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“O europeísmo não é benigno”, diz José Manuel Pureza, dirigente do Bloco de Esquerda e professor universitário especialista em Relações Internacionais. Numa entrevista ao Observador realizada esta quarta-feira (na véspera do referendo britânico) o vice-presidente da Assembleia da República afirma que “a Europa está afogada no euro” e que votaria para Portugal sair da moeda única. O Tratado Orçamental e a União Europeia serão temas centrais na Convenção do Bloco de Esquerda que decorre este fim de semana. Pureza reconhece que Bruxelas pode ditar o fim da “geringonça”: “Se a tensão com UE se torna mais forte, teremos de fazer escolhas.” No futuro, o Bloco até “aceita integrar um Governo. O essencial é o programa.”
Ponto mais “incipiente” da governação é a “dívida”
“Quem se aproxima do PS para governar com ele abdica de responder ao principal desafio de desobedecer às imposições da União Europeia”. Isto era o que dizia a moção de Catarina Martins em 2014. É assim?
Creio que esse texto coloca uma questão importante: como é possível criar condições para que haja uma mudança política em Portugal? Há dois anos, o PS não teria sido capaz de criar as condições para uma governação como aquela que temos hoje.
O mesmo texto dizia há dois anos que “não havia uma posição intermédia”. Hoje há uma posição mais gradualista do BE?
Com toda a franqueza, não é nada disso. O Bloco apresentou-se a eleições numa posição da maior força possível, com a maior proposta autónoma possível, com a maior disponibilidade possível para criar toda a tensão com as orientações prevalecentes no PS, sem nunca deixar de estar aberto a todas as posições de diálogo. As duas coisas não são incompatíveis. Não há nenhum gradualismo, não há nenhuma posição intermédia.
O Bloco tornou-se um partido mais pragmático?
Sempre fomos um partido pragmático. É muito curioso que aqueles que nos acusaram de sermos um partido idealista estejam hoje a dizer: “Que bom era o Bloco de Esquerda quando defendia causas fraturantes e era idealista”. Essa saudade é muito falsa. Mostra que o Bloco, ao assumir responsabilidades de apoio a um Governo, desempenha uma posição mais influente sobre a política do país. O pragmatismo nunca esteve ausente da nossa orientação política.
Quando recusaram reuniram-se com troika, em 2011, não houve aí uma certa falta de pragmatismo?
Creio que os tempos que estamos a viver mostram como teria sido totalmente improcedente reunir com a troika. Poderá eventualmente ter havido aí um gesto mal pensado, do ponto de vista do seu impacto no domínio do simbólico, mas acho que não teria nenhum efeito pragmático. Na verdade, uma interlocução com a troika teria sido uma interlocução no domínio da aparência.
Havia outra frase na moção de 2014 a defender que “a integração da esquerda no campo da alternância” nunca deu bom resultado nos países onde isso aconteceu… Portugal neste momento é a exceção?
O que está a ser ensaiado em Portugal é o início de um percurso que passa não pela alternância mas pela alternativa. Estamos apenas no início de um caminho, ainda bastante tímido em bastantes aspetos: recuperação de rendimentos, defesa de uma posição forte de controlo público do sistema bancário, uma política que vá no sentido de recuperar fôlego para haver investimento e criar emprego. Isso não é alternância com a mesma política. É claramente o início de uma alternativa. Uma alternativa ainda incipiente em determinados aspetos…
Em que aspetos é mais incipiente?
É incipiente desde logo num aspeto essencial: na criação de condições para que haja investimento no sentido do reforço do Estado Social e no sentido do reforço do emprego. Os passos dados foram muito importantes. Mas olhamos para a frente e verificamos que é absolutamente necessário que haja muito maior respiração da economia nacional para que haja investimento criador de emprego. E desse ponto de vista coloca-se uma questão essencial: a dívida. Nós estamos permanentemente a bater contra um muro de betão que é a necessidade de afetar uma grande parte dos recursos da nossa economia ao pagamento do serviço da dívida.
Esse é o ponto de cisão entre PS e Bloco?
Sempre o assinalámos. Sabemos que há um caminho que está a ser feito, desde logo no grupo de trabalho cujas propostas serão apresentadas daqui a um mês. Esperamos que possam abrir algum espaço para que esta questão possa vir a ser equacionada. Precisamos como de pão para a boca de ter um reforço das dotações orçamentais.
Há condições na Europa para que essa discussão se possa colocar e colher o apoio dos outros parceiros europeus?
Não sei exatamente o que vai acontecer em alguns países muito importantes, como a Espanha, por exemplo. Estou convencido de que as coisas não ficarão como estão agora. Parece evidente que a União Económica e Monetária está afogada no seu próprio instrumento definidor, o Euro. Um instrumento que se revela hoje de uma perversidade, de incapacidade de responder às questões essenciais e, mais do que isso, de condenação das economias dos Estados-membros a uma letargia de depressão e de estagnação muito grande. Por isso, mais cedo do que mais tarde, esta questão tem de ser colocada.
