Enquanto Donald Trump continua sem aceitar a derrota eleitoral anunciada no sábado, o Presidente-eleito dos EUA, Joe Biden, já começou a trabalhar — embora sozinho — na transição.
O período de cerca de dois meses entre a eleição de novembro e a tomada de posse em janeiro é habitualmente marcado por uma transição pacífica de poder entre o Presidente cessante e o Presidente-eleito. Há quatro anos, Barack Obama só precisou de um dia após a eleição para convidar o recém-eleito Donald Trump para uma reunião na Casa Branca, destinada a pôr o novo Presidente a par dos principais dossiês da governação norte-americana. A partir daquele dia, os elementos da equipa de transição nomeada por Donald Trump começaram de imediato a trabalhar em conjunto com a Casa Branca de modo a assegurar a passagem de testemunho em todo o tipo de aspetos — desde a estrutura de comando das Forças Armadas à remodelação da residência oficial.
Da mesma forma, Hillary Clinton, a candidata democrata que perdeu a Presidência para Trump, só precisou de algumas horas para reconhecer a derrota. Na manhã que se seguiu à longa madrugada eleitoral, Clinton apresentou-se na sede de campanha para admitir que tinha perdido a eleição e desejar sucesso ao novo Presidente.
Na memória dos americanos perduram hoje episódios de transições históricas — como a carta que George H. W. Bush deixou na secretária da Sala Oval para Bill Clinton ler quando lá chegasse pela primeira vez — e discursos de derrota célebres, como a intervenção de John McCain em 2008, quando perdeu para Barack Obama.
Este ano, ainda nada disto aconteceu.
Donald Trump continua convencido de que ganhou as eleições e de que foi vítima de uma fraude eleitoral, orquestrada através dos votos por correspondência, desenhada especialmente para o prejudicar. “Eu ganhei esta eleição, por muito!”, escreveu o ainda Presidente no Twitter, no dia em que a vitória de Joe Biden foi declarada. Devido à recusa de Donald Trump em reconhecer a derrota, o discurso de vitória de Joe Biden também quebrou com a tradição e não incluiu nenhuma referência ou saudação ao candidato derrotado (apenas muitas alusões a Trump nas entrelinhas).
De todo o lado, chegam apelos a Trump para que conceda a vitória a Biden. De dentro do Partido Republicano e da Casa Branca, mas também dos meios de comunicação social conservadores que Trump tanto elogiou durante a sua Presidência, por oposição à generalidade da imprensa. A Fox News, canal de televisão preferido do Presidente Trump, foi um dos primeiros meios a projetar a derrota. O New York Post, jornal que a poucos dias da eleição publicou uma notícia (cuja credibilidade foi posta em causa dentro da própria redação) que dava conta do alegado envolvimento de Joe Biden nos negócios obscuros do seu filho Hunter com a China e a Ucrânia, apelou este fim-de-semana no seu editorial para que Trump largue a “retórica da eleição roubada”, aceite a derrota e pense numa recandidatura em 2024. O ex-Presidente republicano George W. Bush também já saudou a vitória de Biden, num comunicado que está a ser interpretado como uma forma de pressão sobre muitos republicanos influentes para que também o façam.
Este domingo, o Centro para a Transição Presidencial, um comité bipartidário que sempre que há uma mudança de Presidente ajuda nos detalhes técnicos da transição, publicou uma carta a apelar à administração Trump “que comece imediatamente o processo de transição pós-eleitoral”. Na carta, os membros do comité pedem também a Biden que “tire partido total dos recursos que lhe estão disponíveis ao abrigo da Lei da Transição Presidencial”.
Sem um Presidente cessante disposto a cooperar, o período de transição afigura-se difícil para Joe Biden. O democrata está a seguir caminho, independentemente da recusa de Trump, mas já começou a tropeçar nos obstáculos burocráticos — incluindo uma funcionária nomeada por Trump que ainda não assinou um documento essencial para que a equipa de Biden possa formalmente começar a trabalhar.
