Quando era miúdo, John Freeman enviava poemas às raparigas de que gostava. Quando cresceu, deixou-se disso, mas continuou a escrever poesia. Até que, por volta dos 19 anos, pousou a caneta e nunca mais compôs uma linha. A carreira que podia ter tido como poeta tornou-se, por volta dessa altura, na de crítico literário, um trabalho que lhe ocupou mais de dez anos de vida até ter sido convidado para ser editor da Granta, a prestigiada e importante revista literária publicada no Reino Unido. Ocupou o cargo de 2009 a 2013, quando decidiu sair pelo seu próprio pé por considerar que, se continuasse à frente da publicação, se tornaria no “tipo mais pretensioso de sempre”.
Talvez John Freeman, nascido em Cleveland em 1974, tenha pensado que não voltaria a editar o que quer que fosse, mas passados dois anos anunciou o lançamento da sua própria revista literária — a Freeman’s, cujo o último número acaba de ser publicado. Sentia falta de trabalhar numa revista literária, de trabalhar diretamente com os escritores, mas também porque achava que era seu dever apresentar aos leitores aquilo que é difícil encontrar noutros lugares — literatura escrita em diferentes línguas, por diferentes nacionalidades e em diferentes lugares. “É um bocado empolgante quando tiramos a uma revista essas fronteiras nacionais. Enquanto editor, podemos juntar coisas que tipicamente não aparecem juntas. A partir dessas justaposições, é possível criar algo novo”, admitiu em entrevista ao Observador, a propósito do lançamento de Mapas.
Mapas é o regresso à poesia de um homem que passou anos e anos sem escrever um verso, e que passou grande parte da vida a escrever sobre o trabalho dos outros. É um livro que nasceu quase por necessidade, em reação à doença prolongada da mãe (que tinha Alzheimer e Parkinson) que o obrigou a fazer o luto antes do tempo. Foi nessa altura que nasceram os primeiros poemas, que começaram a surgir depois da morte da mãe, quando “começou o verdadeiro luto”. Uma viagem por diferentes lugares, marcados pelo medo “constante” do nosso tempo, Mapas é também uma cartografia interior da ausência de alguém muito querido. “Escrevo para a minha mãe”, admitiu Freeman, que esteve esta semana em Lisboa. “Em parte para a recordar mas também para falar com ela, porque a pessoa que ela era já não está aqui. Tenho de, até certo ponto, criar a pessoa com quem quero falar.”
[Poema “Saudade”, lido por John Freeman para o Observador:]
Estes poemas falam de muitos lugares diferentes cidades, países. Foi por isso que decidiu chamar a este livro Mapas?
Sim, mas também porque acho que vivemos num mundo estranho. Há muita coisa no universo que conhecemos, que podemos ver no Google Maps. Podemos encontrar informação muito depressa. Se quisermos saber o que é que um aligátor come, basta procurar [na Internet] e temos uma resposta em menos de um segundo. Contudo, há partes muito misteriosas dentro de nós, que levamos connosco para sítios reais. Quando vamos a algum lugar que não conhecemos, mesmo que seja à outra ponta da cidade, levamos essas coisas misteriosas connosco. Quer seja a memória de alguém que já cá não está, as ideias que temos acerca dos lugares a onde vamos ou sobre a pessoa com quem estamos prestes a falar. Sinto que, na vida, estamos sempre a fazer estas curtas viagens imaginárias, e queria — ou escrevi, suponho — poemas sobre essa viagem imaginária, sobre partir do que é misterioso para o que é quase conhecido.
Este livro é uma espécie de viagem, mas não é apenas uma viagem pelo mundo exterior. Nestes poemas, fala muito sobre si.
É difícil para mim separar as duas coisas. Há muito, muito tempo, os cartógrafos desenhavam mapas baseados não naquilo que viam, mas naquilo que achavam que estava lá. Agora temos satélites e podemos tirar fotografias de alta-definição aos lugares, mas não temos muita tecnologia para perceber o que está dentro de nós. Interroguei-me sobre o que é que aconteceria se os cartógrafos que faziam aqueles belíssimos mapas antigos em pergaminho conseguissem descobrir uma maneira de desenhar neles a sua própria subjetividade. Em que é que estavam a pensar, o que é que os preocupava, de quem é que tinham saudades. Os cartógrafos estavam muitas vezes longe de casa, e sempre achei que os seus diários — é possível ler alguns — tornavam os seus mapas mais humanos. Acho que todos fazemos mapas como estes. Nem sempre inscrevemos aquilo que está dentro de nós nos lugares a que vamos. A maneira simplista com que o fazemos é tirando uma selfie. Ver a minha cara em Lisboa não é assim tão interessante. Acho que não seria muito interessante ter pessoas a seguir-me no Instagram… O que é interessante é a viagem interior, entre o lugar e a pessoa por dentro.
