O Estado português está a deixar de conseguir substituir dívida pública antiga por novo endividamento a custos mais baixos. Foi chão que deu uvas: à boleia das compras do BCE no mercado, que estão a poucas semanas de acabar, as Finanças conseguiram nos últimos 10 anos cortar para metade o custo médio de toda a dívida pública, até perto dos 2%. Mas, com os juros a subir nos mercados financeiros, já só recorrendo a prazos mais curtos é que o Estado se consegue financiar abaixo dessa média.
Os títulos de dívida portuguesa no prazo de referência (10 anos) estão a ser negociados nos mercados financeiros, entre os investidores, com juros de 2,15%. Isso é mais de quatro vezes o valor de 0,5% que se registava à entrada em 2022 – e nos últimos dias chegaram a estar acima de 2,3%. O movimento de subida é comum às dívidas de todos os países europeus, desde Itália (2,96%) e Espanha (2,09%) até à própria Alemanha, referência sem risco na zona euro e cujos juros a 10 anos deixaram de ser negativos em fevereiro e já vão em 1%.
Embora o efeito em todo o stock de dívida pública de Portugal seja lento – porque é como aquecer a água de uma banheira com baldes de água quente – o impacto de qualquer emissão de nova dívida feita abaixo de 2% é algo que contribui para baixar a média e, em sentido inverso, qualquer nova dívida que seja colocada a uma taxa mais cara faz subir a média. E Portugal já só consegue obter novo crédito com custo inferior à média de 2% fazendo emissões em prazos mais curtos.
Foi o caso de um leilão de Obrigações do Tesouro feito esta quarta-feira, em que o Tesouro português obteve 750 milhões de euros oferecendo aos investidores uma rendibilidade implícita de 1,76% – que só não foi maior porque se tratou de uma emissão a um prazo mais curto, de oito anos. Para um termo de comparação, recorde-se que muito menos do que isso – 1% – foi quanto o Estado pagou em fevereiro de 2021 para colocar dívida com prazo bem mais longo, de 30 anos.
Portugal paga juros mais elevados em emissão de dívida a oito anos
Com os custos de financiamento a superar os 2%, “faz sentido manter este nível debaixo de olho porque, sendo a taxa média do stock, é uma fasquia psicológica importante e, uma vez ultrapassada, isso é algo que pode ter um impacto negativo na confiança dos investidores“, afirma ao Observador Richard McGuire, responsável pela estratégia em mercados de dívida pública europeia do holandês Rabobank, em Londres.
Apesar de o Banco Central Europeu (BCE) não comprar diretamente dívida aos Estados, porque isso seria um financiamento monetário que é ilegal, desde 2015 que tem estado ativo no mercado secundário, ou seja, a comprar títulos de dívida pública aos investidores que a tivessem comprado, por exemplo, nos leilões periódicos feitos pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP).
O programa regular de compras (APP) e a 'bazuca' pandémica (o PEPP)
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O impacto da intervenção do BCE tornou-se ainda mais avassalador quando surgiu a pandemia de Covid-19 e, além do programa regular de compras que já existia, foi lançado o novo Programa de Compras de Emergência Pandémica (PEPP, na sigla por que é mais conhecido). Esse programa fez com que no ano passado o BCE tenha comprado no mercado tanta dívida (ou até mais, em alguns casos) quanto os países emitiram.
E o impacto foi mais avassalador não só pela dimensão da dotação do PEPP (originalmente, 750 mil milhões de euros, depois aumentados para 1.350 mil milhões) mas, também, pelo facto de não ter algumas importantes limitações que tinha o programa regular de compras, designadamente podendo comprar obrigações dos países em quantidades que ultrapassavam os 33% de cada linha de obrigações (uma limitação que existe no programa regular de compras, conhecido pela sigla APP).
