(Este artigo foi publicado originalmente a 12 de agosto e é republicado agora a propósito da vitória de Joe Biden e Kamala Harris como Presidente e vice-Presidente dos Estados Unidos)
Kamala Harris já tinha a resposta pronta.
Era 15 de maio de 2019 e, naquela altura, o início das eleições primárias do Partido Democrata era ainda uma realidade distante. Mas a curiosidade já era muita e os rumores também. Estaria Kamala Harris, senadora pela Califórnia, disposta a ser a número dois de Joe Biden nas eleições presidenciais de 3 de novembro de 2020?
“Se as pessoas quiserem especular, eu apoio-os. Porque acho que Joe Biden seria um excelente colega de campanha”, disse. E logo de seguida sublinhou: “Como vice-Presidente”.
A História, já sabemos, acabou por não ser assim. 454 dias depois daquela resposta pronta de Kamala Harris, Joe Biden fez o anúncio que tanta especulação gerou. Sim, Kamala Harris ia mesmo ser a sua colega de campanha — mas como número dois.
Foi uma escolha histórica, vai ser uma vice histórica. Joe Biden já fizera a promessa de que iria escolher uma mulher para seu número dois (algo que Walter Mondale já fizera em 1984 com Geraldine Ferraro e que John McCain replicou em 2008 com Sarah Palin), mas não era certo aquilo que acabou mesmo por acontecer: Kamala Harris foi a primeira afro-americana a chegar a candidata a vice-Presidente e será mesmo a primeira a exercer o cargo.
Let’s go win this, @KamalaHarris. pic.twitter.com/O2EYo6rYyk
— Joe Biden (@JoeBiden) August 12, 2020
Como já seria de esperar, sobretudo em tempos de pandemia em que os comícios foram na sua maioria virtuais e os materiais de campanha foram em pixels e não em papel, as redes sociais de antigos presidentes e candidatos democratas desfizeram-se em elogios a Kamala Harris.
Barack Obama disse que “ela está mais do que preparada para o trabalho”. Hillary Clinton falou de uma campanha “histórica” e disse de Kamala Harris que ela já tinha “dado provas de que é uma excelente servidora pública e líder” — uma descrição mais extensa do que a do seu marido, Bill Clinton, que aplaudiu ainda assim a “excelente escolha” de Joe Biden.
E o que disse Joe Biden? Falou de como Kamala Harris, nos seus tempos de procuradora-geral da Califórnia, trabalhou com Beau, o filho do ex-vice-Presidente que morreu em 2015 vítima de um tumor cerebral.
Back when Kamala was Attorney General, she worked closely with Beau. I watched as they took on the big banks, lifted up working people, and protected women and kids from abuse. I was proud then, and I'm proud now to have her as my partner in this campaign.
— Joe Biden (@JoeBiden) August 11, 2020
“Vi como os dois fizeram frente aos grandes bancos, defenderam os trabalhadores e protegerem tanto mulheres como crianças de abusos”, escreveu Joe Biden. “Estava orgulhoso à altura e agora orgulhoso estou por tê-la como minha parceira nesta campanha.” Agora vai tê-la como sua número 2.
Quando Kamala atacou Biden a sério — e vendeu t-shirts com isso
Não é que o tom entre Kamala Harris e Joe Biden tenha sido sempre amigável. Foi, aliás, da senadora californiana que o ex-vice-Presidente recebeu o seu ataque mais violento durante toda a campanha para as primárias democratas — um momento que catapultou Kamala Harris e levou Joe Biden a uma crise prolongada. Aconteceu a 26 de julho de 2019.
Também ali Kamala Harris já tinha a resposta pronta. Primeiro, pediu licença para falar sobre “raça” já que era “a única negra no palco”. Depois, foi ao seu registo autobiográfico, recordando o vizinho que dizia ao filho para não brincar com ela e a sua irmã “porque éramos negras”. De seguida, chegou onde queria: “Vou dirigir isto ao vice-Presidente Biden”.
Virada para o seu lado direito, fixou os olhos em Joe Biden e disse: “Não acredito que você seja racista”. Mas, depois, recordou como no seu passado como senador nos anos 1970 negociou com republicanos (que mais tarde elogiou) que se opunham ao fim da segregação das escolas — na altura concretizado pelo transporte de crianças negras em autocarros escolares para escolas até aí exclusivamente brancas.