Também fala muito sobre o nosso tempo — sobre a violência, a guerra, a morte. Sei que escreveu um dos poemas, “Coins”, no dia do ataque ao Charlie Hebdo. Há um outro chamado “Beirut”.
Vivemos num período em que o medo é algo constante. Para uma pequena porção de nós, o mundo é relativamente seguro, luxuoso. Podemos confiar na água que bebemos aqui, está sol e as crianças que vimos lá fora no parque não vão ter o seu dia interrompido. Não é assim para uma grande parte do mundo. É desconcertante sentarmo-nos num lugar como aquele em que estamos agora e ler sobre essa outra vida. Isso entra nas nossas mentes através das notícias. Parte do que faço quando viajo, é tentar quebrar um bocadinho essa barreira para que haja menos um “aqui” e um “ali”, porque essa divisão entre “aqui” e “ali” é, na minha opinião, muitas vezes usada para tomar decisões que são frequentemente destrutivas ou depreciativas para com os lugares que são rotulados como pertencendo “ali”.
É por se frisar essa diferença entre “aqui” e “ali” que existe tanto ódio? Porque não é possível criar empatia com o que pertence a outro lugar?
Até certo ponto. Acho que o uso de imagens fotográficas, as reportagens que se fazem no estrangeiro e a retórica política sobre os locais que não fazem parte do chamado ao Primeiro Mundo também criam esta imagem nas nossas cabeças, de que a vida lá tem outro valor ou outros pontos de pressão. Quando estive em lugares como Beirut ou em cidades como Sarajevo, que passaram por uma guerra civil, ou em países como o Paquistão, que aparecem muitas vezes nas notícias mas apenas representado exclusivamente pela violência, que existe lá, fiquei impressionado com o facto de a vida continuar. As pessoas vão à escola, vão trabalhar, sentam-se e tomam um café, discutem política. E presumo, apenas por observar, que as pessoas também amam e querem ser amadas. Vivi com uma pessoa que cresceu na Líbia e em Beirut [no Líbano]. O meu melhor amigo é de Sarajevo [na Bósnia-Herzegovina]. Tenho uma relação pessoal [com estes lugares], mas também acho que, se queremos ser decentes, cidadãos globais, temos de resistir a essa narrativa que nos é apresentada nas notícias e na política de que a vida tem um maior valor dependendo do local onde se vive. Alguns destes poemas são uma tentativa de redesenhar esses mapas que os políticos e os meios de comunicação desenham para nós.
Então acredita que a poesia e a literatura podem desempenhar um papel importante, dando a conhecer outras realidades?
Absolutamente. Se confiarmos no jornalismo, só temos acesso a uma perspetiva reduzida de uma coisa que é complexa — a vida. Como mencionei, alguns países só são referidos num contexto de violência. Nos Estados Unidos da América, há, anualmente, 40 mil acidentes mortais de viação; há 70 mil overdoses, quase duas mil por dia. Se só se falasse nos Estados Unidos por causa disso, ninguém lá ia de férias porque ia parecer um país perigoso, infestado de drogados e cheio de condutores malucos. E estes números nem sequer incluem os crimes causados por armas. A ótica de como entendemos as outras pessoas está profundamente distorcida, e muitas vezes é distorcida em favor daqueles que estão no poder. Este livro não é uma tentativa de reescrever a política contra essa força mas, pelo menos, quis tentar dar a entender que essas óticas existem.
Como falámos no início desta conversa, Mapas fala também sobre si. E há sentimentos que são recorrentes — a perda, o luto, a nostalgia e a saudade.
