Quase tudo na sua vida foi um “acaso”, algo que “deixa fluir”. Chegar à televisão, ainda adolescente, para participar num concurso da RTP — inscreveram-no amigos, pois José Jorge era demasiado tímido e voltado aos livros — foi por acaso. Ter sido descoberto nesse concurso por Artur Semedo — que o convidou para participar num programa de Júlio Isidro pouco tempo depois –, também. Seguiu-se Nicolau Breyner — e o trabalho entre ambos, paternal no ecrã como fora dele, perdurou toda uma vida — e a Nicolau seguiu-se o teatro, com Ricardo Pais. Tornar-se-ia ator.
Mas tardou a assumir-se como tal — “não era inseguro, mas ainda tinha muito para aprender…” — e, depois de ter estudado línguas e turismo, cantava no paquete Funchal ou fazia de guia-intérprete em Lisboa ao mesmo tempo que pisava os palcos, da Casa da Comédia ao Teatro Aberto.
Fez de tudo, desde vender detergentes e servir à mesa em Roma a funerais a emigrantes em Londres, e orgulha-se disso. “O ator tem de saber fazer de tudo um pouco. Afinal, temos duas mãos, não temos?!” Hoje, ainda hoje, com 54 anos, e mesmo sendo um dos mais importantes diretores de atores na dobragem de filmes de animação em Portugal, continua a ser reconhecido na rua por causa de um personagem que ele próprio criou e nunca o deixaria: o Lecas. Voltou a ser convidado, há poucos anos, para trazer de novo o personagem à TV. Mas recusou. E explica: “Devemos sair de cena antes de as palmas acabarem”.
A sua estreia a representar foi em televisão. Depois surge o teatro. Mas regressaria à televisão, anos depois, para fazer um personagem inesquecível: o Lecas. No início era apenas um programa curto, um programa que fazia a continuidade entre os vários desenhos animados exibidos de manhã na RTP. E cresceu…
Era o “Espaço Juventude e Família”.
Como é que surgiu o convite?
Foi uma altura muito, muito engraçada. Eu já tinha feito programas infantis e juvenis. Mas só como ator. Cheguei a fazer uma coisa com o Goucha, um programa em que os miúdos cozinhavam. Cada prato tinha a ver com uma região do país. E lembro-me que, a certa altura, fui o Abade de Priscos. [Risos] E houve também uma participação o “Zarabadim”, do José Fanha. Éramos um grupo extraordinário no “Zarabadim”: o António Feio, a Angela Pinto, a Luzia Paramés… Na altura o diretor de programas da RTP era o Eduardo Gomes. E propôs-me ser uma espécie de pivô, fazendo a ligação entre os vários desenhos animados. Mas o Eduardo queria aquilo com outro formato — e deu-me liberdade para avançar como eu achasse que devia avançar.
O programa era inovador. Mas tinha um nome pesadíssimo…
[Risos] Era uma coisa pesadíssima, era. Mas o que é que eu fazia? Fechava-me em casa, via mais ou menos que tipo de programas é que tinha de manhã, para poder fazer a ligação entre um programa e outro, e levava para o estúdio determinados adereços de minha casa, tinha uma câmara fixa e ligava uns fios à câmara — para que a câmara se movesse. Era tudo muito artesanal. Muito, muito. E aquilo, na altura, começou a puxar aquela malta que hoje em dia tem trinta, quarenta anos. Os miúdos acordavam para ver aquilo!
E o “Espaço Juventude e Família” acabava por ter tanta ou mais popularidade e audiência do que os desenhos animados que anunciava.
É verdade. E é curioso: nunca tive uma atitude negativa por parte dos pais, por exemplo.
Era precisamente isso que lhe queria perguntar a seguir: houve críticas más ao “registo”, à linguagem que utilizava no programa. Porquê?
A crítica não aceitou bem. Não foram tanto os pais, mas a crítica. Os jornais, as revistas, achavam aquilo absurdo. Um trabalho estranho. Era uma coisa à qual as pessoas não estavam habituadas e, por isso, estranhavam. Era uma crítica muito destrutiva.
Não toda. O Jorge Leitão Ramos elogiou-o muitíssimo no Expresso, na altura, e isso motivou-o a continuar. Estou certo?
Foi exatamente por causa do Jorge que tudo mudou. É incrível como uma opinião pode mudar tudo. Não me recordo bem o que é que ele dizia na crítica. Mas motivou-me. E nunca tive oportunidade de lhe agradecer. Ele nem imagina a importância que teve na minha vida. E, a partir daí, as coisas começaram a correr melhor, as audiências começaram a subir, comecei a ter convites para mais coisas infantis, comecei a ter programas da minha autoria ou co-autoria.
Esse personagem, o Lecas, era totalmente da sua autoria.
Era, era. Aquele personagem tinha uma história. Ele chamava-se Idalécio Completo Sepúlveda. Isto porque havia o coelho do diretor de programas que se chamava Lecas. Ele achou que era giro pôr o nome Lecas ao personagem. Eu aceitei, “siga”, mas nem imaginei que aquele nome ficaria colado a vida toda, até hoje. E então foi criada uma base para aquele nickname. Idalécio Completo Sepúlveda, mais conhecido em pequeno como “meia-leca” — daí o Lecas. E depois criei mais personagens à volta daquela personagem. A Teresa Sobral era a Beliskova, a Paula Fonseca era a Lola — a namorada do Lecas –, o primo Desatino era o José Pedro Gomes. Aquilo ainda durou alguns anos.