De acordo com a carta do comité bipartidário, as tarefas que Biden tem pela frente não são fáceis — e dois meses passam num instante. “Para construir um governo eficaz e pronto a lidar com as necessidades urgentes do nosso grande país, o novo Presidente vai ter de recrutar 4 mil funcionários políticos, incluindo 1.250 que requerem confirmação do Senado; preparar um orçamento de 4,7 biliões de dólares; implementar uma agenda política forte, e assumir a liderança de uma força de trabalho que inclui 2 milhões de funcionários civis e 2 milhões de militares no ativo e na reserva”, lê-se na missiva.
A principal prioridade de Biden: a pandemia
Joe Biden espantou alguns quando na última quarta-feira, numa altura em que ainda não tinha assegurado os 270 votos no Colégio Eleitoral necessários para vencer a Presidência, lançou uma página de internet para a transição presidencial. No pequeno texto que surgia nessa versão inicial da página, Biden já esboçava as suas quatro prioridades para o início do mandato: a pandemia, a recessão económica, as alterações climáticas e a injustiça racial.
A equipa de Biden lançou-se ao trabalho logo no domingo, o seu primeiro dia como Presidente-eleito, divulgando uma versão mais detalhada das suas primeiras quatro prioridades.
Desde a campanha eleitoral, tornou-se claro que a pandemia da Covid-19 seria a principal preocupação de Biden caso fosse eleito. Durante meses, Biden criticou Donald Trump por ter optado por uma abordagem partidária à epidemia (acusando os estados governados por democratas de não quererem manter a economia aberta) e por ter desvalorizado de forma sistemática a gravidade da infeção. Uma das promessas que Biden mais repetiu foi a de ouvir os cientistas e seguir as suas indicações na gestão da resposta à pandemia — e alguns dos seus eventos de campanha consistiram até na participação em reuniões de especialistas para se inteirar da evolução da pandemia nos EUA. Biden usou a promessa de “ouvir a ciência” para se apresentar como o oposto de Trump, que por várias vezes criticou os cientistas durante a pandemia. Num momento bizarro na campanha, Donald Trump chegou mesmo a atacar Biden por ouvir os cientistas. “Ele vai ouvir os cientistas”, disse Trump, enquanto elencava uma série de ataques a Biden.
No discurso de vitória, Joe Biden anunciou a sua primeira medida durante o processo de transição: a nomeação de um comité de especialistas para o aconselhar na gestão da pandemia, liderado por três cientistas de prestígio.
Com mais de 9,9 milhões de casos de infeção e de mais de 237 mil mortes registadas, os Estados Unidos são o país do mundo mais afetado pela Covid-19 — e a pandemia continua a disseminar-se a um ritmo crescente no país. Joe Biden já divulgou um plano detalhado, que inclui a testagem gratuita e regular para todos os cidadãos, o investimento de 25 mil milhões de dólares na produção e distribuição de vacinas, o desenvolvimento de estratégias para prevenir e mitigar pandemias no futuro — e ainda a generalização do uso de máscaras na via pública em todo o país.
Em segundo lugar nas prioridades da administração Biden-Harris para o arranque do mandato surge a recuperação económica na sequência da pandemia. De acordo com o projeto divulgado pela equipa de transição, o futuro Presidente norte-americano quer implementar desde o início do mandato um plano que inclui a criação de uma bolsa de empregos públicos destinada a recrutar pessoas que tenham ficado sem emprego e possam colaborar nos esforços de combate à pandemia, mas também um pacote de apoio financeiro ao pequeno comércio, aos desempregados e às autarquias locais.
Biden pretende também criar uma comissão nacional para supervisionar as polícias, de acordo com o seu plano para reduzir a injustiça racial nos EUA. A medida surge após um ano em que o homicídio do afro-americano George Floyd às mãos de um agente da polícia em Minneapolis fez estalar uma onda de protestos contra o racismo e a violência policial contra os negros no país.