O que é triste é que aquilo que nos une é que todos iremos perder alguém, mesmo que tenhamos nascido órfãos. Cada um de nós vai experienciar essa perda. Se calhar as pessoas que vão ler esta entrevista passaram por isso, e é um bocado surreal tentar colocar isto de forma ligeira, que alguém existe e que depois desaparece. Para onde é que vão [aqueles que morrem]? Porque é que continuam dentro de nós? Porque é que continuamos a ouvir a sua voz? No meu caso, essa experiência criou um rasgão epistemológico no universo e onde quer que fosse via aquilo que faltava. Não apenas nas pessoas, porque não as conhecia, mas no fantasma da história e do passado. Comecei a ver o mundo como uma acumulação de perda. Não de uma maneira negra, mas no sentido em que todos os espaços onde entramos foram construídos por mãos humanas mas também foram subtraídos por esta força — a mortalidade —, que entendemos biologicamente mas que metafísica ou espiritualmente continua a ser intensamente misteriosa para nós.
Essa perda que sofreu foi a da sua mãe.
Sim. Tinha familiares distantes e um avô que já tinham morrido naquela altura. Pessoas a quem era relativamente chegado, mas nunca tinha vivenciado a morte de alguém cujo cheiro, o toque, a voz me fossem tão queridas. A minha mãe morreu muito devagar porque tinha Alzheimer e Parkinson. Aconteceu em câmara lenta e, mesmo no final da sua vida, ainda parecia que, de alguma forma, era um erro, era um problema que se podia resolver. Mas não era. Alguma das formas mais antigas de poesia, como o poema lírico, falam sobre um “eu” que recorda alguém. São [poemas] sobre o luto e foram escritos para serem cantados. Estes, graças a Deus, não foram feitos para isso, mas escrevo para a minha mãe, em parte para a recordar mas também para falar com ela, porque a pessoa que ela era já não está aqui. Tenho de, até certo ponto, criar a pessoa com quem quero falar. E isso é algo que se pode fazer através das palavras.
Este livro foi também uma forma de fazer o luto?
Sim. Começou antes de ela morrer e continuou depois da sua morte. Acabei o livro alguns anos depois da morte dela. Quando alguém está tão doente que já não está presente — ela não conseguia falar ou andar, estava muito incapacitada no final da vida — começamos a fazer o luto antes da sua morte porque já não está lá. Mas o verdadeiro luto só começa quando essa pessoa já não está cá e está morta. Vários anos depois, torna-se numa presença amigável. Por isso, sim, o livro é muito sobre essa transformação, sobre mapear alguém, da sua presença viva até à sua presença imaginária que, quem perdeu uma pessoa, carrega consigo o resto da vida. Agora é algo consolador. Posso dirigir-me de forma imaginária, na minha cabeça, à minha mãe. Ela nunca esteve em Portugal, ela nunca saiu dos Estados Unidos, mas posso pensar nas coisas como se ela tivesse dentro de mim.
Mapas é o seu primeiro livro de poesia, e é um livro muito pessoal, pelas razões que temos vindo a apontar. Como é que tomou a decisão de se estrear como poeta? E como é que é a sua relação com a poesia?
Acho que à semelhança de muitos escritores, comecei a escrever poesia quando era novo.
A certa altura todos sonhamos ser poetas.
Sim, sim [risos]. Queremos fazer alguém chorar de emoção. Enquanto crescia, enviava poemas a raparigas [risos]. E depois parei de escrever, quando tinha uns 19 anos. Passei os meus 20 e 30 anos a trabalhar como crítico literário. [O trabalho de crítico] é pessoal, sai da minha cabeça, mas não é a minha vida, é baseado na experiência, na experiência da leitura. Quando a minha mãe ficou doente, escrevi um poema a dada altura. Não sei porquê, não me sentei para o escrever, não decidi escrevê-lo.
Portanto, passou mesmo muitos anos sem escrever um único verso.
Mas lia muita poesia. Em parte, acho que comecei a escrever porque tomo café uma vez por mês, às vezes uma vez por semana, com um poeta de Nova Iorque que fez há pouco tempo 70 anos. É um poeta brilhante, um bom amigo e temos uma relação muito próxima e profundamente intelectual. Ele é um livraria de poesia andante. Não apenas da que ele escreve, mas também da poesia do mundo. Ia tomar café com ele, os pais dele tinham morrido… Ele é advogado, é um advogado poeta. A dada altura, achei que fazia sentido levar-lhe um poema depois de a força de ter vivido aquela experiência ter feito com que saísse de dentro de mim.