“Havia uma menina na Califórnia que fez parte do segundo ano que integrou essas escolas. Essa menina era levada todos os dias de autocarro para a escola”, disse, virada para os moderadores. Depois, devolvendo o olhar para Joe Biden, disparou, já com a resposta pronta: “E essa menina era eu”.
Simultaneamente, Kamala Harris atingia o pico da sua campanha e Joe Biden o seu ponto mais fundo. Poucos momentos depois daqueles dois minutos previamente ensaiados, já a equipa de Kamala Harris colocava na conta de Twitter da candidata uma fotografia de Kamala nos seus tempos de “menina”, com um totó para cada lado. O efeito na conta bancária da campanha foi imediato: em apenas 24 horas, Kamala Harris arrecadou mais de 2 milhões em donativos. E as sondagens também responderam de forma imediata: Joe Biden, até aí destacado em primeiro, baixou e começou a disputar o topo com Bernie Sanders, Elizabeth Warren e a sua nova challenger, Kamala Harris.
There was a little girl in California who was bussed to school. That little girl was me. #DemDebate pic.twitter.com/XKm2xP1MDH
— Kamala Harris (@KamalaHarris) June 28, 2019
Kamala Harris e a sua campanha agarraram-se àquele momento tanto quanto puderam. Depois do tweet em cima do acontecimento, seguiu-se uma campanha de merchandising. De repente, a campanha de Kamala Harris começou a vender t-shirts com aquela mesma fotografia, acompanhada da frase “aquela menina era eu”. A insistência em remeter para aquele momento foi tanta que no programa de comédia Saturday Night Live a personagem de Kamala Harris (interpretada pela atriz Maya Rudolph) aproveitava cada segundo, e independentemente do tema, para dizer: “Aquela menina era eu”.
O que parecia ser o topo de Kamala Harris acabou por ser mais propriamente o pico — e, a partir dali, foi sempre a descer. No final de novembro, a sua campanha era já uma sombra do que outrora tinha sido. Em queda livre nas sondagens, Kamala Harris ficou sem slogans (depois de ter utilizado muitos), sem ideias (após ter oscilado entre várias) e sem dinheiro (que deixou de conseguir angariar). Tudo isto numa altura em que faltavam ainda 90 dias para a primeira votação das primárias, a 2 de fevereiro, no Iowa. Acabou por nunca lá chegar: a 3 de dezembro, suspendeu a campanha.
“Mas quero ser clara convosco: continuo nesta luta”, disse. Esta frase, que é também ela uma resposta pronta, levantou no entanto uma dúvida do que tem sido também uma das maiores dificuldades de Kamala Harris: afinal, qual é a luta dela?
Quando a Kamala política não concorda com a Kamala procuradora
“Aquela menina” nasceu em Oakland em 1964, numa família multi-racial. Filha de pai jamaicano (economista na Universidade de Stanford) e de mãe indiana (investigadora especializada em cancro da mama), a entrada na política era um caminho lógico. Criada pela mãe (os pais divorciaram-se quando Kamala Harris tinha 7 anos, o que ditou o afastamento do pai), Shyamala Gopalan, que conciliava a investigação científica com o ativismo pelos direitos civis, Kamala Harris viu na Justiça uma porta de entrada para o serviço público.
Depois de passar por vários tribunais da Califórnia, ascendeu ao seu primeiro grande cargo aos 40 anos, em 2004, quando foi eleita para ser procuradora-geral de São Francisco. Conseguiu os votos ao montar a sua sede de campanha num bairro maioritariamente negro de São Francisco, onde ninguém esperava que alguma vez um candidato aparecesse em campanha — e muito menos coordenar tudo a partir de lá. A campanha foi modesta, mas também já um forte sinal da capacidade de Kamala Harris para cativar as pessoas no contacto direto. Aos fins-de-semana, levava para a porta do supermercado uma tábua de engomar, que usava como secretária, e ali convencia qualquer eleitor a votar nela.
Mas, se nesses tempos Kamala Harris demonstrava já uma enorme facilidade para cativar eleitores, ao mesmo tempo tinha uma aura da qual hoje tenta desfazer-se: a de quem encara o crime de punho cerrado.