“Votaria sim” pela saída do euro
A moção de Catarina Martins defende a saída do euro com esta frase: “Uma esquerda comprometida com a desobediência à austeridade e com a desvinculação do Tratado Orçamental tem de estar mandatada e preparada para a restauração de todas as opções soberanas essenciais ao respeito pela democracia do país”. Existem condições para Portugal sobreviver economicamente fora do euro?
Vamos ter de fazer uma escolha. Não é possível esperar que haja uma harmonia cósmica que nos permita resolver o problema. Recordo uma frase muito interessante de António Costa no último Congresso socialista. Uma frase que encerra uma reflexão essencial. Dizia António Costa: “É cada vez mais difícil não ser crítico da União Europeia.” Depois acrescentava: “Não é possível ser socialista fora da União Europeia”. Concordo totalmente com a primeira parte, discordo totalmente com a segunda. Parece-me absolutamente claro que não é possível ser socialista neste contexto institucional, jurídico, político, económico e ideológico na Europa.
E é possível sê-lo fora? Se houvesse um referendo amanhã sobre a saída de Portugal do euro votaria sim?
Votaria sim.
Quanto custaria aos portugueses essa saída do euro?
Vamos lá fazer contas certas: quanto é que tem vindo a custar a permanência no euro, nas condições em que ele existe? Quando fazemos uma pergunta, temos de fazer as perguntas todas. Queremos fazer aquilo que é melhor para as pessoas.
Mas quais seriam as capacidades de sobrevivência de Portugal, um pequeno país, uma economia dependente, se saísse do euro amanhã. Não seria catastrófico?
O que temos conseguido senão uma catástrofe? O que precisamos é de nos preparamos para todos os cenários.
Por que é que os gregos não saíram?
Essa foi uma decisão do Governo e do povo grego e a verdade é que as consequências não são propriamente muito animadoras. E ainda haverá mais consequências, por exemplo, em matéria de sistema de pensões. O exemplo grego dá-nos razão.
Mas o Governo do Syriza entendeu que era menos mau ficar do que a incerteza de sair…
Foi uma escolha. Não concordo com essa escolha porque olho para as consequências e verifico que as medidas de austeridade adicional vieram sovar ainda mais aquilo que é uma economia e uma população totalmente esfacelada por sucessivas ondas de austeridade. O caso grego, se mostra alguma coisa, é que a opção de ficar nas condições em que a União Europeia existe é uma opção que tem custos imensos, sobretudo para economia periféricas. A União Europeia tornou-se, nos últimos anos, num espaço punitivo e disciplinar. E é diante disto que temos de fazer uma escolha. Depois temos essa coisa extraordinária que é: “Sanções à França não, porque a França é a França.” Hoje, o descaramento das autoridades europeias perdeu todo o tipo de limites. É diante deste panorama concreto que temos de fazer uma escolha. Não temos fazer uma escolha entre um europeísmo benigno, sonhado, projetado nos livros. Temos de fazer uma escolha diante de um europeísmo concreto.
Se todos pensassem assim acabava a União Europeia…
Não vai ser Portugal ou saída de Portugal que vai destruir a União Europeia.
Não há solução para a União Europeia?
Enquanto estiver dentro deste tipo de orientação, não vejo que haja correlação de forças para mudar. Creio que esta União Europeia deixou de ter qualquer tipo de solução.
Não tem esperança que a União Europeia possa melhorar?
Não vejo nenhuma condição para isso. Depois da assinatura do acordo entre a União Europeia e a Turquia em matéria de refugiados deixou de haver uma réstia de esperança e pingo de vergonha dentro da nomenclatura de Bruxelas.
Acredita que a maior fragilidade da chamada “geringonça” pode ser exatamente a questão europeia?
Todas as forças envolvidas neste processo político sabem que isso criará tensão com a chamada ortodoxia europeia. Aliás, tem vindo a criar, aqui e além. A Comissão Europeia e o Eurogrupo — o inominável presidente do Eurogrupo –, têm dado conta do nervosismo que isso causa a alguns comissários e até a alguns Estados-membros. Constato que todas as forças envolvidas neste processo têm feito um caminho de convergência nestes momentos de tensão. Quero acreditar que o Bloco se empenhará no sentido em que haja um esforço continuado de convergência entre as forças políticas envolvidas neste processo para que em momentos de maior confronto, de maior tensão com a União Europeia, haja uma posição forte que defenda os direitos das pessoas porque foi para isso que este Governo foi criado.
E se a certa altura isso não for possível? Se a certa altura as imposições forem tão fortes que a negociação seja mais complicada?