Já alguma vez leu algum livro da Svetlana Alexievich [Prémio Nobel da Literatura em 2015]? São muito fáceis de ler, porque são uma reunião de entrevistas com russos ou antigos cidadãos da União Soviética. Pessoas normais. Quando lemos os livros dela, pensamos: “Meu Deus, será que as pessoas normais falam assim?”. As personagens dela passaram por experiências intensas, e agora compreendo que estas experiências podem pressurizar a linguagem tornando-a muito semelhante a literatura. Tem a coerência, a intensidade e a singularidade de uma peça de literatura. O depoimento pode tornar-se assim. Não estou a comparar a morte da minha mãe com a de viver uma guerra, mas é um processo semelhante de pressurização da linguagem. Acho que esta é a resposta longa ao porquê de me ter dedicado à poesia [risos].
O sofrimento cria um bom poeta?
Acho que cria as condições para escrever. Já passou por alguma experiência em que ficou destroçada e teve de, pelo menos, escrever sobre isso? Não sei se isso lhe aconteceu, mas pode ser assim quando a única coisa que resta é uma história, uma memória ou as observações de uma pessoa que já não está cá. E uma vez cá fora, temos de começar a dar-lhe forma. Porque se o sofrimento criasse poetas, haveria um universo de poetas.
Mas existe essa definição romântica do poeta — alguém que é triste, melancólico, que sofre muito.
[Risos] Bem, acho que a sensibilidade é importante para se ser poeta. E isso para mim tem vários significados. É preciso ser-se sensível em relação a nós próprios, mas acho que se formos apenas assim, somos narcisistas [risos].
Alguns são.
Sim, alguns são. Há alguma coisa de fascinante nos escritores narcisistas porque a sua sensibilidade em relação a si próprios é tão grande que é como se eles fossem duas pessoas ao mesmo tempo — o escritor e a pessoa com quem estão em comunhão. Mas, para mim, nos grandes escritores, a sensibilidade em relação a si próprios extrapola para o resto do mundo e para outras pessoas. E porque podem imaginar o seu próprio sofrimento, conseguem imaginar o dos outros. Acho que os grandes escritores não precisam de ter passado pela mesma experiência, porque têm a capacidade de imaginar o sofrimento, têm uma mente que lhes permite imaginar a dor de outra pessoa, mesmo que seja tão diferente como perder alguém querido ou o trauma da guerra. Para mim, é isso que constitui a metafísica e a capacidade de um escritor. É o que faz um escritor, é a peça central.
É preciso ter empatia.
Sim, caso contrário, tem-se apenas um grande domínio da linguagem.
Isso também é importante.
Sim, mas se só se tem empatia e não se tem um bom domínio da linguagem…
É-se apenas uma boa pessoa.
[Risos] Sim, é-se apenas uma muito boa pessoa [risos].
Foi crítico literário durante muitos anos, até que assumiu o cargo de editor da Granta, uma importante revista literária. Como é que foi essa experiência?
Foi a experiência de uma vida. Era crítico literário há dez ou 12 anos, tinha escrito sobre a Granta, sabia o que era, tinha-a lido, mas contrataram-me sem qualquer experiência de edição. Fiquei grato por isso. E foi extraordinário poder trabalhar com escritores! Adorei fazê-lo. Até àquela altura, só tinha avaliado o trabalho [de um escritor] depois de estar escrito. Fazer parte da edição de um trabalho foi desafiante, esclarecedor e divertido. E participar num trabalho antes até de ser concebido, poder escrever a alguém, tentar convencê-lo a escrever alguma coisa e ter essa troca bonita de ideias que leva a qualquer coisa que se pode transformar num trabalho… Acho que isso foi o início da estrada do que seria o resto da minha vida, enquanto editor. Trabalhei com escritores que não conhecia, em alguns casos pude conhecer escritores que sempre li e noutros pude trabalhar com pessoas que conhecia muito bem mas que nunca tinha editado. Foram uns ótimos cinco anos. Quando saí, pensei: “Se não sair daqui, vou ser o tipo mais pretensioso de sempre” [risos]. É que ao ser editor de uma publicação tão prestigiada como a Granta, as nossas piadas ficam mais engraçadas, toda a gente atende as nossas chamadas… Enquanto escritor, pode incrustar-nos com uma ideia de importância que pode ser muito prejudicial para a nossa existência no mundo, para a forma como tratamos os outros e para a nossa habilidade de escrever. Queria sair antes de me tornar demasiado oficial. Percebe o que eu quero dizer? Isto faz sentido? Só que um ano depois de ter saído, senti falta de editar. Então voltei a fazê-lo [risos].
