A Matemática era coisa que não lhe interessava. A forma como a tinha aprendido na escola não o seduzia minimamente. Ensinavam-lhe como se resolviam os problemas, mas aquilo que ele mais queria saber não lhe diziam: porque se resolviam daquela forma e não de outra qualquer. Não, a Matemática não era para ele.
Ciências da Computação era a área de eleição de Lashi Bandara quando entrou para a universidade, mas a frequência em cadeiras de Matemática eram um requisito obrigatório. “Como sempre quis estar à altura do desafio fiz as disciplinas de Matemática mais interessantes – que também eram as mais difíceis”, conta o investigador australiano ao Observador. Continuava sem ser muito bom a Matemática, mas achava-a desafiante e muito interessante.
Embora continuasse com a ideia de seguir Ciências da Computação como carreira académica, a Matemática foi-se intrometendo cada vez mais na sua vida e nos seus pensamentos e reflexões. Com um pequeno empurrão descobriu como a Matemática era tão “bela” e deixou-se apaixonar. Completou o doutoramento na Australian National University, em 2013, e agora encontra-se a fazer pós-doutoramento na Universidade de Gotemburgo, na Suécia.
O Observador encontrou Lashi Bandara em Heidelberg (Alemanha), a conferência Heidelberg Laureate Forum que junta 200 jovens estudantes e investigadores com alguns dos laureados com os melhores prémios da Matemática e Ciências da Computação, para que os mais novos possam aprender com a experiência e os conhecimentos dos seus ídolos científicos.
O que mais gostas (love) na Matemática?
Essa é uma ótima pergunta. Amor (love) é mesmo a palavra certa para ser usada, porque tenho uma relação muito especial e profunda com a Matemática. Quando penso num conceito abstrato encontro um certo sentido de beleza sobre esse conceito, quero compreendê-lo de forma aprofundada e quero entendê-lo de forma única. E não acho que seja muito diferente do modo como interajo com outros seres humanos, mesmo em situações mais íntimas, em que vamos além deste nível médio de conhecimento para uma sensação de compreensão sobre esse objeto [conceito, pessoa, situação]. O que é chave aqui é que considero estas coisas realmente belas e essa sensação de beleza motiva-me a ir mais longe e a tentar perceber algo.
É como se estivesses a construir uma relação com a Matemática, ou melhor, com cada um dos problemas?
Sim, com os problemas. É como uma amante, em pleno direito [risos]. E a relação que se constrói é obviamente única, tal como cada objeto [matemático] é único. Quando estamos a tentar demonstrar alguma coisa, temos de chegar às especificidades dessa coisa, temos de compreender um objeto para demonstrar as suas características. E neste processo ficamos a conhecer o objeto um pouco melhor. E isso é algo de que realmente gosto (“love”). Vamos além do limite do conhecimento, porque desenvolvemos uma relação mais profunda e significativa com o objeto.
A palavra “beleza” é usada muitas vezes pelos matemáticos, mas as pessoas associam mais facilmente a “beleza” à arte. Com o que se parece a beleza da Matemática?
Não é tanto o que parece, mas o que se sente. Sinto que é “belo”. Que é o mesmo que eu diria quando oiço Judas Priest – há uma parte da música “Painkiller” que considero “bela”. E não é algo que consiga ver, mas quando a oiço sinto-me comovido. A mesma coisa acontece quando oiço Philip Glass, um compositor contemporâneo nova-iorquino, que compôs várias músicas bonitas. E quando oiço essas músicas sou levado, emocionalmente, para um certo sítio onde sinto que algo é belo. Também posso ter um momento com uma pessoa que pode ser realmente especial e cheio de significado. Mais uma vez usaria a palavra “belo”. O mais notável é que, em termos da resposta emocional que tenho, estas situações são indistintas – tenho exatamente a mesma resposta emocional.
Para ser um matemático é preciso alcançar um grande nível de abstração. Como se chega lá? Nasce connosco ou é treinado?
Entrando no terreno pantanoso das suposições, acho que é possível a qualquer pessoa treiná-lo. Eu era um aluno muito mau a Matemática na escola, porque era só cálculo e resolver exercícios e isso era muito monótono.
Felizmente nasci na era dos computadores. Inicialmente comecei por jogar videojogos, mas depois interessei-me por programação – teria uns 11 ou 12 anos. Nessa altura não sabia exatamente o que era programação – fazia apenas umas coisas básicas. Só no secundário, depois de um amigo me apresentar o Linux, comecei realmente a fazer programação a sério.
Antes de entrar para a universidade, durante um ano de pausa, aprendi a programar em C e foi-me apresentada a estrutura de dados. Subitamente, senti um impulso de organizar as coisas de certa forma, mesmo na programação, para extrair determinadas características. Não lhe dei muito significado até muito mais tarde, quando já estava a fazer Matemática, e me apercebi que as duas coisas são, na realidade, o mesmo – vejo um padrão que atravessa coisas diferentes e quero entender isso enquanto característica. E, muitas vezes, em Matemática este padrão que vemos como uma característica tem uma estrutura matemática subjacente.
Não gostavas muito de Matemática na escola. O que achas que deveria mudar no ensino pré-universitário para os alunos terem mais interesse por esta disciplina?
O problema com a educação em Matemática é que se segue um caminho muito restrito. Claro que há pessoas capazes de seguir esse caminho e de se tornarem bons matemáticos, mas esse caminho também é seguido por pessoas que apenas são boas a “seguir receitas” – e que não chegam a tornar-se matemáticos. Não digo que esse caminho não deveria existir, mas acho realmente que mais caminhos deviam estar disponíveis. Eu, por exemplo, ainda tenho dificuldade a fazer contas, porque enquanto analistas apenas trabalho com símbolos, não estou preocupado com valores. Esta é a minha forma de fazer as coisas, existem outras.
