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PEDRO AGOSTINHO CRUZ/OBSERVADOR

PEDRO AGOSTINHO CRUZ/OBSERVADOR

Leslie. A praia invadiu a aldeia de Leirosa e ainda ninguém apareceu para ajudar

As ruas estão cobertas de areia. Uma torre de comunicações caiu sobre as casas, não há rede, água ou luz. Dias depois, Leirosa está como se o furacão tivesse acabado de passar. "Não temos ninguém."

“Ó avó, que é isso? Que barulho é esse?”. A pergunta — um quase presságio — da neta de Donzília não a deixou em maior sobressalto do que aquele em que já estava. Passou-lhe de tal forma despercebida que só agora, dias depois daquela noite de sábado, parece recordar a aflição da sua “menina que trabalha em Lisboa”, ao telefone. Ela já pressentiria que alguma coisa grave estava para acontecer, mas Donzília tinha a cabeça noutro lugar.

O marido tinha ido para a Nazaré buscar o filho que “anda nos barcos”. Entre cortes nas chamadas — o vento já soprava com muita força –, Donzília ia tentando perceber onde estavam. Não pregava olho. Tinha percebido que, pouco depois das 22h00 da noite, os dois estavam em Montereal, a meia-hora de casa. O caminho avizinhava-se um labirinto de árvores caídas. “Eu já estava preocupada”, diz ao levar as mãos ao peito — talvez a tentar imitar o desespero que sentiu naquela noite, talvez a tentar esconder aquele que ainda sente.

A Leirosa, no concelho da Figueira da Foz, foi atingida pelo furacão Leslie na noite de sábado, 13 de outubro (Foto: PEDRO AGOSTINHO CRUZ)

PEDRO AGOSTINHO CRUZ/OBSERVADOR

Pouco depois, ouviu um “estrondo”. “Pensava que era algum tornado que estava a dar”, recorda a mulher de 66 anos — 66 anos em que “nunca” se lembra de “ter visto nada assim”. Da rua, chegavam também os gritos da vizinha: “Ai Jesus, tenho tudo partido”. Dália vinha com a filha do café, onde o marido tinha ficado. Joana, ao ver o telhado da casa dentro da sua sala, voltou para trás para chamar o pai. Assustada, chegou ao café a gritar: “Ó pai, o teto falso caiu”. Luís, que não se deixava convencer pelas lágrimas da filha, respondeu-lhe: “Olha, se for só o teto falso, que se lixe. Há de haver quem tenha mais prejuízo”, disse pelo caminho até casa.

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“Ó, mas quando eu entro ali…”, conta agora, enquanto aponta para a porta de casa, “começo a ver aquilo e a olhar e digo para a minha mulher: ‘Estão aqui coisas que não são nossas'”. Estava escuro. Não percebeu bem o que tinha acontecido. “Epá, isto foi a torre que caiu”, disparou, ainda pouco confiante. Saiu e confirmou a sua suspeita: a torre de comunicações, erguida duas ruas acima, tinha tombado. “Depois isto foi-se espalhando e apareceu aqui a Leirosa inteira, praticamente”, recorda.

A casa de Luís, Dália e a filha foi atingida por um poste de alta tensão durante a tempestade (Foto: PEDRO AGOSTINHO CRUZ)

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Os escombros atingiram também a casa de Donzília. O barulho que a neta ouviu na chamada seria já, aliás, a torre a dar sinais de que ia cair em cima do telhado da casa onde a família vive há 47 anos. “Não sabia se havia de gritar por isto”, diz enquanto aponta para o buraco no teto. E continua: “Se havia de gritar por eles. Não sabia se havia de chorar pela casa, se devia chorar por eles”. Donzília chorou pela casa e pelo marido e filho. “Eles” acabariam por chegar sãos e salvos. A torre, completamente torcida, ainda se apoia no seu telhado e continua a fazer Donzília chorar: “Não temos ninguém na Leirosa. Não temos”.