Porque é que as revistas literárias como a Granta são importantes?
Existem muitas formas de interagir com o que acontece com o mundo. [Isso] costumava ser-nos apresentado através das notícias, dos jornais, mas agora a maioria de nós tem acesso ao que acontece através do Facebook e do Twitter. Isso é orientado por algoritmos, e esses algoritmos escolhem o que queremos ler de uma forma mais pesada do que aquilo que não queremos ler. Aos poucos, começamos a ver mais e mais daquilo em que previamente demonstramos estar interessados. Na minha opinião, isso levou a um problema de informação cognitiva muito sério que é: como é que sabemos ou não sabemos o que precisamos de saber? E como é que aprendemos coisas sobre as quais ainda não demonstramos qualquer interesse? Isso torna-se cada vez mais difícil, porque não estamos a ser expostos a algo como um jornal cheio de informação que alguém, uma pessoa, um grupo de pessoas, não um computador, disse que era importante.
Mas aí também existe alguém que faz uma seleção prévia.
Sim, mas essa seleção é feita por pessoas. Confio mais nas pessoas do que numa máquina, porque uma máquina está a tentar dar-nos mais daquilo que queremos. Um jornal faz um bocadinho isso, mas também decide se em Lisboa, por exemplo, precisamos mesmo de saber o que está a acontecer no Bangladesh. Se não tivermos clicado num link para uma noticia do Bangladesh, se os nossos amigos não nos mostraram nada relacionado com isso, o Facebook ou o Twitter não nos vão mostrar isso. Acho que, neste mundo, as publicações que são conduzidas por um conjunto peculiar de preocupações e por um grupo pequeno de especialistas que acreditam na escrita de qualidade constituem um grupo muito pequeno mas muito importante. Foi isso que escolhi passar o meu tempo a fazer, porque acredito que a boa escrita começa sempre nas margens da sociedade. E mesmo começando nessas margens, tem quase sempre um impacto muito grande fora delas.
Ao mostrar o que está a ser criado à margem da sociedade, está também a apresentar uma visão muito mais alargada do mundo da literatura. Tem essa preocupação?
Estive a falar do impacto da Internet na informação mas outra coisa de que geralmente somos privados no nosso mundo é aquilo que é bloqueado pelas barreiras da linguagem. O último número da [revista literária] Freeman’s tem o “poder” como tema. O “poder” é muitas vezes definido em termos muito localizados. A forma como é narrado em termos de género, por exemplo, difere de local para local. Este novo número tem uma escritora do Japão que nunca tinha sido traduzida para inglês, e ainda menos para português: Kanako Nishi, que escreveu uma história sobre uma rapariga que, enquanto cresce, experiencia uma coisa que é muito universal — é sexualizada demasiado nova e tem de descobrir como lidar com isso. Vira-se para a linguagem, e tenta renomear algumas das coisas sobre ela própria porque, ao crescermos, uma das formas através das quais tomamos conta das nossas próprias histórias é a maneira como nos vestimos. Ela [a rapariga do conto] não se pode vestir como um rapaz, tem de usar saias. E esse vestido atrai um homem mais velho, então ela quer começar de novo. Na história, encontra um outro homem mais velho que está a queimar coisas nas traseiras de sua casa, perto do sítio onde ela mora. Vai ter com ele e pergunta-lhe: “Pode queimar palavras?”. Ela quer que ele comece a queimar as palavras que ela sente que estão cheias de conotações que lhe fazem mal. Ela compreende isso, mas não consegue articulá-lo. Na minha opinião, trata-se de uma história que definitivamente vem de outro lugar, vem de uma imaginação particular do outro lado do mundo, mas fala sobre crescer, sobre uma rapariga que é quase adolescente. Acho que muitas mulheres provavelmente se relacionam com isso. Quando, ao perdermos histórias a escritores, atiramos a rede mais longe, podemos acabar com novas ideias de conceber os problemas que são universais.
