“Boicote aos jogos do genocídio”, lê-se num cartaz. “O COI (Comité Olímpico Internacional) falha em direitos humanos”, está escrito no outro. Ambos são segurados por estudantes tibetanos que, em dezembro, se algemaram aos gigantes anéis olímpicos, à porta da sede do Comité Olímpico Internacional, na Suíça.
Este é só um exemplo de entre os vários protestos contra os Jogos Olímpicos de Inverno, marcados para 4-20 de fevereiro de 2022, em Pequim.
Os protestos contra Jogos Olímpicos são comuns, mas o grupo daqueles que querem cancelar ‘Pequim 2022’ vai ter um apoio de peso: além dos Estados Unidos, seis outros países já se comprometeram a aderir a um boicote diplomático. A iniciativa partiu de Washington, que promete não enviar qualquer representante, como forma de protesto contra abusos de direitos humanos na China, nomeadamente “genocídio e crimes contra a humanidade” em Xinjiang.
Explicador em vídeo. O que acontece dentro dos campos chineses de “reeducação” de Uigures?
A Casa Branca disse não querer contribuir para a pompa do evento. “Uma representação diplomática ou oficial dos Estados Unidos estaria a tratar estes jogos como algo normal, perante os flagrantes abusos e atrocidades dos direitos humanos na RPC [República Popular da China] em Xinjiang. Simplesmente não podemos fazer isso”, disse a porta-voz, Jen Psaki.
Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Bélgica e Lituânia também já anunciaram que vão aderir ao boicote, que a China considera ser “baseado em mentiras e rumores”, além de violar a “neutralidade política do desporto”. “Contra-medidas resolutas” foram prometidas, mas ainda não foram concretizadas.
Boicote a meio gás
Que impacto pode ter este boicote? A resposta é morna: espera-se um efeito político, de imagem, mas sem grande reflexo no terreno, já que todos os países se comprometeram a enviar atletas.
“Ninguém liga a televisão nos Jogos Olímpicos para ver os representantes na cerimónia de abertura, mas este tipo de ações importa. Acho que se passa uma mensagem ao não enviar representantes dos Estados Unidos. É uma maneira de enviar a mensagem, mas não uma maneira plena de enviar a mensagem”, diz ao Observador Amy Bass, professora de Estudos Desportivos na Manhattanville College, em Nova Iorque.
Jung Woo Lee, especialista em Políticas do Desporto na Universidade de Edimburgo, diz que a ausência de representantes oficiais destes países “não é um momento desastroso”, porque já se espera que a pandemia cause uma redução no número de convidados, mas ainda assim acredita que vai doer a Pequim.
“Há uma estigmatização que limita os esforços da China em elevar o seu estatuto internacional. Um boicote diplomático não tem precedentes. Ainda que o gesto político não afete a organização e realização dos Jogos Olímpicos na China, o boicote diplomático pode gerar controvérsia, até porque envolve as duas maiores forças políticas mundiais do momento: os Estados Unidos e a China”, explica ao Observador.
Em 2014, Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, a mulher, Michelle Obama, e o então vice-presidente, Joe Biden, não compareceram nos Jogos de Inverno em Sochi, na Rússia, mas outros representantes foram enviados. Na altura, não foi considerado um boicote oficial, mas um gesto individual, sem que Obama tenha formalmente feito críticas ao regime de Vladimir Putin.
Jules Boykoff, especialista em Política do Desporto, na Pacific University, em Oregon, Estados Unidos, admite que este boicote é uma “meia medida”, mas diz que pode ser bem sucedido no objetivo de “impedir que [a China] use um mega-evento desportivo para limpar a sua imagem, manchada no palco mundial”. “Ao não enviarmos diplomatas, quer dizer que não vamos ter aquele tipo de fotos [com dignitários] que tendem a legitimar a cidade e o país organizador e, por associação, os seus sistemas políticos e políticas”, diz o americano.
Peng Shuai, a gota de água
São as violações de direitos humanos na China que motivam, oficialmente, o boicote liderado pelos Estados Unidos, mas a verdade é que a difícil situação dos uigures já é conhecida, pelo menos, desde 2019. A decisão do Presidente Biden parece ter sido precipitada por um acontecimento concreto: o desaparecimento de Peng Shuai.