Utilizou o programa, a certa altura, para enviar “recados”, por exemplo, a políticos, autarcas. É verdade que as crianças lhe pediam ajuda?
É verdade. Havia uns miúdos, por exemplo, que tinham que atravessar grandes extensões de lama no inverno para chegar à escola. E pediam que falasse com o presidente da Câmara para construir uma estrada. E isso aconteceu. Mas havia mais situações que me chegaram, quase sempre por carta. Sabe: a linguagem que usava às vezes parecia fora de contexto, mas não era assim tão fora. Nunca gostei daquela maneira com que se fala com as crianças, com o “inho”, a “inha”. Sempre gostei de falar com as crianças como falo com os adultos. E divertir-me com elas. A minha linguagem tinha que chegar a crianças de todas as idades, cinco, seis, sete, doze, catorze. E foi complicado, tive que testar muito. Mas foi interessante. Acho que foi algo natural da minha parte, nada premeditado, que fez com que aquilo resultasse. E o programa continuou, o personagem continuou em programas sucessivos. Mas a determinada altura começo a achar que, enquanto ator ou apresentador de televisão, só tinha convites naquela “onda”. Há cerca de cinco anos voltei a receber um convite para voltar àquele personagem num canal de televisão.
E fazia sentido voltar?
Não faz. Porque as coisas têm a sua atualidade. Para mim não faz sentido. E acho que devemos sair de cena antes de as palmas acabarem. Percebes? Ainda com as palmas no alto. Não posso, de maneira nenhuma, obrigar as pessoas a olharem para mim e ver-me esgotar fórmulas. Neste país, a gente leva a fórmula a render até ao fim, até não poder mais. E nessa altura as pessoas já não nos podem ver à frente. Nunca gostei disso. E tive sempre esse cuidado de não desgastar a minha imagem, chegar a determinada altura e dizer: “Esta é a altura de parar, foi bom mas vamos partir para outra…”
Era complicado andar na rua? Era muitíssimo popular.
Era tramado. Era, era. Mas acabei por me habituar. Tentava evitar alguns lugares, por exemplo. Lembro-me de estar a almoçar com uns amigos num restaurante, numa esplanada, e ter uma família inteira a lado a olhar para mim. Isto foi ao pé do mar. E a certa altura vem uma onda e aquela família ficou toda encharcada. [Risos] Isso foi uma das coisas com as quais nunca me dei muito bem. Tudo o que fiz foi porque gostava. Mas não para ser famoso. Ser famoso “obriga-me” a ter muito cuidado com a maneira como me visto para sair à rua. Ou ter que ter muito cuidado com o que digo aqui e acolá. Não só nas entrevistas; na mesa ao lado pode estar alguém a ouvir. E achava que toda aquela situação não me fazia sentir eu próprio. Nós habituamo-nos a ser um personagem. Apesar de entregarmos o melhor que temos, apesar de aquilo ser tão natural, acaba sempre por ser um personagem — e o Lecas era um personagem.
Enquanto fazia esse personagem na televisão, fazia outros, mais “densos”, no teatro: o Guildenstern em “Hamlet”, o Mercúcio em “Romeu e Julieta”. O primeiro espetáculo encenado pelo Carlos Avillez. O segundo pelo João Lourenço.
Nunca me limitei, naquela altura, a fazer apenas o Lecas. Não podia. Mas tudo me divertia, o Lecas, o Guildenstern ou o Mercúcio. Agora, o palco foi uma coisa muito importante para mim em toda a minha vida. O Teatro Aberto, trabalhar com o João [Lourenço], a Irene [Cruz], a Vera San Payo de Lemos, com todos os atores que por lá passaram. Todos os encenadores com quem trabalhei, o Carlos Avillez, a Fernanda Lapa, o Norberto Barroca, tudo pessoas com quem aprendi imenso.
O seu percurso artístico passa pela dobragem, pelo teatro, pela televisão. Mas este percurso deve-se mais aos amigos que o inscreveram num concurso da RTP, o “Ecrã Mágico”, ou ao Artur Semedo, que o descobriu lá?
Acho que se deve a toda a gente. A toda a gente por onde passei e que por mim passou. Essa é a fase de construção. Deve-se às pessoas que enviaram os cupões para o tal concurso que referiu, há muitos anos, deve-se ao Artur Semedo, deve-se ao Nicolau Breyner, deve-se ao Ricardo Pais, deve-se ao João Lourenço e ao Teatro Aberto, deve-se a tantos nomes de pessoas ligadas à dobragem, ao teatro e à televisão. Toda a gente foi importante. Caso contrário, não estaria aqui hoje. Foram “degraus”.
Nesse primeiro “degrau”, o do “Ecrã Mágico”, tinha somente 16 anos. O concurso era apresentado pelo Rui Mendes, salvo erro. Qual foi a sua reação quando soube que o tinham inscrito? Era tímido, segundo sei.