[Veja aqui as imagens da destruição deixada pela tempestade Leslie na Praia da Leirosa]

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As ruas da Leirosa, uma localidade na Figueira da Foz, estão cobertas pela areia que foi levada pelo vento. A praia invadiu a terra. Foi por aquele concelho que, no passado sábado, o furacão Leslie entrou em Portugal Continental. Eram perto das 22h10. Dois dias depois, o Observador encontrou quase tudo na mesma. A areia ainda está aos montes pelas ruas. Naquele manto, os únicos pontos de cor são o vermelho das telhas partidas e o preto do alcatrão que espreita pelas marcas dos sapatos dos que por ali vão passando. Leirosa está como se o furacão tivesse acabado de passar.

Dois dias depois da tempestade, ainda não havia água, luz ou rede na Praia da Leiorsa (Foto: PEDRO AGOSTINHO CRUZ)

PEDRO AGOSTINHO CRUZ/OBSERVADOR

Chove, mas já não há vento. Nas casas, ficaram as marcas daquilo que parece ser uma explosão de areia. Os moradores, de vassouras nas mãos, vão limpado o rasto do furacão e lançando comentários de fúria. Um deles é um homem de bigode e com um boné a esconder-lhe o cabelo branco, empoleirado num escadote para limpar as caleiras que transbordavam areia. “Ninguém aparece aqui para tirar isto”, grita enquanto aponta para a torre de comunicações dobrada, desequilibrando-se.  Os curiosos, que ali aparecem e desaparecem, são contaminados pela indignação do povo da Leirosa: “Morriam aqui todos e ninguém dava por eles”.

Na capela, os desabafos, prolongados pelo eco, ouvem-se mais alto. No sábado, a casa mortuária também foi invadida pela areia. Dois dias depois, encheu-se com mais de uma dezena de mulheres “desenrascadas”. “O presidente da Junta não podia cá trazer os homens para limpar isto?”, pergunta uma. “Fugiram”, responde outra. Umas, com vassouras, apanham a areia. Outras pegam nos baldes cheios e vão despejá-los à praia, devolvendo-lhe o que o vento roubou.

A sala mortuária da Capela da Leirosa foi invadida por areia levada pelo vento (Foto: PEDRO AGOSTINHO CRUZ)

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O trabalho não as impede de gritar desabafos. “Ontem, para tomar banho, tive de aparar a água da chuva”, lamenta uma mulher de cabelos cinzentos e curtos. Tem os olhos tristes. Vai pestanejando para evitar que as lágrimas caiam. Diz que é pobre e nem quer pensar na comida congelada que tem na arca frigorífica que se vai estragar.”Na Figueira da Foz há geradores por todo o lado. Aqui, nem um!”, ouve-se entre as vozes que se tentam fazer ouvir, na capela. Na aldeia, não há luz ou água desde que o furacão atingiu aquela praia. Nem rede telefónica. Outra mulher, cabelo louro, olhos azuis e revoltados, conta: “Tenho o meu marido no Algarve. Não sabe nada daqui. Nem eu atendo a ele, nem ele me atende a mim.

Na capela, para a qual se tem acesso através da casa mortuária, o barulho das mulheres que a limpam é abafado. Foi Cecília — “ou Celita, como toda a gente me conhece” — que abriu as portas. As olheiras estão escuras e marcadas. As roupas estão encharcadas de água e areia. A franja do cabelo, também suja, cola-se à testa. Tem 68 anos, feitos três dias antes da tempestade. “Aqui, na capela, graças a Deus, não houve muitos problemas”, diz, interrompendo-se a si própria para se ajoelhar, virada para o altar. Lá dentro, o azulejo está coberto de uma fina camada de areia, quase impossível de ver. Um dos painéis da porta soltou-se com o vento e deixou-a entrar. Foi Cecília que tapou, com um cartão, o buraco na entrada. “A capela é de todos, por isso estamos a juntar-nos para a limpar. Oficialmente, não há ninguém que tome providências seja para o que for. Isto aconteceu, foi o tempo, ninguém tem culpa. Se nós não nos juntarmos para fazer, ninguém faz”, desabafa.

Cecília, de 68 anos, tapou os buracos na porta da capela, provocados pelo vento, na manhã seguinte à tempestade (Foto: PEDRO AGOSTINHO CRUZ)

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Antes de voltar à casa mortuária, Cecília faz uma paragem numa sala escura e desarrumada. Numa mesa, está pousada a figura de Nossa Senhora de Fátima, também ainda manchada de areia. “É curioso para quem crê. Para quem não crê é igual. Na casa mortuária, havia um altar com a Nossa Senhora de Fátima. Não se sabe como, mas está intacta“, sussurra. Enquanto fecha a porta e já a aumentar o volume, acrescenta: “Acredita quem quiser porque ninguém é obrigado a nada. Um dia encontramo-nos todos lá em cima e depois a gente vê”. Já na casa mortuária, dispara: “Não houve mortos, mas se houvesse também cá ninguém passava. Ninguém quer saber da gente”.