A tenista de 35 anos acusou um ex-vice-primeiro-ministro de abuso sexual através de uma publicação na Internet. O ‘post’ foi apagado, o nome da tenista foi censurado e Peng desapareceu durante três semanas, até reaparecer em contextos sempre mediados por fontes ligadas ao governo chinês.
Amy Bass diz que este caso veio “dar uma cara à situação” dramática na China. “Peng Shuai é membro da comunidade olímpica, número um mundial na variante de pares, uma das maiores estrelas desportivas da China. É uma cara que tem um contexto, que é muito familiar nos Estados Unidos, porque faz parte deste movimento contínuo do #MeToo”, explica.
O caso da tenista Peng Shuai não é o único. #MeToo na China: um movimento de pernas cortadas
Para a especialista em Estudos Desportivos, este acabou por ser um momento de tomada de consciência nos Estados Unidos, além da elite política. “Quando contextualizamos isto, juntamente com o caso da equipa feminina de ginástica americana, que testemunhou recentemente junto da comissão judiciária do Senado sobre a falta de ação por parte do FBI, e o caso de Larry Nasser, acho [que o caso Peng Shuai] atingiu um ponto nevrálgico, de uma forma muito americana. É assim que os americanos costumam funcionar, tem de fazer sentido neste contexto”, diz Bass ao Observador.
Stuart Murray, especialista em Diplomacia e Políticas do Desporto, na Universidade de Bond, na Austrália, diz que o caso da tenista foi “a gota de água” e continua a ser “uma história bizarra aos nossos olhos, olhos ocidentais”. “A situação em Xinjiang, o crescente nacionalismo da China, [a situação em] Hong Kong, Taiwan, e muitas outras questões, como o enorme e crescente orçamento militar, são as verdadeiras histórias que importam. Mas Peng permitiu que o Ocidente e a China revelassem os seus valores. Nós valorizamos a opinião dos atletas, a liberdade e a objetividade através de árbitros e instituições desportivas independentes. Eles valorizam o coletivismo e acham que, como representante do Estado, Peng deve calar-se, jogar ténis e ganhar o maior número de torneios possíveis para a mãe pátria”, diz o australiano, em entrevista ao Observador.
A juntar-se à indignação popular que este caso gerou, surge também a ousada decisão da Associação de Ténis Feminino (WTA, Women’s Tennis Association) de suspender os torneios na China, por falta de investigação, e até repressão, ao caso Peng Shuai.
WTA suspende torneios na China na sequência do caso da tenista Peng Shuai
“A WTA disse: ‘Não podemos permitir que isto aconteça a mulheres atletas, temos de as ouvir, e por isso nós vamos exercer o único tipo de pressão que podemos para fazer isto acontecer, e essa pressão é económica’. É nesse momento que vemos a administração Biden a tomar uma posição diplomática”, aponta Amy Bass.
À conquista do pódio geopolítico
A decisão da Administração Biden é resultado de um conjunto de fatores — culturais, sociais, de política interna e também externa. Após quatro anos de Donald Trump, “que não deu boa imagem aos Estados Unidos em termos diplomáticos, e foi particularmente agressivo na forma como falou da China“, a Administração está “numa situação difícil, porque tem de adotar uma posição moral e, ao mesmo tempo, ser eficaz em áreas como o mercado global, questões de direitos humanos, a pensar sobre Taiwan, etc”.
“É uma posição muito difícil, e este boicote diplomático a Pequim foi uma opção para evidenciar todas estas diferentes tensões, e de dizer: ‘Os Estados Unidos estão a prestar atenção a isto’”, interpreta Amy Bass.
Jung Woo Lee acredita que a questão dos Direitos Humanos é, de facto, o principal motivo por detrás deste boicote. Mas admite que “a política externa chinesa se tornou, recentemente, mais ambiciosa e mostra características expansionistas“. “Isto, claramente, desafia a hegemonia americana na atual ordem internacional. Nos anos 2020, travar a ascensão da China tornou-se um interesse estratégico dos Estados Unidos. O boicote diplomático de Pequim 2022 deve ser entendido nesse contexto”, explica o investigador da Universidade de Edimburgo.