Era tímido. Era “o” tímido… Era aquele miúdo que, ainda muito novo, queria ler os livros que havia lá em casa para adultos. Muitas vezes livros sobre guerra — sempre me interessou muito a Guerra Civil espanhola, porque os meus avós e o meu pai viveram a guerra em Espanha. Mas era o rapaz tímido, sim. Aquele rapaz que precisava de se soltar e, se calhar, foi por isso que acabei, com aquela ajuda, por ir àquele concurso da RTP. E depois, o que se seguiu, foi inesperado, completamente inesperado. Como tudo tem sido na minha vida: deixar fluir sem pensar muito nas coisas.
https://www.youtube.com/watch?v=AHH9fNjUOkA
Por falar, nem de propósito, em “inesperado”. Como é que surge, depois, o contacto com o Artur Semedo?
O Artur era júri do concurso. E acaba por me convidar para outro programa, o “Sheiks Com Cobertura” — um programa em que ele fazia parte da produção. Lembro-me que no primeiro sketch que fiz no programa, ainda com 16 anos, acabei ao colo do Júlio Isidro. [Risos] Portanto, o Júlio também me “lançou”. Ele era o apresentador do programa. Mas foi tudo muito engraçado e, como disse antes, muito inesperado. Era tudo diferente do que é hoje. E não só por ser a preto e branco — é verdade: ainda sou do preto e branco. Aquilo para mim era diferente e inesperado porque era novidade. E era tudo mais “simples” do que é hoje.
E não havia uma ambição, às vezes desmedida, pela fama, por aparecer. Hoje há.
Não havia, não. Fazia aquilo para me divertir. Todos nos divertíamos a fazer o programa.
E isso é algo que não se alterou: só aceita fazer o que o diverte. Certo?
Tem que ser. Só aceito fazer coisas que me divirtam e, acima de tudo, que me façam bem. Cheguei a determinada altura da minha vida e pensei: “Não! O dinheiro não é tudo…” E acaba por não nos faltar nada quando só aceitamos fazer o que nos faz bem.
Há algo de curioso no seu percurso. Começa por ter, precocemente, uma ligação à televisão, também à representação. Mas resolve estudar Línguas e Turismo quando chega a altura de ir para a faculdade. Porquê?
Mas antes de ir para o ISLA até estive em engenharia, no ISEL.
Exatamente. Mas nunca concluiu o curso.
Fiz um ano. Aquilo não tinha nada a ver comigo. Mas voltando ao “porquê”. A determinada altura comecei a pensar: “É melhor avançar com qualquer coisa, com um curso superior, visto que tudo o que é teatro e televisão pode ser muito bonito agora mas não dura para sempre…” Por acaso nem foi uma decisão muito forçada pela família; acabou por ser uma decisão minha. Era melhor ter um curso, uma base sólida. E, sobretudo, ter um curso que fosse conciliável com o teatro.
E acabou por, durante anos e anos, conciliar as duas coisas: turismo e teatro.
Conciliei, conciliei. Trabalhei em cruzeiros, por exemplo. Trabalhei no paquete Funchal. Fiz muito trabalho de visitas guiadas em Lisboa. E até cheguei a ir para fora do país — para trabalhar como correio de turismo.
Nos cruzeiros era mais cantor do que ator…
Cantava, sim. Tinha um espetáculo na última noite onde cantava, por exemplo, temas do Cole Porter. Nessa altura com uma orquestra, uma pequena orquestra, a do Eugénio Pepe — uma orquestra muito antiga, como antigo começo a ser eu. Também toquei, acompanhado ao piano, primeiro com o Sérgio António e, depois, com o João Paulo Soares. Isto durante muito tempo. Era uma forma de ganhar mais um dinheirinho. Quanto ao trabalho de guia-intérprete, esteve sempre ligado, a determinada altura, com o meu trabalho com público, com espectadores. Chegava a Alcobaça e, para os turistas verem como é que era a acústica no refeitório, como é que soava a voz, cantava e eles, turistas, achavam aquilo o máximo. Nunca me separei completamente destas duas coisas, a representação e o turismo. Por outro lado, quando estava a estudar [Línguas e Turismo], o que me pagava os estudos era trabalhar, à noite, no teatro, na Casa da Comédia. Mas há uma outra questão aqui…
Então?
Acho que um ator tem de saber um bocadinho de tudo. A parte do turismo, das línguas, sobretudo das línguas, ajudou-me mais tarde no teatro, conhecer as línguas ajudou-me, por exemplo, na preparação do meu trabalho enquanto ator.
No início dos anos noventa é convidado para trabalhar SIC. É um dos fundadores do canal.
Acho que a SIC já se esqueceu disso. [Pausa] Mas pronto… Apresentei um concurso [“Responder à Letra”]. Foi um ano interessante, onde aprendi bastante. E onde comecei a perceber o que é que ia acontecer em Portugal a partir daí.
E o que foi?
A partir daí tudo mudou. Com o aparecimento das televisões privadas tudo mudou. Teve coisas boas, extraordinárias, e coisas menos boas — como em tudo na vida. Agora, foi a partir do momento em que comecei a aperceber-me de que isto tudo estava a mudar que resolvi ir embora do país.
