uma seleção de uma qualidade imensurável. Já há muito tempo que têm uma seleção de luxo. E o que me deixa triste é este acontecimento ter apagado a vitória delas. Sobretudo pelas lutas que elas tentaram travar antes do Campeonato do Mundo. É triste. É mesmo muito triste, é lamentável. É lamentável que ao dia de hoje as jogadoras tenham de lutar pelo respeito. Acho que é transversal a todas as áreas. Todo este assunto dava conversa para uma tarde inteira. A mim custa-me, custava-me e custou-me durante o Mundial estas jogadoras não terem sido ouvidas. Porque não é de agora. Foi o beijo, mas há outras situações. Elas tiveram de ganhar um Mundial para conseguirem ser ouvidas. Não faz sentido.
E neste momento já estão a ser ouvidas? Tendo em conta que a certa altura a própria Real Federação Espanhola se virou contra elas…
Sim, sim. Agora não são só as jogadoras. Agora é uma conversa mundial, é uma luta mundial. Estamos todas com elas, todos com elas. Acredito que agora estejam a ser ouvidas. Mesmo assim, falta algo. É o que digo: é triste, mas espero que isto vá catalisar uma mudança não só para a Seleção espanhola, mas para todo o mundo.
A partir de agora vamos ter menos “Luis Rubiales”?
Sim, sem dúvida alguma. Mas ainda falta.
Uma última pergunta: o futebol mudou-a enquanto mulher?
O futebol ajudou-me a crescer muito enquanto mulher. Através do futebol consigo passar a minha mensagem enquanto mulher, enquanto jogadora de futebol e, espero um dia, também, enquanto mãe. É esse o meu objetivo, o meu propósito. É por isso que digo muitas vezes que não sou só uma jogadora de futebol. E aquilo que nós fazemos fora dele é tão importante como o que fazemos lá dentro. Obrigada, futebol. É mesmo um privilégio através do futebol conseguir passar a minha mensagem e espero continuar a passá-la para toda a gente ouvir e chegar a todas as gerações. Às miúdas e aos miúdos, porque ninguém faz o caminho sozinho.