A propósito das alterações climáticas, o quarto item na lista das prioridades para o início do mandato, Biden reitera a intenção de voltar a colocar os EUA no Acordo de Paris, depois de Donald Trump ter retirado o país do acordo internacional que estabeleceu metas globais para a redução das emissões de dióxido de carbono nas próximas décadas (saída que se formalizou na semana passada). Mas Biden diz que quer ir mais além do que simplesmente reverter a decisão de Trump e promete avanços nas infraestruturas, nos transportes, na energia e na indústria automóvel — onde pretende criar 1 milhão de empregos associados aos veículos elétricos.
Transição à espera de uma assinatura
Joe Biden bem está a tentar levar a cabo uma transição dentro da normalidade possível, com a definição de prioridades políticas e a preparação dos primeiros dias na Casa Branca. Porém, a falta de cooperação da administração Trump — materializada, em alguns casos, na simples inércia — está a atrasar os esforços da equipa de Biden.
De acordo com a imprensa norte-americana, um grupo de conselheiros de Biden tem-se multiplicado, nos últimos meses, em reuniões informais com elementos de topo da Casa Branca no sentido de preparar terreno para uma transição. Em cima da mesa estiveram, sobretudo, listas de nomes para ocuparem cargos fundamentais nos vários órgãos de governo. Joe Biden não esteve presente nesses encontros.
Agora, no momento em que esses esforços informais deviam ganhar contornos formais (até porque as equipas de transição estão previstas na lei norte-americana e são financiadas com dinheiro público), a administração Trump está a bloquear o processo.
Segundo uma notícia publicada esta segunda-feira pelo The Washington Post, a administradora da Administração dos Serviços Gerais (GSA) dos EUA — uma agência federal responsável pelos edifícios do governo federal — ainda não assinou uma carta que é indispensável para que a equipa de transição de Biden possa começar a trabalhar formalmente.
Emily Murphy, que foi nomeada para a liderança da GSA por Donald Trump, ocupa um lugar habitualmente discreto na política norte-americana. Sempre que há uma mudança de Presidente, é o líder daquela agência federal que tem de autorizar formalmente o acesso da equipa de transição do Presidente-eleito a fundos públicos, edifícios governamentais, equipamentos federais e até a escritórios onde possa trabalhar. Num país em que o vencedor da eleição só é formalmente declarado depois da reunião do Colégio Eleitoral, que este ano ocorre a 14 de dezembro, são habitualmente os meios de comunicação social quem primeiro anuncia o próximo Presidente. Depois, há o hábito de o candidato derrotado conceder a vitória num discurso público. Mas a assinatura deste documento pelo responsável da GSA é a primeira declaração formal de reconhecimento do vencedor da eleição por parte das autoridades públicas.
Em linha com a recusa de Trump em aceitar o resultado da eleição, Emily Murphy ainda não assinou esta carta — que permitiria à equipa de Biden começar já esta segunda-feira a trabalhar nos espaços do governo federal, ter acesso a sistemas informáticos e a e-mails oficiais e receber salários. Por outro lado, esta autorização da GSA é indispensável para que a equipa de Biden comece a trabalhar junto da OGE (Office of Government Ethics), a agência federal responsável por assegurar a divulgação dos conflitos de interesse e dos registos financeiros dos potenciais nomeados de Biden para cargos governamentais.
Sem a assinatura de Murphy, nada disto está a ser feito.
De acordo com o The Washington Post, uma porta-voz daquela agência disse que “ainda não foi feita uma averiguação” aos resultados da eleição, pelo que a administradora “continuará a cumprir todos os requisitos da lei”.
“A ação dela tem de ser condenada. É um comportamento que é consistente com a subserviência dela aos desejos do próprio Presidente e é claramente prejudicial à transição ordeira do poder”, disse ao mesmo jornal o congressista democrata Gerald Connolly, que preside a uma comissão parlamentar de supervisão dos procedimentos do governo federal.