Sentia-se cansado?
Completamente.
E é então que vai para Itália. Quatro anos. Três a estudar, um quarto como professor.
Foi na Scuola Internazionale di Cinema, em Roma. Inicialmente fui com uma bolsa da Secretaria de Estado da Cultura.
Mas mesmo com uma bolsa a vida em Itália não deixava de ser muito dispendiosa para si. Então, sei que fez muitos outros trabalhos lá. Por exemplo?
Mas é que temos mesmo que fazer tudo e mais alguma coisa para além de estudar…
Trabalhou numa empresa de detergentes?
[Risos] Sim, sim.
Mas aquilo revelou-se quase um esquema em pirâmide, não é verdade?
[Risos] Não era bem. Porquê? Porque compras mas também tens que vender. Então, andava de porta em porta, em Roma, a vender aqueles produtos — não te vou dizer o nome da empresa porque acho que ainda existe. Mas, depois, percebi que não lucrava nada. As pessoas compravam-me aqueles detergentes e os detergentes, bastava utilizar uma gotinha, duravam um ano e meio. Ficava a “arder” com os detergentes — e sem os poder vender. [Risos] Até podia encontrar um cliente… mas só ao fim de ano e meio é que ele me voltava a pedir produtos. Mas quando fui para Roma logicamente que a bolsa não chegava para sobreviver.
Servia às mesas, por exemplo.
Tive que fazer várias coisas, sim. Um ator tem que fazer um pouco de tudo na vida. Tudo, tudo, tudo, tudo. Fico abismando como é que alguns colegas, quando não têm trabalho, dizem: “Ahhhhh, agora o que é que vou fazer?! Só tenho do teatro…” Não consigo perceber isso, desculpa. Nós temos duas mãos, não temos? É importante tocar muitos instrumentos. Ter estudado turismo, ter estudado línguas, ter feito a escola de cinema em Roma, ter dirigido atores em dobragem, ter vendido enciclopédias ou os detergentes, ter trabalhado em tantos sítios, tudo isso me fez a pessoa que sou hoje.
Alguma vez pensou não voltar a Portugal?
Foram anos muito importantes em Roma. E cheguei a ponderar ficar, sim. Mas entretanto decidi voltar, para ver como é que as coisas estavam por cá. Mas sempre com aquela vontade de lá voltar. Ainda hoje mantenho contacto com as pessoas que conheci lá. Mas deixei sempre fluir. Sempre.
Antes de voltar ainda esteve um ano em Londres.
Estive, estive. Mas isso já foi uma experiência maluca. [Risos] Fui para Londres porque queria estar na cidade. E trabalhei para a companhia de seguros Império…
Vendia seguros de funeral…
[Risos] Isso! Perguntava aos emigrantes como é que queriam os caixões quando morressem. Se queriam vir para Portugal, depois de morrerem, num camião TIR, se queriam vir numa limusine, de avião, se o caixão era de mogno ou de pinho. Aquilo era quase um episódio da série “Sete Palmos de Terra”! Eu de fatinho, de gravata, a ir a casa das pessoas, porta a porta com os catálogos, para perguntar como é que queriam ser enterradas. E as pessoas até reagiam bem — porque, antes, ligava e já tinha uma lista de pessoas que podiam estar interessadas. [Risos] Mas acho que é fixe agora rir-me disto. Já fiz algumas coisas que ninguém imagina.
Regressa a Portugal com 34 anos. E volta a trabalhar com o Nicolau.
Quando cheguei não tinha nada para fazer.
As portas fecharam-se depois de sair?
Não… [Longa pausa] Um dia encontrei o Nicolau e ele diz-me que vai fazer uma série: “Reformado e Mal Pago”. Perguntou se queria voltar a trabalhar com ele. Foi outra aprendizagem extraordinária na minha vida. Nós tínhamos texto para dez minutos de programa e o Nicolau dizia: “Meninos, arranjem-se, vamos ter que improvisar e o programa vai ter vinte e cinco minutos…” Aquilo era quase gravado live on tape. A certa ele dizia: “Chega, temos tempo a mais…” Era tal a forma como nos conhecíamos tão bem que se ao Nicolau saía uma “bucha”, atrás daquela “bucha” vinha toda uma situação criada por toda a gente. Era extraordinário.
https://www.youtube.com/watch?v=GlIhdxme944&t=114s
Insisto na pergunta anterior. Tendo estado cinco anos fora de Portugal, ao regressar as pessoas tinham-se esquecido de si?
Sim. Sim, sim. Tive foi de começar a aparecer mais. Porque muita gente ainda julgava que continuava fora. Já cá estava há dois, três anos, e as pessoas ainda julgavam que continuava fora. Mas voltando ao “Reformado e Mal Pago”. Foi um grande privilégio trabalhar com o Nicolau, sim, mas também com a Florbela Queiróz — que, quanto a mim, a Florbela e a Fernanda Borsatti foram as grandes atrizes de comédia que este país teve. Há mais. Ainda há hoje em dia — acho a Maria Rueff uma excelente atriz de comédia. Mas aqueles registos de comédia, que a Borsatti tinha e que a Florbela ainda tem, eram uma coisa extraordinária.
