A menos de 48 horas de celebrar um mês na Casa Branca, Donald Trump lançou talvez um dos seus mais sérios ataques aos meios de comunicação social desde que chegou à presidência dos Estados Unidos. Através da rede social Twitter, que continua a ser o seu meio preferido para comunicar com os eleitores norte-americanos, Trump escreveu que “os media que transmitem NOTÍCIAS FALSAS (como os fracassados New York Times, NBC, ABC, CBS e CNN) não são meus inimigos, são inimigos do povo norte-americano”.
The FAKE NEWS media (failing @nytimes, @NBCNews, @ABC, @CBS, @CNN) is not my enemy, it is the enemy of the American People!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) February 17, 2017
É apenas o último soco dentro do ringue de boxe que se tornou a relação entre os meios de comunicação social americanos e Donald Trump. Apesar de Trump não ser o primeiro Presidente a esconjurar os jornalistas — Thomas Jefferson escreveu a um amigo criticando o “estado pútrido em que estão os nossos jornais” e a “maldade, vulgaridade e espírito desonesto daqueles que lá escrevem” e Bush pai até tinha um autocolante de campanha que dizia “Irrita os media, Vota Bush” — é certamente o primeiro a demonstrar, pública e permanentemente, porque assim o permitem as redes sociais, o seu descontentamento com a cobertura jornalística de que é alvo.
“Isto não tem precedentes na história do jornalismo norte-americano”, diz ao Observador Daniel Feller, historiador na área da comunicação da Universidade de Tennessee. “É diferente de tudo o que vimos e é diferente em 100 maneiras diferentes; e está a ficar mais estranho a cada dia que passa. Num dia normal, Donald Trump pode dizer dez coisas que, individualmente, seriam manchete durante semanas com qualquer outro Presidente e acabariam com a carreira da maioria dos políticos”, completa o professor, que reconhece que todos os Presidentes têm problemas com os meios de comunicação social porque “naturalmente consideram que o acompanhamento crítico que os jornalistas fazem dos seus mandatos é injusto”. Apesar disso, e mesmo tendo em conta “o óbvio ressentimento de Richard Nixon em relação à imprensa que acabou numa hostilidade mútua bastante clara”, o “nível de demonização de Trump nunca se viu”.
https://twitter.com/PolToons/status/831126127993303041
Mesmo dentro do próprio Partido Republicano há quem critique as declarações de Donald Trump. Este domingo, John McCain, candidato à presidência em 2008, contra Obama, afirmou que “se queremos preservar a democracia como a conhecemos, temos de ter uma imprensa livre e, às vezes, adversária”. “Sem ela, temo que percamos muitas das nossas liberdades individuais ao longo do tempo. É assim que os ditadores começam”, disse explicando que uma das primeiras medidas de todos os ditadores é “suprimir a liberdade de imprensa”, o que é, no fundo, “uma consolidação do poder”. “E não estou a dizer que o Presidente Trump está a tentar ser um ditador. Estou apenas a dizer que temos de aprender com as lições da história”, explicou.
Numa entrevista com o Observador por altura do Congresso de Jornalistas, o professor e analista dos media Walter Dean disse que, “em muitos casos”, os ultra-conservadores americanos “já se apropriaram dos factos, mas agora estão a roubar também a linguagem, dizendo que uma história é ‘notícia falsa’ sempre que não gostam do seu conteúdo”. O problema é que “isso provoca uma erosão ainda maior na credibilidade dos media de massas, porque todas as notícias desfavoráveis podem assim ser defendidas por Trump como ‘ataques partidários’ ou ‘campanha para me denegrir'”.
Também podemos argumentar que muitos jornais, há uma década, nunca pensariam em cobrir desta forma quase lúdica uma Administração democraticamente eleita. O Huffington Post, por exemplo, relegou o acompanhamento da campanha de Trump para a secção de entretenimento e poucos foram os meios de comunicação que, mesmo depois de Trump ter sido eleito, conseguiram resistir à tentação de publicar cartoons que ilustram um Presidente infantil, narcisista ou com problemas com a autoridade.
.@PatChappatte on Trump vs. the judges https://t.co/7Wy2L1CqSK pic.twitter.com/92oGR7DO3d
— New York Times Opinion (@nytopinion) February 7, 2017
O exemplo mais recente é a capa da Time desta semana, demolidora para a atuação de Trump neste primeiro mês de presidência: vê-se o cabelo e a roupa do Presidente, sentado na sua secretária na Sala Oval, sob uma violenta tempestade e um título claríssimo: “Nada para ver aqui”.