Mas é difícil ter acesso a um olhar diferente. Há o problema da tradução. Algumas línguas são muito pouco traduzidas.
Esse é um dos problemas de vir de um mundo onde se fala inglês. Enquanto falantes do inglês, onde quer que vamos, vemos versões de nós próprios ou da nossa cultura. Ontem entrei numa livraria e deparei-me com [o romance] The Mars Room [publicado em 2018], da Rachel Kushner, que é um ótimo livro, não tenho nada contra ele. É fantástico. Vi muitos livros que vejo na minha livraria em Nova Iorque e muito poucos livros de japoneses, chineses, traduções do urdu.
O mercado está cheio de livros de escritores de língua inglesa. Não resta muito espaço para outras línguas.
Essa é uma das razões pelas quais deixei a Granta. Embora existam edições em outras línguas, como a que a Tinta-da-China tem [em Portugal e no Brasil], ela é, em grande medida, uma revista anglo-americana. Quando lá estava, havia alguns limites em relação àquilo que soava bem por causa da acústica, da história do sítio. Quando comecei a Freeman’s [em 2015], queria criar uma revista que não tivesse um centro implícito. Apesar de editar sobretudo em Nova Iorque, não queria que o leitor tivesse de ser americano. Ou inglês. Ou de algum lugar. Apenas queria ter os melhores trabalhos possíveis. [A Freeman’s] está traduzida em sueco, italiano, romeno e chinês, e não queria que esses leitores tivessem de ser tratados de forma especial. É um bocado empolgante quando tiramos a uma revista essas fronteiras nacionais. Enquanto editor, podemos juntar coisas que tipicamente não aparecem juntas. A partir dessas justaposições, é possível criar algo novo. Isso fez-me perceber, enquanto cidadão e não apenas como leitor, o quanto as minhas movimentações pelo mundo, excluindo os Estados Unidos, são determinadas por vozes silenciosas e murmurantes de nacionalidade. Isso não acontece apenas quando uso o meu passaporte — toda a linguagem com que nos deparamos no nosso dia a dia diz-nos que somos portugueses, americanos e o que isso significa. Existem símbolos [de nacionalidade] que ingerimos com os nossos olhos, com os nossos ouvidos, com os nossos sentidos. Essas assunções podem ser reconfortantes, mas também podem ser muito limitativas. Neste momento, estamos a assistir aos danos que essas limitações podem provocar.
Porque é que acha que isso está a acontecer agora?
Acho que a crise do nacionalismo que se está a espalhar pela Europa e que está a provocar convulsões nos Estados Unidos é, até certo ponto, um sintoma das desigualdades catastróficas que vemos na maioria das sociedades, entre os muito, muito, muito ricos e os pobres. A minha teoria, e a minha opinião — e acho que podemos ver isto na Economia e na Sociologia — é a de que para a mantermos o status quo do nosso mundo, precisamos de dar certas designações às pessoas — de dizermos que são sub-humanas ou sub-cidadãs — para que possamos manter a ordem do mundo, do qual o Primeiro Mundo consome e usa uma grande porção dos recursos. O resto do mundo possui esses recursos, mas não os possui verdadeiramente. E estou a incluir nestes recursos a força de trabalho. Estou neste momento a usar roupas que foram feitas numa fábrica na China, onde a força de trabalho é artificialmente barata porque a estrutura do mundo mantêm-na assim.
Acho que há muito medo na nossa liderança mundial. Se as pessoas se pudessem mover livremente como seria suposto, isso, de alguma forma, desequilibrava o poder. As classes políticas e económicas, que estão a violar uma quantidade obscena de benefícios da nossa atual ordem mundial, teriam de prescindir de uma parte do que têm. Não sou marxista, não sou revolucionário, mas isto é simplesmente óbvio para mim. 26 ou 28% das pessoas que têm a nossa vida equivalem a metade da população do mundo. Isto é de doidos! É verdadeiramente de doidos! E isto é uma coisa nova e não é de todo sustentável. A maneira como isto está a ser tratado é através da criação destas teorias nacionalistas, que dizem que há um italiano típico, que é, claro, branco, que não é imigrante; que há um americano típico, que é branco. É muito assustador, porque a violência começa sempre na linguagem, começa sempre na descategorização das pessoas enquanto cidadãos ou seres humanos. Assim que se consegue fazer isso de forma eficaz, é possível fazer-lhes coisas horríveis.