Uma das suas maiores marcas como procuradora em São Francisco foi o combate às faltas escolares. Essa decisão é ilustrada no livro que escreveu a propósito da sua campanha presidencial, “The Truths We Hold: An American Journey” (sem edição portuguesa)”, com o caso de um “Johnny” fictício, mas ainda assim comum.
“O pequeno Johnny até pode dar um sorriso de esguelha irresistível quando lhe perguntamos porque é que está a comprar gomas em vez de estar nas aulas a meio da manhã, mas não há nada de engraçado quando virmos que oito ou dez anos depois ele vai parar ao tribunal por ter roubado a loja de conveniência”, lê-se nesse livro. “Ou, pior ainda, quando é levado para a morgue.”
Em 2009, a procuradora Kamala Harris estabeleceu em São Francisco um tribunal com o propósito exclusivo de lidar com casos de alunos que faltavam às aulas — e, nos casos mais graves, determinou-se que os pais cujos filhos não fossem assiduamente à escola seriam multados ou presos. Mais tarde, Kamala Harris viria a dizer que essa sua medida reduziu em 32% as faltas às aulas em São Francisco. Era, pois, uma medida da qual se orgulhava. Tanto que a utilizou como pergaminho quando concorreu em 2011 para ser procuradora-geral da Califórnia — corrida essa que ganhou, tornando-se na primeira afro-americana a ocupar aquele cargo.
“Vamos dar um aviso aos pais: se falharem na vossa responsabilidade perante os vossos filhos, vamos trabalhar para garantir que vocês são levados a encarar a justiça em toda a sua força e em todas as suas consequências”, disse Kamala Harris no seu discurso de tomada de posse como procuradora-geral da Califórnia.
Mas aquilo que Kamala Harris destacou como ponto de honra no seu currículo tornou-se numa fonte de críticas na era Black Lives Matter. Ao longo da campanha, Kamala Harris defendeu-se sempre dizendo que não tinha havido ninguém a ser preso em São Francisco por ter tido um filho a faltar às aulas — o que é verdade. Mas o mesmo já não pode ser dito na totalidade da Califórnia, onde houve de facto pais que foram presos por esta razão e durante o mandato de Kamala Harris. Já em campanha, a candidata viria a lamentar a política de que outrora se gabara. “Arrependo-me do que aconteceu e de pensar que algo que eu fiz possa ter levado a isso [detenções de pais], porque não era essa a minha intenção”, disse. “Nunca foi a minha intenção.”
Também a relação de Kamala Harris com a polícia durante os seus tempos de procuradora levantou suspeitas entre a comunidade afro-americana e a esquerda do Partido Democrata. Em 2009, no seu primeiro livro, “Smart on Crime” (sem edição portuguesa), falou a favor de uma maior presença policial nas ruas. “Se for para votar de mão no ar se queremos ver mais polícias na rua, a minha dispara logo para cima”, escreveu então, referindo ainda que “qualquer cidadão cumpridor da lei” se sente “mais seguro quando vê um polícia de giro”. Porém, já em 2020, após da morte de George Floyd depois de um polícia o ter detido e sufocado com o joelho no pescoço, Kamala Harris já disse: “Pensar que pôr mais polícias nas ruas cria mais segurança é apoiar o status quo. E está errado, simplesmente errado”.
Foram frequentes estas inflexões de Kamala Harris ao longo do último ano: partindo de uma posição mais centrista, aproximou-se à esquerda sem, no entanto, nunca fazer promessas de nela se instalar. Estas movimentações não passaram despercebidas — e muito menos o embaraço que elas lhe causaram.
Uma prova disso mesmo viu-se num debate entre os candidatos democratas, no final de junho de 2019. O moderador, o jornalista Lester Holt da NBC, pediu para que levantassem a mão os candidatos que defendiam o fim dos planos de saúde privados. Previsivelmente, a mão de Bernie Sanders subiu de imediato. E, atrás deste, seguiu-se a de Kamala Harris. A candidata não ofereceu qualquer justificação (não lhe foi pedida) mas a ideia ficou clara. Até que, no dia seguinte, num programa matinal, disse que tinha levantado a mão por engano.