Duas atrizes, elas sim, esquecidas a certa altura, atrizes para quem as portas se fecharam. Algum dia temeu que isso lhe acontecesse?
Não vou particularizar os casos delas. Mas falo daquilo que sinto e daquilo que poderei vir a sentir. A minha ideia, neste momento, é que… [longa pausa] se estou bem comigo próprio, estou bem de qualquer maneira. No teatro, a ensinar, a dirigir atores, em dobragens, o que quer que seja. Acho que antigamente nós dávamos mais valor a estes atores mais experientes. E havia mais respeito. Quando trabalhei com a Amélia Rey Colaço tratava-a por “senhora dona Amélia”. Hoje em dia isto pode parecer piroso para a maioria das pessoas. Não era; era respeito. Há muitos atores, mais velhos, que deveriam ser mais bem tratados, porque ainda cá estão — e têm muito para dar e para ensinar aos atores mais novos.
Há pouco dizia que resolveu deixar de fazer programas infantis e juvenis porque estava cansado de ser rotulado àquele registo, ao Lecas. Mas a verdade é que, quando volta a Portugal, e depois de trabalhar com o Nicolau, apresenta o “Infantaria” — que é um programa infantil. Porquê?
É engraçado. Mas não fiz nada por isso. Estive sempre ligado a isso, quer nesses programas de televisão, quer nas dobragens de desenhos animados — também para um público infantil. Mas não fiz nada por isso.
Pouca gente sabe que estudou também medicina tradicional chinesa — e exerce. Até porque é recente…
É recente. Entrei há seis ou sete anos. Não é muito tempo.
Porque é que se interessou?
Acho que podia ter sido um ótimo médico. [Risos] A determinada altura achei que a medicina tradicional chinesa podia ser interessante, visto que o que está na base das doenças na medicina tradicional chinesa, das patologias internas, é o bloqueio das emoções. Cada órgão está ligado a uma emoção. A partir do momento em que já sabia o que era estar em palco e já sabia o que era sentir as emoções, já tinha estudado cinema — e visto as emoções do outro lado da câmara –, agora era a altura de estudar o que é que as emoções em termos orgânicos provocam no ator, no ser humano, seja ele de que profissão for. Foi mais por aí. Quando cheguei à medicina tradicional chinesa pensei inicialmente: “Isto é fantástico. Vou deixar tudo o que é teatro e dobragem para trás, vou-me dedicar só a isto…” Só que, depois, comecei a aperceber-me que estava tudo ligado. Aquilo era uma ferramenta extraordinária para trabalhar com os atores.
Mas principalmente consigo.
Sim! É precisamente isso. Antes de ponturar alguém pela primeira vez, tive que ponturar a mim próprio. Para sentir em mim. As práticas respiratórias, por exemplo, ajudaram-me muito. E continuam a ajudar — principalmente a prática respiratória do chi kung, que é a que normalmente uso nas formações que dou. E é muito interessante ver como é que isto tudo, depois, pode ajudar a melhorar a voz de uma pessoa, como é que a tua voz se pode limpar, o que é que te está aí a bloquear. Às vezes as pessoas têm coisas dentro delas, tão enraizadas, que é preciso se calhar ir lá atrás, às origens, para perceber onde é que está o motivo.
Na medicina tradicional chinesa trabalha sobretudo com atores. Ou alunos. Mas também tem trabalhado com pacientes — se é que posso dizer assim — mais improváveis…
Já dei formação a políticos, por exemplo. E é uma experiência fantástica. É sobretudo formação na área da voz, da respiração, postura, desbloqueio de emoções. Todo o trabalho de articulação, oralidade, oratória. Sei que quer saber quem são, não é? [Risos]
Quero.
Mas não poderei dizer nomes — porque acabam por ser pacientes. É segredo. Mas são pessoas extraordinárias, que me têm ajudado imenso a perceber o ser humano. O político é alguém que normalmente vemos como distante. Mas, no dia a a dia, são as pessoas mais simples que possas imaginar. E antes da sessão começar, muitas vezes — e tal como nas dobragens com atores — eles têm que desabafar. E desabafam coisas connosco, de vida, que nos fazem sentir muito bem naquilo que estamos a fazer. Não interessa o dinheiro que possas ganhar ou não quando estás a fazer isto; interessa o prazer que retiras daquilo que estás a fazer. Mas isto dá trabalho! É preciso fazer trabalho de campo com estas pessoas. Com políticos, por exemplo, é preciso ir ver comícios, é preciso ver debates televisivos, para ver o que estão a fazer de melhor e aquilo que ainda há a trabalhar. E não é um trabalho que se faça em cinco, seis, sete, dez sessões. É um trabalho demorado. Lembro-me que, no Instituto Camões, há dois, três anos, fui convidado pelo Parlamento Europeu para falar sobre o trabalho da postura, da respiração, sobre as emoções.
Com os intérpretes do Parlamento Europeu. Certo?