Tem sido possível responder à tensão com serenidade e com defesa dos pontos essenciais. Não há razão para que isso deixe de acontecer. A Comissão Europeia já disse que isto de subir o salário mínimo nacional era um pecado mortal. E não foi por isso que essa trajetória foi abandonada. Todas as forças envolvidas na “geringonça” têm dito que não será abandonado este caminho. Mas vamos admitir que essa tensão se torna mais forte. Aí, teremos de fazer escolhas. Não acredito com toda a franqueza que essa firmeza possa desaparecer. Mais: acredito que diante das situações que venham eventualmente a ser criadas pela Comissão ou pelas autoridades europeias exista uma posição cada vez mais forte do Governo português. Acredito nisso.
O que é que encontraram neste António Costa que não encontravam antes do PS? O PS mudou? Deixou de governar à direita, como acusavam antes?
Se olhasse só a isso, diria: não, o PS não está agora a governar à direita. O que há de novo nesta experiência não é uma soma aritmética. É um processo de interlocução intensíssimo entre forças políticas situadas à esquerda que querem cumprir a Constituição e que não se poupam a esforços para que isso seja feito. Esses esforços de interlocução não existiam anteriormente.
Bloco quer ser o CDS do PS? “Recusamos esse caminho”
O Bloco de Esquerda quer estar para o PS como o CDS está para o PSD?
Não queremos ser isso. Recusamos esse caminho. Assumimos todas as nossas responsabilidades. Somos em alguma medida poder. Estamos a desempenhar uma função importantíssima. Somos responsáveis — em questões essenciais onde se jogam os direitos das pessoas — por criar toda a tensão necessária para que a interlocução com as forças envolvidas neste processo resulte em alargar o espaço da democracia.
Perguntas rápidas
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Quem foi o melhor coordenador do Bloco? Louçã ou Catarina
Qualquer deles foi um excelente coordenador, com personalidades diferentes e contextos diferentes. Não cairei na ratoeira de dizer um ou outro. O BE deve muito a ambos. O melhor coordenador do Bloco é o que está para vir.
Quem é o melhor poeta: Manuel Gusmão ou Herberto Hélder?
Dois excelentes poetas.
A direita é mais católica do que a esquerda?
Não.
Um futebolista pode atirar microfones de jornalistas para um lago?
Um futebolista pode marcar golos.
Dois livros para este verão?
Gostava de responder que são os que vier a escrever. Mas diria estes: o “Homem que gostava de cães”, de Leonardo Padura, e um de Bolaño.
Que dois livros está a escrever?
Estou a escrever há muito tempo um livro sobre “Conceitos teóricos de Paz” e tenho há muito tempo prometido para mim próprio um livro de natureza didática sobre as áreas que trabalho na universidade.
Duas bandas para ver num festival.
Poderiam ser os Beatles e os Rolling Stones, mas acho que vai ser difícil.
O fascismo teve origem no marxismo?
Não sou um apreciador do escritor José Rodrigues dos Santos.
Era exatamente esse o argumento utilizado por Paulo Portas nas campanhas: “Deem-me força” para influenciar a governação do PSD…”
A diferença é que essa frase de Paulo Portas é uma frase que depois não pode ser levada a sério. Porque se ele diz: “Deem-nos toda a força, mas se não nos derem grande força lá estaremos também”. Quanto maior for a força que o Bloco de Esquerda tiver, maior é a certeza das pessoas de que a recuperação dos direitos, a recuperação dos rendimentos, o reforço dos serviços públicos, dos direitos sociais, do Estado Social, será maior. E a prova está feita. Se o Bloco de Esquerda não tivesse tido a votação que teve, teria havido descongelamento das pensões? Seguramente não.
Acha que o PS não o faria?
O PS tinha sido no seu programa eleitoral congelamento das pensões. O PS cumpriria o seu programa. Foi a votação do Bloco de Esquerda que determinou esta mudança política.
Mas não há aqui uma certa esquizofrenia ? O Bloco acaba por apoiar um Governo cujos pressupostos são contrários àquilo que o Bloco defende… No fundo, o Bloco é contra mas aceita… Faz lembrar aquele famoso sketch do professor Marcelo Rebelo de Sousa sobre o aborto…
Não falemos da rábula… Porque isto não é uma rábula. O Bloco de Esquerda celebrou um acordo com o PS tendo em vista um processo concreto, porque as pessoas exigem que demos resposta a estas questões essenciais. Sabemos que há um conjunto de matérias que não foram incluídas no acordo…
Mas quanto tempo pode durar esse acordo?
Nós já o dissemos. Isto dura o tempo em que se verificar um caminho continuado de recuperação de rendimentos.
Não há o risco dessa agenda se esgotar?