Gradualmente, à medida que dívida antiga que se ia vencendo ia sendo substituída por novas linhas de financiamento mais baratas, o custo médio da dívida de Portugal – que era de 4,1% em 2011 – foi descendo gradualmente para 2,5% em 2019, 2,2% em 2020 e 2% em 2021, segundo dados do IGCP.
Ao longo de todo o ano passado, a agência emitiu dívida com juro médio de 0,6%, o que ajudou a baixar a média do stock mais um pouco (de 2,2% em 2020 para os tais 2% em 2021). Mas esta trajetória está a inverter-se, em 2022, à medida que a escalada da inflação leva o BCE a interromper as compras de dívida no mercado.
Quando a taxa a 10 anos superou 1%, no início de fevereiro, a presidente do IGCP disse em entrevista ao Observador que “assusta um bocadinho” o momento em que o BCE deixasse de estar presente nos mercados de dívida, dada a importância fundamental que teve a presença desse “comprador de último recurso” que estava obrigado a comprar títulos, agressivamente, para conseguir cumprir os objetivos quantitativos dos programas de estímulos.
Esse momento do fim das compras pelo BCE vai chegar no final de junho. E, embora o governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, tenha lembrado (em entrevista ao Observador) que o BCE vai continuar presente nos mercados – usando tudo aquilo que for recebendo em reembolsos de dívida para reinvestir em novas compras – o impacto não será comparável aos programas que estão em curso.
Cristina Casalinho, a presidente do IGCP, disse nos últimos dias em declarações ao Jornal de Negócios que “o movimento de subida de taxas de juro deverá manter-se nos tempos mais próximos“. Para já, porém, a responsável diz que os atuais níveis não se podem considerar “preocupantes”, apesar da subida rápida em poucos meses.
Já anteriormente, a 16 de fevereiro, quando os juros a 10 anos estavam pouco acima dos 1,08%, a responsável tinha dito que, mesmo com a subida dos juros, era possível continuar a reduzir o custo médio da dívida pública portuguesa – através de estratégias como as operações de troca e as recompras de dívida, como o IGCP tem vindo a fazer, na gestão do custos e dos prazos diferentes em que se emite obrigações.
Como dizia Cristina Casalinho, nessa altura, se a taxa de juro média das emissões feitas ao longo de 2022 subisse para 1%, “o custo médio de financiamento do Estado português poderá continuar a cair, porque se está a substituir empréstimos com taxas altas por outros com taxas mais baixas”.
O problema é que, com a subida recente dos juros, essa média hipotética de 1% poderá não ser fácil de atingir, mesmo tendo garantido metade do financiamento do ano nos primeiros quatro meses (até abril), antes de os juros subirem ainda mais.
Um aumento súbito dos juros médios da dívida pública portuguesa (total) levaria a que tivesse de se orçamentar mais recursos, anualmente, para o pagamento desses juros. Mas o efeito sempre lento e gradual da evolução destes custos faz com que esse agravamento súbito não seja previsível neste momento.
Porém, mesmo que os ventos contrários demorem a materializar-se, o que está em causa é a ausência de ventos favoráveis – depois de vários anos em que os juros ultra-baixos deram folgas ao Orçamento do Estado. Sem essa folga, Richard McGuire, do Rabobank, explica que se torna ainda mais importante manter excedentes no saldo orçamental (primário, ou seja, descontando os custos com a dívida): “se o saldo primário for suficientemente positivo, então um país consegue, potencialmente, aguentar subidas nos custos da dívida sem que isso leve a aumentos no stock total da dívida”.
Por outras palavras, o analista nota que a execução orçamental tem de ser ainda mais rigorosa, para compensar a falta do “vento favorável” que era a poupança anual em juros graças às compras do BCE. É por isso que Filipe Silva, diretor de investimentos do Banco Carregosa, salienta que “se os bancos centrais têm um desafio ao ter de subir taxas e adotar medidas, que não coloquem em causa o crescimento das economias, os governos irão ter outro com a subida do custo para emitir dívida e o impacto que o mesmo terá nas finanças nacionais”.