Este esforço dos Estados Unidos em travar a ascensão da China tem tido reflexo na população, que apoia, na maioria, o boicote aos Jogos de Inverno. Um estudo do Pew Research Center, divulgado em março de 2021, revela que 67% dos americanos têm sentimentos negativos em relação à China, um número muito superior aos 46% registados em 2018.
“Aqui, nos Estados Unidos, é extremamente comum membros dos dois partidos, Democrata e Republicano, dizerem todo o tipo de coisas negativas sobre a China, e tratarem (a China) como um inimigo, ao invés de um adversário político. Acho que os Jogos Olímpicos fazem parte de uma batalha maior sobre o que vai acontecer na relação com a China”, comenta Jules Boykoff.
Seis dentro, Portugal fora
Neste momento, os países que aderiram ao boicote são, na maioria, nações anglófonas, da Commonwealth, alinhadas com os interesses norte-americanos. Há também países indecisos, como o Japão, que anunciou que não vai enviar qualquer representante, mas não quis usar o termo ‘boicote’. E ainda há aqueles que recusam liminarmente juntar-se a essa tomada de posição.
O Presidente francês, Emmanuel Macron, afastou totalmente a hipótese de adesão a um boicote, por considerar a ação “insignificante” e meramente “simbólica”. O russo Vladimir Putin disse ser um gesto “inaceitável e errado”, e uma “tentativa de limitar o desenvolvimento da China”.
Portugal também fica de fora. O ministro dos Negócios Estrangeiros diz que “a questão não se põe”.
“A tradição portuguesa é a tradição de distinguir com clareza o que são questões desportivas e o que são questões políticas. Julgo que essa tradição irá manter-se, independentemente do resultado das próximas eleições. A nossa força desportiva não está propriamente nos desportos de inverno; as delegações portuguesas aos Jogos Olímpicos de Inverno não costumam ser numerosas; e não temos o hábito de fazê-las acompanhar por representações políticas ou diplomáticas de alto nível. Portanto, verdadeiramente, para nós, a questão não se põe”, declarou Augusto Santos Silva ainda em dezembro.
Stuart Murray encontra neste posicionamento dos diferentes países ecos da Guerra Fria. “Putin teve grande prazer em anunciar que ele e uma delegação russa completa vão comparecer. É como nos primeiros tempos da Guerra Fria, em que os Estados escolhiam Vermelho (União Soviética), Azul (democracias liberais ocidentais), ou Cinzento (o Movimento dos Não Alinhados, liderado pela Índia)”, diz o australiano.
Para Jules Boykoff, uma coisa é certa: “Este boicote diplomático é o prego no caixão do mito ridículo de que os Jogos Olímpicos não são políticos”.
Na mão dos atletas
O impacto deste “meio boicote” pode ser significativamente aumentado por uma ação, no terreno, dos atletas. Foi isso que aconteceu ao longo da história, e os analistas acreditam que pode voltar a acontecer.
“A pergunta que um atleta tem de fazer a si próprio é se marca mais uma posição não indo [aos Jogos Olímpicos] ou indo e criando algum tipo de situação lá, quando os holofotes estão apontados para ele. Regra geral, os atletas costumam escolher a segunda opção. Vimos isso em 1968: houve um potencial boicote de atletas negros dos Jogos Olímpicos na Cidade do México, o grupo acabou por decidir não boicotar, foi, ganhou e depois fez uma ‘Black Power Action’, que se tornou das imagens mais indeléveis na história do desporto. São essas coisas que os atletas têm de pesar: qual é seu papel individual num movimento maior. Temos visto vários atletas tomar esse tipo de decisões, com o movimento #MeToo, com diferentes campanhas políticas americanas e com o Black Lives Matter”, comenta Amy Bass.