Nada disto é novo.
Claro que não! E os Estados Unidos já passaram por isto. Estamos a viver um ciclo que nos leva de volta ao final da Guerra Civil [1865]. Depois da Guerra Civil, houve, nos Estados Unidos, um período chamado Reconstrução, durante o qual os escravos foram libertados e receberam direitos humanos e civis. Os tribunais e o governo federal norte-americano legislou isso, mas as regiões, especialmente o sul com a colisão do norte, resistiu. Como resultado, tivemos um século de descriminação contra os negros, que incluiu linchamentos, prisões ilegais e, certamente, injustas, e a remoção de direitos aos quais tinham direito, legalmente e humanamente. Estamos a viver outro espasmo disso.
E essa descriminação não acabou assim há tanto tempo. A segregação racial nos Estados Unidos terminou nos anos 60, ou seja, há apenas 50 anos.
Não, mas a Lei dos Direitos Civis, que Lyndon B. Johnson herdou do J.F. Kennedy e aprovou [em 1964] foi um ponto de viragem. Proclamou que todas as pessoas deviam ser tratadas de forma igual. Foi o pico dos direitos civis e, desde então, nos últimos 40 e tal anos, houve um retrocesso coordenado, que está a atingir o seu ponto máximo com o atual presente, com a linguagem que ele usa e os instrumentos legais que está a usar para tentar despir aqueles que não são brancos dos seus direitos. Há uma razão simples para isso — é tudo pelo poder. Se toda a gente votasse, teríamos um democrata, tendencialmente de esquerda, no poder, em qualquer forma de governo. A demografia do país mudou tão radicalmente que a direita só consegue ter poder se convencer as pessoas a não votarem ou se tornarem praticamente impossível para aqueles que não são brancos votar. Este tipo de manobras de poder são muito específicas e estou a fugir um bocadinho ao tema ao falar nelas, mas estão relacionadas com aquilo de que temos estado a falar — sobre o poder, revistas literárias e a capacidade da poesia de abordar o que está a acontecer. Acho que muitos de nós que vivem em locais onde sabemos que há algo de errado, sentimos que há alguma coisa mal com as nossas sociedades, que a forma como o mundo nos está a ser apresentado está ligeiramente desequilibrada. Não são fake news, simplesmente não nos estão a contar a história complexa. A literatura, se trata de alguma coisa, é de complexidade. Acredito nas formas de arte e de comunicação que podem transmitir, codificar e celebrar a complexidade. Precisamos disso, porque as formas de informação e de comunicação com que vivemos não são complexas — são exatamente o contrário. É por isso que são reconfortantes e estúpidas. Dizem-nos que, sim, este é o vilão, estas são as outras pessoas, este é o nosso país, esta pessoa é boa. Podemos contar estas histórias às crianças, mas até elas vão ficar aborrecidas [risos].
Porque os seres humanos são complexos.
Sim, são. Mesmo se acreditarmos na noção de que as nossas sociedades estão profundamente divididas, não apenas a um nível económico, a única maneira através da qual poderíamos sobreviver a essas divisões era se respeitássemos a complexidade dos outros. Temos esse problema nos Estados Unidos, porque o nosso país, grandes partes da população, não têm educação, em muitos casos porque os distritos escolares são financiados por impostos e por dinheiro federal. Recebe-se uma educação muito pobre e, no entanto, as pessoas são complexas. Alguém que não estudou pode ter uma grande complexidade. Para que possamos viver em sociedades com divisões económicas, culturais e emocionais, temos de respeitar a complexidade uns dos outros.
Isso parece ser um grande desafio para muitas pessoas.
Sim, principalmente quando existe um discurso de ódio. É por isso que — e esta é a única coisa que vou dizer sobre o desastre cor-de-laranja que é o nosso presidente — a forma como ele fala é muito importante. Ele fala com uma vulgaridade odiosa intensa, e isso é contagioso, porque diz que não faz mal falar das outras pessoas daquela forma. [Que não faz mal] chamar às mulheres cadelas, chamar aos mexicanos violadores, falar sobre os nacionalistas brancos que acreditam que os negros deviam ser mortos, metidos na cadeia, e dizer que eles são boas pessoas. Ele fala numa espécie com uma patois com um vocabulário mínimo. No entanto, enquanto orador, claramente tem alguns dons profundos porque é hipnotizante. E digo isto com um grande pesar pelo que ele representa, mas ele, enquanto entertainer e performer, é hipnotizante. Em parte, por causa do seu narcisismo, porque os narcisistas podem ser fascinantes.