Certo. E foi muito interessante ver como as pessoas estavam disponíveis. Como reagiram quando lhes expliquei o que tinham de de fazer: “Agora, vamos desapertar a gravata, retirar a gravata, desapertar o cinto, retirar os sapatos…” [Risos] E vês as pessoas todas a respeitar e a perceber, por elas próprias, como é que o seu próprio corpo funciona. E o que é que está ou não está a correr bem. E lembro-me de ver a sala, com suecos, irlandeses, espanhóis, franceses, aquele pessoal todo reunido, de olhos fechados, em posição de “árvore”, a respirar, só a respirar. E gera-se um silêncio que “fala”. E depois, no fim, tens as pessoas todas com um sorriso.
Agora faz essencialmente dobragens. Até nisso o Teatro Aberto e o João Lourenço têm várias curiosidades na sua carreira. A primeira vez que tenta trabalhar em dobragem foi com o João Loureço e o João Perry — outro ator da “casa”. Mas não correu bem…
Não trabalho com eles, não. [Risos] Fiz um teste para dobrar com eles, isso sim, e eles disseram que não tinha jeito nenhum! [Risos] “Oh Zé, não dá, isto não é para ti…” E aceitei. Comecei a fazer dobragens mais tarde porque o José Fonseca e Costa me convida para dobrar um personagem no filme “Balada da Praia dos Cães”, para dobrar um ator estrangeiro, um espanhol — a personagem chamava-se Fontenova. Fui muito inseguro, disse-lhe que tinha feito um teste e que o João Lourenço e o João Perry não tinham gostado nada. Mas a coisa até resultou. A dobragem com o Zé correu bem. E é nessa altura que o Perry vê o filme no antigo cinema Quarteto, fica à espera dos crédito finais e vê que fui eu que dobrei o tal Fontenova. “Então, mas fazes um teste como aquele que fizeste connosco e depois vais fazer um filme do Fonseca e Costa?!” E pronto, comecei a dobrar com o Perry também.
Quando é que começa realmente a fazer dobragens? As de desenhos animados, em cinema.
Em termos de direção de atores, começo a fazer direção em 1996 ou 1997. Isto ainda antes do “Infataria”, portanto, que foi em 2000. O “Infantaria” foi outra aposta da RTP. Curiosamente, a determinada altura o programa acaba porque achavam, a direção achava, que aquele programa não era direcionado para o público do canal. E o programa continua, com o Luís Aleluia, mas com um formato mais infantil. Acho que transformei aquilo num programa mais juvenil — a ideia original era essa –, tinha a DJ do Lux a pôr música ao vivo [risos], levava os grupos rock da altura, cheguei a levar pessoas que nunca tinham ido a televisão — e que se escusavam de ir a televisão –, acho que foi a primeira vez que os filhos do D. Duarte apareceram em televisão, fiz entrevistas muito interessantes com jornalistas, cantores, atores, alguns políticos, foi engraçado levar estas pessoas a um contacto com os mais novos — para não os vermos sempre em cima de um pedestal.
Quando é que as dobragens em Portugal tiveram o seu “click”? Com o Rei Leão, em 1994?
É o Rei Leão, sim. Foi uma grande, grande aposta da Disney. Se aquela dobragem resultasse, se o público preferisse a dobragem à versão original em inglês, Portugal poderia seguir em frente com as dobragens. Se não resultasse… acabou. Havia sítios em toda a Europa onde não resultava. O público via filmes dobrados e fugia a sete pés do cinema. A nossa realidade era diferente. Havia dobragens, há muitos anos, em séries de televisão.
Mas quase todas em português do Brasil…
Sim, sim. Mas a partir daí, aquilo foi um sucesso, um êxito. Não estive ligado àquela dobragem em concreto. Mas posso dizer que havia lá uma coisa extremamente importante e que explicava a qualidade: eram atores que dobravam. Enquanto nos outros países se utilizavam dobradores, nós éramos atores. E os atores entregaram àquele trabalho uma outra “força”. E a dobragem de desenhos animados começou a ganhar um grande peso — e tem um grande peso hoje em dia.
Naquela altura era muito diferente. Hoje o ator grava quase sempre sozinho em estúdio. Na altura era tudo gravado em “pescadinha”, com vários atores ao mesmo tempo. Se corresse mal, se alguém se enganasse, voltava tudo ao início.
[Risos] Era a “pescadinha”, sim. Não havia o digital como há hoje, em que podes andar três frames para trás, três frames para a frente, “encolhe aqui”, “encolhe acolá”. Ou atinavas ou voltavas ao início. Aquilo era gravado à cena. Podem entrar quatro, cinco, sete atores em cena. E só quando os sete estivessem com um trabalho certinho naquelas boquinhas, tudo no sítio, é que o take estava finalizado.
Dá-lhe muito gozo fazer dobragens e dirigir atores em dobragens. Mesmo sendo muito trabalhoso. Porquê?