O assunto não tem, de facto, passado ao lado dos atletas olímpicos — pelo menos, dos atletas americanos. Evan Bates, patinador artístico que compete na modalidade de dança no gelo, afirmou em outubro: “Falando em nome de todos os atletas, posso dizer que as violações de Direitos Humanos são abissais, e todos acreditamos que destroem o tecido da humanidade. A minha resposta pode ser aplicável aos Direitos Humanos em geral, mas, se me perguntam sobre o que se passa na China em relação aos muçulmanos, é terrível, é horrível.”
Jules Boykoff explica que há dois tipos de atletas que mais facilmente participam em ações de protesto: os que estão a chegar ao fim da carreira, com mais de 30 anos, e os que são financeiramente independentes. A Liga Nacional Hóquei americana (NHL, na sigla em inglês) estaria na posição ideal, mas já anunciou que não pretende deslocar-se a Pequim devido à pandemia.
“Os esquiadores são outra possibilidade. Mikaela Shiffrin tem falado sobre Direitos Humanos na China e disse que o Comité Olímpico Internacional colocou os atletas numa posição difícil, ao atribuir os Jogos Olímpicos à China. As pessoas que têm um historial de falarem sobre isto podem fazer alguma coisa em Pequim”, opina o professor da Pacific University.
A medalhada, que esta semana foi confirmada como um caso de Covid-19, disse à CNN que o COI devia “ter em consideração” questões como os Direitos Humanos ao escolher os organizadores dos Jogos Olímpicos, um evento “que é suposto unir o mundo e gerar esperança e paz”. “Há sítios que parecem mais adequados que outros”, comentou.
“Não queres ser colocado numa posição em que tens de escolher entre Direitos Humanos, entre a moralidade e a capacidade de fazeres o teu trabalho. Por um lado, pode trazer atenção sobre alguns assuntos, ou pode mesmo trazer esperança ao mundo, num momento muito difícil”, disse Shiffrin.
Stuart Murray acredita que vamos assistir a algum tipo de ação de atletas, mas ressalva que isso depende “do que o chefe de missão lhes disser, o que depende do que o Comité Olímpico lhes disser, e o primeiro-ministro”.
O Comité Olímpico Internacional proíbe declarações políticas durante as competições e, em particular na China, “isso pode ser complicado”. Mas Murray sublinha a relevância atual do “ativismo de atletas”. “Muitos atletas usam a plataforma [dos Jogos Olímpicos] para aquilo a que chamamos ‘gestos silenciosos’ — um punho erguido, um jogador ajoelhado. Em Sochi2014, num protesto contra a postura draconiana anti-LGBT de Putin, muitos atletas usaram atacadores, malas ou símbolos com as cores do arco-íris. Os Estados Unidos puseram Billie Jean King, Caitlin Cahow e Brian Bonito como porta-estandarte; todos são atletas abertamente homossexuais”, recorda o investigador australiano.
O amigo da China
Ainda que países de peso tenham afirmado a adesão ao boicote, uma instituição supranacional foi firme a opor-se: o Comité Olímpico Internacional. O presidente, Thomas Bach, foi claro ao dizer que o boicote prejudicaria a imagem e finanças do COI, sublinhado que o organismo deve manter-se longe da política.
Amy Bass diz que, mais do que qualquer tomada de posição diplomática que os países possam tomar, é o COI que tem maior capacidade de fazer a diferença — neste e em qualquer outro evento olímpico.
A especialista em Estudos Desportivos diz que basta olhar para a história: “Por vezes, usam esse poder. Quando afastaram a África do Sul das competições olímpicas, em 1968, por causa do ‘apartheid’, por exemplo. Fizeram o mesmo com o Afeganistão, durante a primeira governação dos talibãs. Nestes casos, afastar países de participação nos Olímpicos pode enviar uma forte mensagem. Mas claro que não vão afastar a China. O COI apoiou a China e deu à China a possibilidade de organizar os Jogos pela segunda vez, em poucos anos. Acho que as grandes mudanças podem ser feitas pelo COI, mas o COI pode ser uma organização confusa neste tipo de questões”.