Na Leirosa, não houve mortos, de facto, nem feridos. Há três desalojados: Donzília ainda consegue dormir no andar de baixo da cama mas Luís, Dália e Joana, estão a dormir na casa de familiares. O casal, que comprou e remodelou aquela casa há 10 anos, espera vê-la reparada “o mais rapidamente possível”. Estão tristes mas aliviados por ninguém ter ficado ferido. Dália tinha acabado de sair quando o teto desabou. Já estava deitada no sofá, mas decidiu ir ter com o marido ao café. Nesse sofá, viria a cair minutos depois uma parte do teto. Não sabe se foi a Nossa Senhora de Fátima se foi sorte. “Não sei o que é que me deu”, diz Dália, com a voz rouca.

Um grupo de mulheres esteve durante a segunda-feira a tirar areia da capela da Leirosa (Foto: PEDRO AGOSTINHO CRUZ)

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“Ó Lena, estás viva? Estás viva, Lena?”

Da Praia da Leirosa — quase na fronteira com o distrito de Leiria — ao Cabedelo, toda a destruição da costa da margem sul da Figueira da Foz comprova que foi naquela zona que o furacão Leslie atingiu a terra. Fazer um percurso pela costa é perigoso. Há muros que caíram e assim ficaram nas estradas. Barcos usados para decorar rotundas saltaram. As árvores que não partiram estão tombadas todas para o mesmo lado — como se tivesse vindo uma rajada de vento que as congelou naquela posição e as deixou imóveis. Houve até um edifício de uma escola de surf que foi parar ao quintal de uma casa. No Parque de Campismo do Cabedelo, não houve Nossa Senhora de Fátima. Se Dália ali estivesse, diria antes que o Diabo andou à solta.

“Ó Lena, estás viva? Estás viva, Lena?”. Os gritos dos vizinhos faziam-se ouvir entre as rajadas de vento que entravam parque adentro. A roulote de Helena Maria tinha voado e aterrado em cima de outra, a 50 metros dali. Os vizinhos, aterrorizados pelo estrondo, chamavam, mas ninguém respondia. Pensavam que Helena estava lá dentro e tinha sido arrastada também. Mas Helena tinha saído cinco minutos antes da roulote voar. Estava deitada no sofá a ver televisão quando recebeu uma chamada da vizinha: “Ó Lena, vem me acudir. Vem me acudir”. Talvez Fernanda, a vizinha, precisasse de ajuda com o pai, que tem para lá de 80 anos. Mas suspeitou que o pedido de ajuda estivesse relacionado com o vento. Tinha ouvido qualquer coisa sobre um alerta vermelho, mas “ás vezes falam disso e depois não acontece nada”.

Cerca de 80 roulotes ficaram destruídas, no Parque de Campismo do Cabedelo. A roulote de Helena voou e aterrou em cima de outra (Foto: PEDRO AGOSTINHO CRUZ)

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A roulote de Helena “nem abanava nem nada”. Mas assim que abriu a porta, ligou ao marido que estava em Coimbra a trabalhar a dizer-lhe que “estava a levantar-se o vento”. “Ele só saía à meia-noite. Também já não podia fazer grande coisa”, explica, enquanto vai apanhando restos de objetos partidos, tecidos e plásticos. Só quando chegou à roulote da vizinha, Helena temeu pela sua. “Ó Fernanda, eu vou ver a minha roulote”, conta que disse, acrescentando: “Quando cheguei já a vi em cima da outra”.  Entrou em pânico e começou a gritar. Lembra-se de estar por ali a andar e de alguém lhe ter dito para ir para os balneários, proteger-se. “Sei que ainda cheguei lá perto. Depois não me lembro de mais nada”, disse. Helena desmaiou. Acordou no bar, onde ficou com o marido, que entretanto tinha chegado, até às 5h00 da madrugada.