Tenho imenso prazer em dirigir atores porque gosto de pessoas. É isso. E gosto de retirar o melhor delas. E gosto de trabalhar as emoções deles. Ver o que é que não está bem, para procurar ajudar a equilibrar. É muito giro o trabalho hoje em dia nas dobragens, porque normalmente tenho que dar sempre cinco, dez minutos de conversa antes de começar a dobragem com alguém. Esses cinco, dez minutos servem um bocadinho para a pessoa relaxar daquilo que traz da rua, da noite mal dormida, da constipação que ainda não está totalmente curada, do que quer que seja. Depois de a pessoa deitar para fora um certo número de coisas, então, aí sim, vamos trabalhar a sério. Tenho colegas que me contam coisas extraordinárias da vida deles naquele bocadinho. E acho que sou um felizardo por ter a confiança destas pessoas todas com quem trabalho. Entendes? Sempre foi interessante fazer este trabalho. Mas a partir do momento em que comecei a estudar a medicina tradicional chinesa, tornou-se ainda mais interessante. Porque aí comecei a poder ajudar as pessoas em questões mais orgânicas, sugerindo-lhes como desbloquear algumas emoções que poderão estar a travar a voz.
Voltando atrás e aos palcos. A estreia em teatro acontece com o Ricardo Pais, num antigo pavilhão da Universidade Nova?
Exatamente. Mas antes do Ricardo, e depois do tal concurso da RTP, surge um casting para um ópera rock no Parque Mayer. Nesse casting havia trezentos-e-tal candidatos — e eles só escolheriam dezanove. No júri estavam pessoas que se vieram a tornar, mais tarde, grandes amigos meus, como é o caso no Nicolau Breyner. Mas também estava lá a Simone de Oliveira, o Tilo Krassmann, o Vítor Mamede. Fiquei aprovado para fazer o espetáculo mas o espetáculo acabou por não se fazer. No entanto, aquelas pessoas acabaram por ficar registadas na mente de quem compunha o júri — e uma delas fui eu. É nessa altura que surge o programa “Eu Show Nico”. É a esse casting que o Nicolau vai buscar algumas pessoas para fazer o programa. E vai-me buscar para fazer de filho dele. É curioso: a partir daí, quase tudo o que eu fazia com o Nicolau era para fazer de filho dele.
Mas a vossa relação pessoal também era muito assim…
Era, era. E é curioso que, a determinada altura, no fim dos dias do Nicolau aqui na terra, acabei por ser a primeira pessoa a dirigi-lo em dobragem. Ele foi a primeira pessoa a dirigir-me na representação; eu fui a primeira pessoa a dirigi-lo na drobragem.
No filme de animação “Gru – O Maldisposto”.
Exatamente. O Nicolau tinha uma característica muito interessante. Ele olhava para o texto, decorava-o, olhava para a imagem, para os batimentos da boca dos desenhos animados, decorava-os, nunca tinha feito aquilo e aquilo saía tudo perfeito. Quando ele chegou a primeiro vez ao estúdio disse-me: “Tens que me dizer como é que isto se faz porque não sei…” E respondi-lhe: “Curte, não penses muito, aquilo que tu fazes naturalmente chega e sobra para chegares lá!” E resultou. Às vezes ele curtia tanto que acabava por me alterar o texto todo, improvisava. [Risos] E o texto já tinha sido aprovado, não podia ter alterações nem improvisos. “Oh Nicolau, não é isso que está escrito no texto…”, dizia-lhe. Ele dizia por outras palavras aquilo que se pretendia e a verdade é que encaixava tudo. Mas voltando ao “Eu Show Nico”. É depois desse programa que o Ricardo Pais me convida, sim.
Estamos a falar da peça “Terceiro Mundo”.
Sim, sim. Foi a minha primeira experiência em teatro. Os meus “padrinhos” de cena foram o Nuno Carinhas e a Teresa Madruga. Nesse espetáculo, além do Ricardo como encenador, estava o Joaquim Leitão, que fazia a parte vídeo do espetáculo. E dentro do vídeo participavam o João Perry e a Fernanda Alves. Foi uma aprendizagem muito interessante.
Foi uma segunda “faculdade”, portanto.
Foi a minha primeira grande escola. Não sabia nada. [Pausa] Como acho sempre que não sei nada.
Mas isso não é insegurança. Ou é?
Não, não é. É necessidade de aprender. E aquele espetáculo foi, de facto, o grande pontapé e aquilo que me deu vontade de seguir em frente, ser ator.
Depois do espetáculo com o Ricardo Pais, ter trabalhado na Casa da Comédia foi, acredito, outra grande aprendizagem para si. E trabalhou com uma geração muito talentosa de atores.
O primeiro espetáculo que fiz na Casa da Comédia foi “A Marquesa de Sade”, com encenação do Filipe La Féria. Era um tempo extraordinário, foi um tempo extraordinário de teatro novo, de descoberta. Era o início dos anos oitenta. E nesse primeiro espetáculo posso dizer que contracenei com o Durval Lucena, o Rogério Samora, o José Wallenstein, a Lucinda Loureiro, o João D’Ávila, o Juvenal Garcez… Éramos todos uns “miúdos”. Depois fiz o “Marlow”, com o Fernando Gomes, a Maria Vieira, o Luigi Abbondanza, a Sara Lima. Foi muito, muito interessante. Sabe: nós “vivíamos” na Casa da Comédia, quase que se dormia lá, ensaiávamos o dia todo, fazíamos espetáculos à noite. Curiosamente, muitas das vezes ganhávamos à bilheteira e ganhávamos mais do que ganhamos hoje. [Risos]
E o cansaço?