O Comité Olímpico Internacional tem sido criticado pela proximidade à China, inclusive no caso de Peng Shuai. O presidente do Comité organizou duas vídeo-chamadas com a tenista chinesa, das quais só foram divulgadas fotografias, emitindo depois um comunicado em que garantiam que Peng estava bem, apesar das preocupações manifestadas pela comunidade internacional.
“No caso de Peng Shuai, o papel do COI foi vergonhoso. Minimizaram o perigo que Peng Shuai corria e ainda corre, e minimizaram a gravidade das acusações de abuso sexual que ela fez. Foi muito óbvio que o COI só queria que os Jogos Olímpicos avançassem”, comenta Jules Boykoff.
O especialista em Políticas do Desporto acredita que o COI sai beneficiado da controvérsia em torno do boicote, porque acabou por desviar as atenções desta polémica.
“[O COI e China] têm uma relação de longa data, que remonta ao antigo presidente do COI, Juan Antonio Samaranch, um franquista até à morte. Ele é que criou ligações fortes entre a China e o movimento olímpico, considerava um mercado desportivo em crescimento. É por isso que se vê tão poucos grupos desportivos a criticarem a China, por causa do dinheiro que passa pela China. Por causa do poder económico, não estamos a ver tantas críticas como vimos nos Jogos Olímpicos de 2008. [Mas] Sabiam muito bem, ao atribuir os Jogos Olímpicos [de Inverno] à China, em 2015, que era um país violador de Direitos Humanos”, diz Boykoff.
Avalanche Ómicron
Ainda que, em círculos políticos, o boicote diplomático esteja a dar que falar, o tema tem estado, regra geral, em segundo plano devido ao aumento exponencial de casos de Covid-19 no mundo, motivado pela nova variante Ómicron. “Acho que a conversa mais proeminente sobre [os Jogos Olímpicos de] Pequim agora é se devem acontecer de um ponto de vista de saúde pública”, comenta Amy Bass.
A China é um dos países com medidas mais restritivas, no que diz respeito à pandemia. Já isolou milhões de residentes, em confinamentos de larga escala, e tem das maiores quarentenas obrigatórias do mundo, que podem chegar aos 28 dias consecutivos.
No caso dos Jogos Olímpicos, Pequim avançou com um plano para manter o evento em circuito fechado. O jornal The New York Times chama-lhe “o evento desportivo de larga escala mais extraordinariamente restrito”.
Atletas, treinadores, árbitros, representantes oficiais, jornalistas — vacinados, obrigatoriamente — vão ter de comer, dormir, trabalhar e competir sem sair da aldeia olímpica. Esta é a condição imposta pelas autoridades para levantarem a habitual quarentena de duas semanas, normalmente seguida de mais uma semana de isolamento domiciliário.
Os espectadores, que por esta altura estão limitados aos residentes da China, vão poder bater palmas, mas não poderão gritar para apoiar os seus atletas. Empregados de mesa, pessoal de limpeza e outros funcionários não vão poder abandonar o local — nem para visitar a família. Os atletas que se desloquem a outras zonas da China vão ter de passar pelo menos uma semana em quarentena, num local designado, seguida de duas semanas de isolamento em casa. Testes PCR vão ser feitos diariamente.
Jogos de Inverno? Isso importa?
Para muitos países, os Jogos Olímpicos de Inverno são um evento de menor importância. Predominam desportos no gelo, que nem todos praticam, e Jung Woo Lee acredita ser uma competição com um “valor cultural distinto”.
“É uma competição desportiva mais exclusiva, onde a hegemonia desportiva e cultural Ocidental prevalece, ao contrário dos Jogos Olímpicos de Verão, que exibem uma natureza mais cosmopolita e multicultural”, explica o autor do estudo “Jogos Olímpicos de Inverno em Cidades Não-Ocidentais: Estado, Desporto e Diplomacia Cultural em Sochi 2014, PyeongChang 2018 e Beijing 2022″.
Segundo Lee, os Jogos de Inverno apresentam-se como uma oportunidade para os países não-ocidentais “entrarem no clube de nações influentes ou desafiarem a ordem interna estabelecida”.