TIME’s new cover: Inside Donald Trump's White House chaos https://t.co/hctIFEcOSG pic.twitter.com/1hSQNrY6JQ
— TIME (@TIME) February 16, 2017
Trump tem um ódio particular à estação televisiva CNN, que, de facto, não lhe tem dado descanso. O último golpe duro foi no início de janeiro, quando a CNN publicou uma notícia dando conta da existência de um dossier contendo informações não verificadas sobre a relação de Trump com a Rússia. Numa conferência de imprensa pouco depois de a CNN ter publicado a notícia em questão, Donald Trump recusou-se a responder a Jim Acosta, classificando a CNN como “fornecedor de notícias falsas” e “terrível”.
https://youtu.be/nEtkIV1bHQA
O second round foi no fim da semana passada, quando Acosta tentou questionar Trump sobre Michael Flynn, o Conselheiro para a Segurança Nacional que se demitiu depois de ter vindo a público que manteve conversas com o embaixador russo para discutir as sanções impostas à Rússia, conversas que terá ocultado do presidente e do vice-presidente. Durante a conferência de imprensa Donald Trump desferiu críticas duras à CNN, dizendo que a estação de televisão tem um discurso “impregnado de ódio”.
Jeck Zucker, Presidente da CNN Worldwide, afirmou, numa entrevista à New Yorker, ter “pena” de que “a pessoa mais poderosa do mundo ande a tentar descredibilizar o jornalismo e uma organização que tem um papel tão importante na democracia”, acrescentando que o Presidente “tem direito à sua opinião mas é uma situação, como ele diz tantas vezes, triste”.
The hand that feeds him… #TrumpPressConference #Trump #media #corneredanimal @TheBuffaloNews https://t.co/DfzgoQvMKg pic.twitter.com/7jhblrsii7
— Adam Zyglis (@adamzyglis) February 17, 2017
A relação de Trump com os media vem de há muito tempo e teve outros episódios controversos. Um deles aconteceu com Megan Kelly, jornalista da Fox News, em 2015, quando Trump disse à CNN que tinha sido atacado por alguém que tinha “sangue a sair dos olhos e da sua qualquer coisa”. Kelly tinha confrontado Trump com algumas das suas opiniões consideradas misóginas e o agora Presidente não gostou.
De outra vez, Donald Trump aproveitou um comício para gozar com a deficiência física de um jornalista do New York Times. Mais tarde, negou que os seus gestos tivessem tido essa intenção.
Usar as redes como ninguém
Desde o 11 de Setembro que não havia um pessoa ou evento que ocupasse tão compacta e transversalmente todos os canais de transmissão de informação como a campanha — e agora a Presidência — de Donald Trump.
Num artigo para o site Politico, o analista de comunicação social Jack Shafer explica porque é que a mudança do paradigma da comunicação é a razão para o sucesso da estratégia de Donald Trump — é que ele não precisa dos meios de comunicação tradicionais para passar a sua mensagem, o que lhe permite dizer que os jornalistas são agentes ao serviço das elites e contra o cidadão comum que supostamente Trump quer representar. “Trump tem mais seguidores no Twitter do que o Washington Post ou o Wall Street Journal. Se cada vez mais gente procura notícias nas redes sociais, então não é exagero nenhum dizer que, durante a sua campanha, Trump tornou-se os media“.
Já Denis Muller, investigador do Centro de Estudos Jornalísticos da Universidade de Melbourne, escreveu que é a “indústria da raiva” que está a sustentar a bolha de Trump”, que, por sua vez, “explora bem o ressentimento compreensível de milhões de pessoas que, mesmo vivendo em países ricos, se sentem excluídas pela globalização e sacrificadas pela lógica de racionalismo económico dos seus governos”. Nesse sentido, continua o professor, “Trump conseguiu ser o amplificador da raiva destas pessoas deixadas para trás”. A procura incessante do lucro e do clique, diz ainda Muller, faz com que os meios de comunicação acabem por reproduzir as coisas “chocantes” que Trump diz.
É uma bola de neve que pode ficar muito maior e tornar-se um rolo compressor sobre a credibilidade que ainda resta aos meios de comunicação social. “Tudo isto afetará necessariamente a nossa sociedade. Como é que é possível funcionarmos como sociedade se não temos confiança na informação que consumimos e nas pessoas que nos dão essa informação? E como é que é possível que um Presidente promova essa desconfiança? É uma questão preocupante e é assustador que tenhamos que ponderar todas estas coisas”, disse ao Observador o historiador Daniel Feller.
O muro, a ordem executiva “anti-muçulmanos” e uma certa capa da Spiegel
Trump está a cumprir o que prometeu. E um dos pontos escritos a negrito, sublinhado e itálico no seu manifesto eleitoral é a redução da imigração ilegal e o reforço da segurança interna. A materialização deste ponto foi uma ordem executiva que visava impedir cidadãos com origem em sete países de maioria muçulmana de entrarem no país. Seguiram-se protestos em vários aeroportos.