Não vemos esta riquíssima variedade [da Matemática] até estarmos num nível avançado. As diferentes áreas da Matemática são como as áreas da Engenharia: um engenheiro eletrotécnico não tem de saber como se aplica betão nas paredes de um edifício. A Matemática é tão diversa quanto isto, mas não temos oportunidade de o perceber quando estamos na escola. Na escola só vemos as coisas de uma maneira: todos têm de saber como somar rapidamente ou como multiplicar uma série de equações quadráticas. E alguém como eu, que fica insatisfeito por ficar só a saber fazer, quer perceber porque é que um problema se resolve de uma determinada forma e não de outra. Mas respondiam-me que não precisava saber isso porque não ia sair no exame.
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— little-scale (@littlescale) August 2, 2011
No meio de toda esta diversidade, o que é realmente a Matemática?
A prova é a característica fundamental da Matemática. O melhor talvez seja comparar a Matemática com a Ciência. Nas Ciências Naturais, recolhem-se os dados, começa-se a ver algum tipo de estrutura e cria-se uma teoria para explicar esses dados.
Pode acontecer que existam dados que não encaixem na teoria e que seja preciso fazer alguns ajustes. Porque o que acontece é que muitas das coisas sobre as quais criamos teorias em Ciência são, na verdade, aplicáveis num contexto restrito.
Assim, as características fundamentais da Ciência são a capacidade de testar a hipótese e a capacidade de demonstrar que uma hipótese é falsa. A capacidade para refutar uma ideia é um conceito central da Ciência. Mas, na Matemática, a característica fundamental é a prova – e isto é comum a todas as áreas da Matemática, independentemente das ferramentas que cada área usa para lá chegar. A ideia em Matemática é provar alguma coisa acima de qualquer dúvida. Quando se estabelece um facto matemático é eterno.
Enquanto matemático teórico, qual é a tua área de investigação?
Sempre estive muito interessado em objetos geométricos. Gosto de coisas que têm uma forma, uma forma geométrica. O próprio universo tem uma forma geométrica – e esse foi o grande feito de Einstein, dizer que a gravidade e a curvatura são, na verdade, a mesma coisa. Há muitos problemas interessantes que podemos encontrar no mundo, como o modo em que a geometria afeta os processos [por exemplo, a propagação das ondas]. Quando largamos uma pedra num charco vemos as ondas que se formaram a propagar-se. Se o charco tiver uma forma estranha, quando deixamos cair a pedra percebemos como é que a geometria do charco afeta a propagação das ondas. Isto é o estudo das equações diferenciais parciais.
Em vez de tentar descrever diretamente um fenómeno que muda no mundo, é muito mais fácil registar de que forma as coisas que mudam se relacionam umas com as outras e depois procurar soluções. Uma área que tem sido bem-sucedida a trazer soluções para estas questões é da análise harmónica – decompondo algo complexo em objetos mais simples.
Em última instância queremos alcançar a linguagem que podemos usar para representar o mundo. Pelo menos essa é a minha motivação para estudar Matemática. Para mim a Matemática existe, claro, porque é bela, mas também porque é uma linguagem extraordinária que nos permite descrever tanto do mundo natural.
As pessoas têm alguma dificuldade em perceber que importância tem, na vida quotidiana, o trabalho de um matemático teórico. Qual a aplicação daquilo que fazes?
Um investigador não pode pensar no impacto que tem para a área da Matemática de um ponto de vista individual, porque muitas vezes demora muito tempo até que se desenvolvam certas técnicas. E pode acontecer que nunca se chegue a ver a aplicação do seu trabalho. É um risco, mas é um risco que vale a pena correr pela sociedade, porque, pelo menos em termos históricos, a Matemática deu origem a muita tecnologia e a muitas aplicações.
Em investigação fundamental não é possível saber onde é que estas ideias nos podem levar, porque se soubéssemos não estaríamos a fazer investigação. O motivo por que fazemos investigação fundamental e o motivo por que não queremos estar restringidos pela realidade é porque a imaginação nos permite chegar mais longe, além das coisas que conhecemos sobre a realidade. É por isso que a ciência fundamental, a ciência básica é tão importante. Se só estivéssemos preocupados com as aplicações do dia-a-dia, não geraríamos ideias mais profundas do que aquilo que já sabemos.
O nível de abstração a que um matemático é sujeito faz com que sejam, muitas vezes, muito criativos e tenham passatempos diversificados. O que mais gostas de fazer além de Matemática?
Adoro fotografia e astronomia, por isso cheguei a seguir muitos eclipses solares. O meu primeiro eclipse foi no deserto australiano: viajei, ida e volta, cerca de três mil quilómetros, por 24,5 segundos de eclipse. Depois fui ao Egipto, em 2006, e à China, em 2009, e fotografei o trânsito de Vénus nas montanhas Tucson (Estados Unidos), em 2012. Também faço fotografia de natureza de vez em quando.
E adoro música e literatura. Adoro o Sherlock Holmes – li os livros uma e outra vez – e o Tintin – tenho o meu escritório decorado com motivos do Tintin. Portanto há uma série de coisas de que gosto além da Matemática e acho que é importante um pouco de diversidade na vida.
O Observador esteve no Heidelberg Laureate Forum a convite da organização do evento.