Outra prova de embaraço causada pelos ziguezagues de Kamala Harris tem a ver com o consumo de drogas. Enquanto procuradora, ficou conhecida por defender a aplicação de uma fiança no limiar mais alto nos casos de crimes com drogas — mesmo naqueles em que estavam em causa doses individuais. Porém, já durante a campanha, Kamala Harris deu uma entrevista ao programa de rádio The Breakfast Club onde admitiu que já tinha fumado erva e que era a favor da legalização daquela substância. “Eu até digo, meio a brincar, que metade da família é da Jamaica. Estão a brincar comigo ou quê?”, disse, entre risos, naquela entrevista.
Aquele momento valeu-lhe dois embaraços. O primeiro partiu do pai, jamaicano, que esteve ausente da vida de Kamala Harris desde que se divorciou da mãe desta, dizendo que os seus avós e pais estariam “a dar voltas na campa ao verem o seu nome, a sua reputação e sua identidade jamaicana relacionada, a brincar ou a sério, com o estereótipo fraudulento de quem fuma erva alegremente numa busca por uma política identitária”. O segundo embaraço deu-se num debate, quando a congressista havaiana Tulsi Gabbard lhe atirou: “Ela prendeu mais de 1.500 pessoas por crimes relacionados com marijuana e depois riu-se quando lhe perguntaram se já tinha fumado marijuana”.
Desta vez, e excecionalmente, Kamala Harris não teve uma resposta pronta para dar.
Além de contradições, o que é que Kamala tem?
São várias as contradições de Kamala Harris — e foram, por isso, muitas as razões que levaram ao fim abrupto e para muitos precoce da sua campanha para ser Presidente. Dessa forma, é normal que surja a pergunta: assim sendo, de que forma é que Kamala Harris podia ajudar Joe Biden?
A sua flexibilidade ideológica poderia, depois de ter sido uma desvantagem junto do eleitorado estritamente democrata que vota nas primárias, tornar-se numa vantagem numa altura em que se procurarava conseguir o voto também de independentes, moderados e republicanos desavindos com Donald Trump.
“Ela não é alguém que possa ser engavetada numa ideologia ou outra”, disse ao Wall Street Journal Brian Brokaw, que geriu as duas campanhas vitoriosas de Kamala Harris para ser procuradora-geral da Califórnia, em 2010 e 2014.
“O rótulo de lei e ordem que foi algo tóxico para Kamala Harris nas primárias na verdade vai dificultar a tarefa de rotulá-la como um perigo para os subúrbios”, disse, também àquele jornal, o estratega republicano John Sellek, do Michigan.
“Os pontos fortes de Kamala Harris enquanto colega de campanha são bastante evidentes”, escreveu na New York Magazine o estratega democrata Ed Kilgore, referindo como exemplo “um currículo forte em sucessos eleitorais”, uma “posição do espetro político exatamente ao meio dos pontos de vista democratas” e também a “identificação com não apenas um mas três tipos de eleitorados democratas importantes”. A saber: “Mulheres com ensino superior, americanos negros e americanos asiáticos”.
Porém, apesar disso, qualquer um desses três eleitorados não seriam propriamente uma conquista para o Partido Democrata, que já é particularmente forte entre eles. Isso mesmo reconheceu Ed Kilgore quando referiu que não era claro que “tipo de eleitores é que Kamala Harris” traria para a campanha.
“Mas é claro que, a não ser que ela faça erros desnecessários, também não deverá perder muitos votos”, acrescentou aquele estratega. Kamala Harris podia ser, desta forma, uma adversária mais difícil para o lado republicano da corrida do que se Joe Biden tivesse escolhido alguém significativamente à sua esquerda, como seria o caso de Elizabeth Warren.
.@KamalaHarris started strong in the Democrat Primaries, and finished weak, ultimately fleeing the race with almost zero support. That’s the kind of opponent everyone dreams of!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) August 12, 2020
Isso, porém, não impediu que Donald Trump viesse logo dizer que esta era a escolha que mais lhe convinha — e à sua reeleição (que afinal acabou por não acontecer). “A Kamala Harris começou com força nas primárias democratas e acabou fraca, acabando por fugir da corrida com praticamente zero apoios. É o tipo de adversária dos sonhos de qualquer um”, escreveu na altura. Mal ou bem, Kamala Harris teve resposta pronta nas urnas: foi eleita.