A Justiça norte-americana congelou a aplicação desta ordem, mas, enquanto se trava essa batalha jurídica nos tribunais, há outra a acontecer nas páginas dos jornais. Ou das revistas, mesmo das mais sóbrias, como é o caso da alemã Der Spiegel, que fez recentemente uma capa polémica com um desenho onde Trump segura uma faca ensanguentada na mão esquerda e a cabeça decepada da Estátua da Liberdade na mão direita.
Newsstand in Germany pic.twitter.com/f4m2j2MYiY
— Edel Rodriguez (@edelstudio) February 4, 2017
Edel Rodriguez é designer, imigrante cubano e considera que a participação democrática levou um “choque elétrico de volta a vida” com Donald Trump. A capa que desenhou para a revista alemã é forte mas, segundo disse Rodriguez numa breve conversa com o Observador, “é a única forma de lutar”. É forte porque lembra as decapitações do Estado Islâmico, é forte porque Trump aparece de boca aberta, sem olhos, cheio de raiva.
“Fui um refugiado político e estou zangado com a linguagem da nova Administração. Este país acolheu-me há muitos anos e deveria continuar a receber pessoas que necessitam de um porto seguro”, diz Rodriguez, que está habituado ao impacto que os seus trabalhos costumam ter. “É suposto o meu trabalho provocar reações fortes, pôr em marcha uma discussão, para mim quer dizer que estou a fazer o meu trabalho. As maiores críticas vieram dos cubanos, que me chamaram comunista e disseram que eu odeio a América. Mas eu adoro a América e estou a lutar por ela e por aquilo que os nossos fundadores estabeleceram: liberdade de expressar opiniões, de escrutinar o poder”.
Rodriguez faz ilustrações para capas de revistas de referência há mais de vinte anos. Esta chegou a todo o lado. Na sua conta no Twitter, Edel Rodriguez vai colando as fotos que lhe enviam. O seu papel — ele diz “o nosso”, o dos media — é “chamar a atenção para o que se está a passar, sem tréguas” até porque “os media foram parcialmente responsáveis pela eleição de Trump, beneficiando da atenção e das audiências que as suas tiradas chocantes lhes traziam”. Na opinião de Rodriguez, a investida dos media contra Trump é também uma forma de tentar remediar esse papel que tiveram na propagação das suas inanidades. “Agora os meios de comunicação estão quase todos a tentar defender os direitos das pessoas e há um esforço conjunto de oposição às mentiras e aos insultos de Trump. As minhas imagens são um despertador para a realidade, é sempre essa a minha ideia”, diz Rodriguez.
Belgium pic.twitter.com/Po9e1uWJrf
— Edel Rodriguez (@edelstudio) February 5, 2017
Edel é apenas um dos ilustradores com o poder de uma caneta na mão. Desde que Trump assinou a ordem executiva, os jornais encheram-se de cartoons e ilustrações contra a decisão do Presidente. O cartoonista Hank Green teve uma das contribuições mais partilhadas.
.@hankgreen The #MuslimBan goes against everything we stand for in America
To the rest of the world- I'm so sorry. We do not stand for this. pic.twitter.com/u5gfnxUuIc— ✨JENN!✨ (@TheKeyThief) January 29, 2017
Quais os objetivos de Donald Trump ao atacar a imprensa? O historiador Daniel Feller admite que as perguntas que lhe fazemos são as perguntas que ele e os seus colegas fazem a si mesmos, todos os dias. “Muita gente, e gente séria, se questiona sobre os motivos de toda esta campanha contra as instituições que têm suportado o nosso desenvolvimento. Será Trump doente? Será que está a tentar provocar uma revolta das massas que o apoiam que já estão quase pré-programadas para odiarem os media elitistas e com isso consolidar as suas ilusões de poder?”, questiona-se o professor. “É impossível saber, mas o que sabemos, e sabemos ser grave, é esta permanente repetição de mentiras, como por exemplo ele estar sempre a dizer que ganhou os votos da população apesar de isto ser facilmente contornado com factos; enquanto ao mesmo tempo descredibiliza os media chamando-os mentirosos”, completa Feller.
Como escreveu Shafer sobre a explosão de sites como o Breitbart, um jornal conotado com o ultra-conservadorismo, “o crescimento dos sites e dos blogs que não estão associados aos meios tradicionais mudaram por completo a dieta de consumo de notícias da população, arrastando-nos de volta para o século XIX, um tempo em que os jornais eram obviamente e apenas megafones dos partidos e dos seus candidatos”.