Agitar as águas no primeiro dia em funções
“Vai ser uma transição muito difícil e estamos preparados para ela”, disse recentemente um conselheiro de Joe Biden ao The Washington Post.
Neste momento, todas as agências federais do governo norte-americano têm planos de transição prontos a colocar em prática — mas ficam na gaveta enquanto o vencedor não for formalmente declarado, o que poderá deixar a equipa de Biden com uma janela temporal muito curta para preparar os primeiros dias na Casa Branca. De acordo com fontes citadas por vários jornais norte-americanos, a opção mais provável neste momento parece ser uma eventual aceitação da derrota por parte de Trump. Todavia, o atual Presidente não deverá fazer um discurso de saudação a Biden nem alinhar nos habituais encontros de cortesia na Casa Branca.
Depois de um domingo em família, que incluiu uma ida à missa e uma visita ao cemitério onde está enterrado o filho Beau, a manhã desta segunda-feira, o primeiro dia útil de Biden como Presidente-eleito, foi passada numa reunião com o seu novo comité de especialistas a debater a Covid-19 — reforçando a ideia de que a resposta à pandemia baseada na ciência estará no centro dos primeiros tempos de governação de Joe Biden.
Biden já deixou claro que pretende adotar uma abordagem radicalmente oposta à de Trump na governação. Segundo fontes da equipa de Biden citadas este fim de semana pelo The Washington Post, o futuro Presidente dos EUA pretende agitar as águas no primeiro dia em funções, assinando uma série de ordens executivas destinadas a reverter num curto espaço de tempo várias decisões de Trump: regressar ao Acordo de Paris, regressar à Organização Mundial da Saúde, anular o “travel ban” que Trump impôs a países de maioria muçulmana e reativar o programa DACA (que impede a deportação de crianças que tenham sido levadas ilegalmente para os EUA pela família). Os dois meses entre a eleição e a tomada de posse serão essenciais na preparação desses documentos.
Grande parte do trabalho das próximas semanas vai girar em torno das nomeações para uma série de cargos políticos, de modo a que os próximos ocupantes desses cargos tenham tempo para se reunir com os atuais incumbentes e tratar da passagem do testemunho. Os primeiros nomeados deverão ser conhecidos já durante esta semana, escreve o The New York Times, salientando que um dos nomes mais consensuais é o de Ron Klain para o lugar de chefe de gabinete. Klain foi chefe de gabinete de Biden durante a administração de Barack Obama e é apontado como o mais que provável novo chefe de gabinete da Casa Branca a partir de janeiro.
Ainda sem acesso aos edifícios e aos fundos governamentais, a equipa de transição de Biden deverá continuar a multiplicar-se em esforços informais. Durante os próximos dias, Joe Biden vai ocupar-se de reuniões com vários conselheiros políticos para fechar a lista de nomeações. Depois dos primeiros anúncios (que dirão respeito à Casa Branca), Biden deverá revelar os nomeados para os cargos do governo. Segundo o The New York Times, que cita uma fonte próxima da equipa de transição de Biden, o anúncio dos membros do governo só deverá ocorrer no final de novembro, a partir do Dia da Ação de Graças (26 de novembro).
O que é certo é que desde há duas semanas que já decorrem, no exterior do Capitólio, em Washington, os trabalhos de instalação do palco onde o próximo Presidente vai tomar posse no dia 20 de janeiro — a data é sempre a mesma, definida pela Constituição. Em declarações à estação televisiva ABC este domingo, o senador republicano Roy Blunt, que é o responsável pelo comité bipartidário que organiza a cerimónia, optou por não agitar os ânimos dentro do seu próprio partido e não declarou assertivamente que seria Biden a tomar posse, mas sublinhou a importância de uma transição pacífica.
“Este é um grande momento para mostrarmos como funciona uma verdadeira democracia. Estou confiante que é isso que vamos ver”, afirmou Blunt. “Espero ver tanto o vice-Presidente Biden como o Presidente Trump no palco no Dia Inaugural e isso será uma mensagem poderosa, independentemente de qual deles tome posse.”