E agora voltando à literatura: a que escritores é que devíamos estar a prestar atenção?
Oh, Deus, eu sou uma espécie de chaminé de entusiasmos andante! Ultimamente, tenho lido muitos escritores que escrevem sobre o mundo natural porque os cientistas têm mostrado que o aquecimento globo está muito mais avançado do aquilo que se pensava. Aqui está outra coisa da linguagem: “alterações climáticas” é um termo que a indústria da energia quer que usemos porque é menos ameaçador que “aquecimento global”. As alterações climáticas são só “oh, estamos só a ajustar o termostato”, enquanto o aquecimento global é “oh meu Deus, está tanto calor! Estou a ferver!”. Mas pronto… Um dos escritores que tenho lido, viaja pelo mundo e escreve sobre sociedades indígenas, paisagens, há 40 anos. Saiu um novo livro dele este mês, nos Estados Unidos. Ele deve estar traduzido para português, chama-se Barry Lopes. Escreveu um livro no final dos anos 80 sobre o Ártico e a imaginação chamado Artic Dreams. É um livro profundo e bonito. Depois escreveu outro depois de ter passado muitos anos na natureza com lobos, chamado Wolves and Men. Sim, é um título masculino, mas fala sobre essa transmissão particular e misteriosa afinidade que existe entre homens e lobos. O seu último livro chama-se Horizon e fala sobre o propósito de viajar nos dias de hoje, sobre o que significa viver num mundo onde a informação viaja tão rapidamente e onde, no entanto, algumas sociedades permanecem tão remotas. O Barry Lopes é um dos autores que tenho lido.
Em termos de poesia, tenho estado recentemente obcecado — e há algo tempo, suponho — pela Anne Carson. É canadiana, é tradutora de grego clássico. Traduziu [a poetiza grega] Safo, a Antígona [de Sófocles], mas é também uma poetiza brilhante no seu próprio direito. Safo, como provavelmente sabe, chegou até nós em fragmentos. Não temos poemas inteiros, e algum do poder é precisamente aquilo que falta. A Anne Carson está a tentar criar uma estética da ausência. Isso não significa que haja buracos nos seus poemas, mas é como se todos eles navegassem em torno de um tópico que não é imediatamente óbvio. Ela escreve de forma muito poderosa sobre o amor. Teve um irmão que morreu, tem um ótimo livro sobre ele. Se ela não está traduzida em português, devia estar.
E em termos de ficção, acho que estamos numa ótima altura para os jovens escritores latino-americanos, especialmente da Argentina e especialmente mulheres. Há um triunvirato, uma santíssima trindade de escritoras mais novas da Argentina — Samanta Schweblin, Mariana Henriquez e Pola Oloixarac, que têm cerca de 40, um pouco mais de 40, o que para mim ainda é jovem —, que falam do rescaldo de uma sociedade que é coletivamente traumatizada, o que acho que, geracionalmente, também pode dizer alguma coisa a Portugal, porque tiveram uma ditadura até há pouco tempo, até 1974. Schweblin, Henriquez e Ooixarac fazem-no de formas muito diferentes. Schweblin é uma espécie de Kafka do século XXI; Henriquez está a inventar uma espécie de literatura de terror latino-americana. Eles não tiveram um Stephen King, então ela está a criar o género, o que é especialmente potente numa sociedade que fez desaparecer pessoas. Enquanto feminista, está também a tentar atualizar essa forma de escrita de terror para incluir as tretas que as mulheres têm de aguentar num mundo que é maioritariamente patriarcal e, sem querer exagerar, perigoso para as mulheres. Oloixarac é uma estranha mistura do Henry Miller com o Stephen Hawking. Ela está muito interessada, cientificamente, em algoritmos, na Internet e em teorias matemáticas. O seu primeiro romance chamava-se Savage Theories e o seu segundo acabou, que de sair em inglês, chama-se Dark Constellations. Também fala sobre o facto de vivermos com avatares de nós próprios nesta era da Internet.