Dava-se por ele. Mas não se dava importância ao cansaço. Acho que hoje em dia as pessoas se cansam com muita facilidade. Anda sempre tudo muito cansado, muito cansado. [Risos] Naquele tempo era tudo novo, era tudo descoberta, tudo muito autêntico. E as pessoas eram escolhidas para os trabalhos, mais do que hoje, por aquilo que valiam. Não havia tantos “likes”, tanto Instagram, tanto Facebook, hoje és tanto melhor quanto mais seguidores tiveres nas redes sociais. Não havia “likes” em lado absolutamente nenhum — e não interessavam para nada. Hoje em dia há coisas que não influíam na altura.
Falou do José Fonseca e Costa. Também fez cinema com o Luís Filipe Costa e com o João Botelho, por exemplo. Aliás, estudou realização em Roma.
Não fiz muito cinema mas fiz algum. Fiz com eles, sim, e com o Leandro Ferreira. E fiz quando estava em Roma. O cinema foi sempre qualquer coisa que gostava de ter feito mais e não fiz. É curioso que depois de ter estudado argumento e realização para cinema, numa escola de cinema, nunca realizei nada.
No outro dia entrevistei a Cristina Vidal, a ponto do D. Maria II…
Oh, a Cristina… Gosto tanto dela!
Quando lhe perguntei por um espetáculo memorável, falou-me imediatamente do “Passa Por Mim no Rossio” — e explicou que nunca mais se fará um espetáculo daquela imponência em Portugal. Não há orçamento. Foi um dos que participou nesse espetáculo…
Tive o privilégio de participar nesse espetáculo e tive o privilégio de trabalhar com a Cristina. Esse espetáculo tinha quarenta-e-tal pessoas. Acho que o “Passa Por Mim no Rossio” foi uma experiência de vida. A todos os níveis.
E até recebeu um prémio pelo seu trabalho nesse espetáculo: o de “Melhor Interpretação Masculina”.
Recebi. Essa coisa dos prémios é sempre muito subjectiva. Não é que não ligue; receber um prémio é bom. Mas sempre que recebi um prémio, e isso já aconteceu com outros colegas, estive um ano ou dois a seguir sem fazer nada. As pessoas parece que têm medo de nos convidar porque recebemos um prémio. Agora, esse trabalho foi um trabalho muito vivido. Foi um trabalho onde fiz muitos e grandes amigos. Não foi brincadeira fazer esse espetáculo; foi duro. Foi o meu último espetáculo com o Filipe [La Féria] e, não entrando em detalhes, vivi de tudo e mais alguma coisa. Mas fiz grandes amigos, como a Simone de Oliveira, a Cristina Vidal, Henriqueta Maia, Fernanda Borsatti, a Lurdes Norberto, o António Anjos, Eduardo Sampaio, Varela Silva, o Ruy de Carvalho e a Eunice. O João Perry. A Catarina Avelar. Tanta gente.
Sentia-se “pequeno” — e isto não é depreciativo — no meio de todo aquele elenco que acabou de enumerar?
É curioso perguntar isso… [Pausa] No início sentia-me, sim. Há uma fase da nossa vida, no começo, em que nos sentimos sempre inferiores porque temos menos experiência do que os outros — o que é natural. E olhamos, observamos, e o que queremos é absorver tudo aquilo que eles nos podem dar. Só através da observação — e, às vezes, eles nem sabem que nos estão a dar tanto. A partir de determinada altura, quando te começas a assumir como ator — houve muitos anos em que não dizia que era ator –, a determinada altura quando já demonstraste, já trabalhaste, as pessoas já viram o que sabes fazer, a determinada altura, no “Passa Por Mim no Rossio”, acabei por me sentir um igual. Não só porque era isso que sentia, mas porque os outros também me fizeram sentir dessa maneira. Ainda para mais, quando entro no espetáculo, já tinha havido um outro ator que tinha feito ensaios para aquele personagem mas depois não continuou. Então, entrei a meio. E tive todo este elenco, toda a gente, a ajudar-me muito. Para que eu, que tinha menos tempo de ensaios, apanhasse o ritmo depressa. E isso foi extraordinário.
O que é que ainda gostaria de fazer? Em televisão, teatro, cinema…
Vou deixar fluir. Como sempre faço. Tem acontecido uma coisa muito engraçada na minha vida. Chama-lhe superstição, talvez… Há momentos em que dou por mim a dizer: “Um dia vou fazer isto…” E nunca mais penso no assunto. Passado uns tempos, na altura própria, acabo sempre por fazer aquilo que imaginei que faria. Foi assim que comecei a fazer teatro. Um dia vou ao teatro da Trindade ver o “Ninguém”, do Ricardo Pais, fiquei no teatro até ao final, no final descia uma cortina de ferro, tinha catorze, quinze anos, foi numa excursão de escola, no Liceu de Oeiras, fiquei sentado à frenre daquele palco, a olhar para aquela cortina de ferro, e vem o arrumador dizer-me que tinha que sair. Antes de me levantar, disse: “Um dia vou fazer teatro com este encenador…” Na altura nunca tinha feito nada. Eis se não quando, recebo um telefonema do Ricardo Pais, passados uns anos, a convidar-me para trabalhar com ele. Por isso, é preciso ter cuidado com o que desejo. [Risos]