Têm a roulote naquele parque de campismo durante todo o ano, mas só passavam os fins de semana que podiam. Aquele foi um deles. O marido gosta de pesca e Helena acompanha-o para “distrair a cabeça”. Ter uma roulote era “um sonho”. “Investimos muito dinheiro aqui. Era uma casa de férias”, conta. Já Fátima, que passou a noite nos balneários, não tinha ali uma casa de férias: vivia ali com o marido e com o filho, no Parque de Campismo do Cabedelo, desde 2016.

Fátima vive com o marido e o filho naquele parque de campismo, desde 2016 (Foto: PEDRO AGOSTINHO CRUZ)

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Foi na sua autocaravana que passou a noite da tempestade Ana, em dezembro de 2017.  No sábado, pensou que a Leslie era “mais uma” e deixou-se ficar. Ao final da noite, recebeu uma chamada de uma amiga preocupada e aconselhá-la a ir-se embora. “Não, Dina! Está-se aqui tão bem. Esteve um calor imenso durante o dia”, respondeu-lhe. Fátima não chegou a desligar até que o vento desse sinais. Ainda disse à amiga: “Dina, a minha roulote está aos saltos. Parece que quer saltar”. Saiu a correr em direção à roulote da vizinha para perceber se esta precisava de ajuda. O marido saiu atrás dela, mas pouco avançou. Diante dos seus olhos, estava uma roulote no ar.

“Vamos sair daqui”. O marido pegou em Fátima e no filho e levou-os para o balneário. Lá estiveram fechados durante quase duas horas — horas que “parecia que não tinham fim”. “Naqueles momentos, rezei, rezei rezei. E dizia: ‘Eu estou cansada, meu Deus. Ajude-me que eu já não consigo pedir mais’. O meu filho com 22 anos chorava. Estávamos todos agarrados”, recorda Fátima. “Para viver ou para morrer, estamos os três”, dizia-lhes.

De várias roulotes, sobraram apenas os chassis ou os pneus (Foto: PEDRO AGOSTINHO CRUZ)

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As horas que “parecia que não tinham fim” acabaram por passar. A família saiu do balneário e encontrou um cenário daqueles que se vê “nas Américas”, aqueles “impensáveis em Portugal”. “Parecia que tinham passado umas gruas e levaram tudo à frente”, descreve Fátima. O mesmo cenário que ainda se vê agora. De várias roulotes, sobraram apenas os chassis ou os pneus. Algumas continuam como que empilhadas, outras quase pareceriam intactas, se não estivessem pousadas pelo tecto, de rodas no ar. É difícil acreditar que alguma coisa se salve e todos os trabalhos de recuperação ou limpeza são atrasados pela falta de tudo. Não há luz nem água. E serão precisas máquinas para retirar o que tiver de ir para a sucata.

[Veja aqui as imagens da destruição deixada pela tempestade Leslie no Parque de Campismo do Cabedelo]

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Esta segunda-feira, ainda ninguém sabia quando os fornecimentos seriam repostos. A EDP anunciou, entretanto, que 94% dos consumidores das zonas afetadas pela tempestade Leslie já tinha energia elétrica. O problema, ainda assim, continuava por resolver para 20.000 clientes, havendo ainda 38 linhas sem serviço.

A Fátima — e aos outros moradores do Parque de Campismo — não tem restado mais que recolher o possível, no meio dos destroços. Agora, não consegue ouvir um barulho: “O telefone do meu marido toca e eu fico em sobressalto”. Naturais de Montemor-o-Velho, viviam numa “casa de paredes”, na Figueira da Foz, mas emprestaram-na à filha. Vieram viver para a autocaravana que tinham porque gostam “deste estilo de vida”.

Agora voltaram para a “casa de paredes”. Mas por pouco tempo. Fátima sente-se com mais “garra” para recuperar tudo. “Isto não acabou. Levei tudo o que tinha para recuperar. O móvel da televisão, se não der para o móvel, dá para um suporte de vasos. São as minhas memórias”, conta, garantindo: “Vai ser diferente: se calhar vou valorizar mais a próxima notícia sobre uma tempestade”.

[Corrigido às 12h40 de dia 17 de outubro com a informação de que se trata de uma torre de comunicações e não de um poste de alta tensão]

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