Enquanto os Jogos de Verão permitem ao organizador exibir o seu desenvolvimento económico ao mundo, os de Inverno “podem ser o momento em que um organizador não-ocidental revela o seu desejo de ser reconhecido como uma nação líder ou influente, cultural e politicamente. Esta lógica aplica-se ao caso da China”, diz o investigador da Universidade de Edimburgo.
Dez cidades já acolheram mais que uma vez os Jogos Olímpicos, mas Pequim vai tornar-se a primeira cidade no mundo a organizar os Jogos de Verão e de Inverno, e vai fazê-lo com um intervalo curto de tempo, apenas 14 anos.
Em 2008, a organização dos Jogos de Verão assumiu uma importância monumental para a China, e o país não desiludiu: além de conquistar várias medalhas, presenteou o mundo com uma espetacular cerimónia de abertura, realizada no Ninho de Pássaro (鳥巢), um estádio desenhado pelos arquitetos Jacques Herzog e Pierre de Meuron, com o apoio do agora artista dissidente Ai Weiwei.
A China de 2008, bem se vê, é muito diferente de China de 2022. “2008 foi a ‘festa de apresentação’ da China, em que quiseram mostrar ao mundo que eram um país moderno, próspero e poderoso. E certamente que conseguiram. 1,1 mil milhões de pessoas assistiram à cerimónia de abertura e ficaram atónitas (…) Estes jogos vão ser diferentes, acho que vamos ver nacionalismo em esteróides, muita propaganda chinesa, e uma enorme dose de orgulho nacional em relação ao Partido [Comunista da China], ao torneio e aos atletas chineses (…) Mao fez a China erguer-se, Deng Xiaoping fez a China rica, Xi [Jinping] considera que o seu trabalho é fazer a China forte. Os Jogos vão refletir e projetar um imagem muito forte da China“, considera Stuart Murray.
Boicotes na história
Se tudo correr como prometido, este será o primeiro boicote diplomático aos Jogos Olímpicos, mas muitos outros, plenos, envolvendo atletas, aconteceram no passado. Aliás, da última vez que os Estados Unidos boicotaram uns Jogos Olímpicos, a China também participou, juntamente com mais de 60 nações: foi em 1980, quando Moscovo acolheu os Jogos, e se protestava contra a invasão soviética do Afeganistão.
A China chegou mesmo a enviar 18 atletas ao Liberty Bell Classic, um evento internacional de atletismo em Philadelphia, que surgiu como alternativa aos Jogos em Moscovo. No evento seguinte, em 1984, União Soviética e aliados boicotaram os Jogos em Los Angeles.
Estes foram os boicotes com maior dimensão, mas as tentativas de bloquear os Jogos Olímpicos contam com mais de 2.000 anos de história.
“Os primeiros boicotes dos Olímpicos aconteceram em 420 A.C. (Antes de Cristo), quando Atenas exclui Esparta de participar [Esparta foi acusada de violar um tratado de paz durante a Guerra do Peloponeso]. Houve muitos boicotes ao longo do século XX, alguns relacionados com a Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Os boicotes da China aos Jogos são interessantes: boicotaram o Japão em 1964, e vários outros entre 1950 e 1980. Isto aconteceu porque o COI e vários países reconheceram Taiwan como a verdadeira China. Mas foram boicotes muito pequenos, quando comparados com os de 1980 e 1984″, conta Stuart Murray ao Observador.
Outro boicote de maior dimensão aconteceu em 1976, quando cerca de 30 nações africanas falharam os Jogos em Montreal, como forma de exigir que a Nova Zelândia fosse excluída, depois de a equipa de râguebi ter visitado a África do Sul, em pleno ‘apartheid’.
Surpreendentemente, não houve nenhum boicote ao Jogos na Alemanha nazi, apesar de Berlim ter acolhido o evento em 1936. Alguns dirigentes desportivos e políticos, incluindo o então presidente da câmara de Nova Iorque, apelaram a que tal acontecesse, mas o eterno argumento de que desporto e política não se devem misturar acabou por vencer. O debate dura até hoje.