Isso supõe uma visão muito estanque, muito imobilista da política. Sabemos que este processo gera uma dinâmica própria, em que não há marcha-atrás.
O Bloco pode integrar um próximo Governo?
Tudo depende daquilo que for a vontade das pessoas que forem a eleições. As pessoas que deram 10% ao Bloco disseram: “Nós queremos que tenham força, mas não vos damos força para ser Governo'”.
Em que circunstâncias aceitaria integrar um Governo do PS?
O Bloco aceitará integrar um Governo que esteja apontado a um programa concreto. A questão essencial é o programa. Não é ser do PS, azuis, vermelhos ou verdes. O Bloco aceitará participar numa experiência governativa. Não temos problemas com as experiências governativas. Isso é um mito que se criou à volta do Bloco. Agora, é evidente que há uma questão prévia: o programa político tem de ser programa onde as nossas questões essenciais estejam efetivamente contempladas. E para isso é preciso ter força.
Como é que se injetam 5 mil milhões de euros na Caixa Geral de Depósitos sem onerar os contribuintes mais tarde?
É curioso que essa dúvida exista depois das injeções massivas de dinheiro que tivemos de fazer, não para recapitalizar um banco público, mas para salvar bancos privados.
O Bloco sempre criticou essas injeções de capital…
Exatamente. Mas aqui estamos a tratar de uma questão completamente diferente: de criar condições para que a Caixa possa ser aquilo que nós entendemos que deve ser e que o país exige que seja. A instituição de referência do ponto de vista do controlo público do sistema bancário.
No que se refere à CGD já aceita que se possam onerar os contribuintes?
Não sei como está programado o financiamento da operação. Agora, há uma questão essencial: manter a Caixa como instituição pública e polo de disciplina de um sistema bancário que tem estado num caminho de tripa-forra que ninguém pode aceitar. Essa é questão essencial. Tudo o mais são para já conjeturas. Vejo com muita preocupação o tipo de ruído que se vem fazendo no sentido de dizer “bom, a Caixa não carece de x, de y”, e depois criar um caminho de fragilização que possa depois abrir a porta a privados.
Marcelo: “Ver-se-á quando houver tensões”
Tem gostado das atuações de Marcelo Rebelo de Sousa?
É curioso que utilize a palavra atuações. Marcelo Rebelo de Sousa tem pautado o seu exercício de mandato presidencial por uma presença pública muito intensa, muito diversificada. Creio que depois do exercício absolutamente confrangedor do anterior Presidente da República, a instituição Presidência da República desceu a patamares de estima por parte das pessoas muitíssimo baixos. O Presidente da República eleito goza de uma aceitação que reflete essa dimensão. Dito isto, quando passar esta onda, e ela passará evidentemente — ou por cansaço ou porque a política se encarregará de trazer as discussões substantivas para primeiro plano –, o estilo deixará de ser a questão essencial e a substância passará a ser questão essencial — Marcelo Rebelo de Sousa já disse coisas que eu avalio do ponto de vista crítico.
Como por exemplo?
A sua grande preocupação no sentido das regras europeias não serem postas em causa. Marcelo Rebelo de Sousa afirma-se como um ator político, que sempre foi, que pretenderá mobilizar as forças políticas portuguesas para um bloco político alinhado com as regras europeias. E aí o Bloco de Esquerda distancia-se de Marcelo Rebelo de Sousa.
Os sistemáticos apelos ao consenso são um apelo ao Bloco Central?
São claramente uma aposta numa política a que eu chamaria centrista. Não tenho a mínima dúvida. Marcelo Rebelo de Sousa foi esse candidato e é esse Presidente. Ninguém deve ter equívocos a esse respeito. A identidade política de Marcelo Rebelo de Sousa sempre foi essa.
O Presidente tem sido um adjuvante da coligação?
Ver-se-á quando houver lugar a tensões. Quando houver uma condição de tensão acrescida aí se verá se Marcelo Rebelo de Sousa é adjuvante ou, se pelo contrário, é um polarizador político.
E ficou surpreendido com o veto de Marcelo Rebelo de Sousa ao diploma das barrigas de aluguer?
Registei os argumentos trazidos pelo Presidente, muito próximos do parecer do Conselho Nacional da Ética para as Ciências da Vida e creio que, não obstante o sentido desse veto, criou-se espaço para que haja a possibilidade de alterar a iniciativa legislativa que foi aprovada e colocá-la em termos que não deem ao PR quaisquer motivos para voltar a vetar.
Como católico, acredita que o Papa Francisco vai mudar a Igreja
Acredito que o Papa Francisco tem vindo a fazer um percurso e a levar a Igreja no seu todo a fazer um percurso de mudança sobretudo referenciado à centralidade da posição dos pobres naquilo que deve ser a posição da Igreja onde quer que seja.
Veja aqui a entrevista completa: