[Este artigo é o segundo de uma série de quatro sobre prémios literários. Leia aqui o primeiro]
Depois de na primeira parte desta série de artigos se ter discutido a importância dada a prémios literários a partir do exemplo do mais prestigiado de entre estes, faz sentido prestar agora atenção à pertinência da conversa acerca de representação em literatura. De cada vez que um prémio literário relevante é atribuído, apresentam-se estatísticas acerca da falta de representação de todas as camadas da população que não sejam homens brancos ocidentais.
Em 2016, o Guardian chamava à atenção para o facto de apenas 26% das traduções inglesas serem de obras escritas por mulheres. Quando prestamos atenção à percentagem de mulheres vencedoras dos mais relevantes prémios literários, o cenário é ainda menos famoso: apenas 14% dos vencedores do Nobel, 33% dos vencedores do Pulitzer e 10% dos vencedores do Goncourt foram mulheres. Mesmo o Prémio Femina, criado em grande medida para combater a predominância masculina entre os vencedores de prémios como o Goncourt (e que tem um júri composto na totalidade por mulheres), conta hoje com apenas 36% de vencedoras entre os galardoados.
A discrepância torna-se mais evidente quando mudamos o foco das mulheres para os habitantes de países periféricos à Europa. Apenas como exemplo, notemos que só 12 dos 113 (10,6%) vencedores do Prémio Nobel da Literatura até hoje não nasceram na Europa ou na América do Norte.
O problema pode ser encarado de duas perspetivas, uma socio-económica e a outra cultural, não mutuamente exclusivas. Comecemos, então, por esta última.
Desigualdade cultural
Em A Room of One’s Own, Virginia Woolf (1882-1941) escreve que “são os valores masculinos que prevalecem. Falemos sem rodeios, o futebol e o desporto são ‘importantes’; o fascínio pela moda e a compra de roupas ‘triviais’. E estes valores são inevitavelmente transferidos da vida para a ficção. Este livro é importante, assume o crítico, porque trata da guerra. Estoutro é insignificante por tratar dos sentimentos das mulheres numa sala-de-estar. Uma cena num campo de batalha é mais importante do que uma cena numa loja – em todo o lado, e de forma bem mais subtil, a diferença de valores persiste”.
Woolf parece aqui argumentar que a centralidade masculina que foi imposta a todo o tipo de discussão cultural ou literária impede a entrada de mulheres nessa mesma discussão, pelo menos em número significativo. A ausência de mulheres em cânones como os que são formulados por listas de prémios pode, assim, prender-se com o facto de estas serem apenas visitantes convidadas para uma discussão que decorre nos termos impostos desde sempre pelos homens.
Sob esta perspetiva, a exclusão de mulheres não é muito diferente da exclusão de autores oriundos de países não-ocidentais. Em 1977, Artur Lundkvist, um dos membros do comité de atribuição do Prémio Nobel, sugeriu a um jornal sueco que a exclusão de autores africanos ou asiáticos da lista de galardoados se poderia dever a uma falta de sofisticação destas literaturas que não as permite sair do seu próprio contexto. Se esta justificação parece alimentada por preconceitos raciais e por manifesto desconhecimento, a justificação dada anos mais tarde por Kjell Espmark parece fazer bastante mais sentido (e aproxima-se, por exemplo, do que T.S. Eliot escreveu em ‘O Que É Um Clássico?’). Explica Espmark que é, na prática, impossível colocar em pé de igualdade autores oriundos de nações muito diferentes visto que, em grande medida, uma obra literária é fruto da cultura e tradição onde se insere, pelo que não se pode exigir a um júri composto por dezoito suecos que possam de forma razoável comparar autores como o espanhol Camilo José Cela a outros como o nigeriano Wole Soyinka, dado o ponto de onde partem ser radicalmente distinto.
Se já é extraordinariamente difícil optar entre escritores que partilham, de certa forma, um universo cultural semelhante, como por exemplo W.G. Sebald e Philip Roth, mais difícil se tornará com certeza comparar autores inseridos em contextos radicalmente diferentes, sendo que, como explicado acima, essa matriz de partida varia não só de cultura para cultura, mas até dentro dessas mesmas culturas. Este fenómeno é naturalmente exacerbado em autores de etnias ou géneros distantes do centro das decisões.
Desigualdades sócio-económicas
Outra justificação plausível para esta desigualdade tem por base argumentos socio-económicos. A literatura foi, durante muito tempo, considerada uma atividade a que apenas ociosos se poderiam dedicar. Se hoje em dia o cenário é ligeiramente diferente, até meados do século XX, a atividade literária implicava sempre ou uma fortuna pessoal considerável ou uma vida de absoluta marginalidade económica. Mais ainda, é virtualmente impossível a uma pessoa tornar-se escritora não tendo acesso a uma biblioteca bem apetrechada.
Todas estas condicionantes podem atenuar algum do racismo inerente às declarações acima evocadas de Artur Lundkvist, uma vez que o cenário de vastas bibliotecas e condições necessárias à leitura de um número considerável de grandes obras literárias é menos comum nos países subdesenvolvidos. E a diferença abismal, que ainda assim se tem vindo aos poucos a atenuar, entre o número de escritores homens e o número de escritoras mulheres, pode justificar-se então através da desigualdade de rendimentos existente entre géneros em praticamente todas as nações ocidentais ao longo dos séculos, associada à evidente falta de rendimentos próprios das mulheres e ao peso que as atividades domésticas continuam a assumir nos seus quotidianos.
Nenhum dos argumentos apresentados pretendem de forma alguma atenuar a gravidade do problema ou tornar menos urgente uma solução. Contudo, esta falta de representação que todos os anos é invocada parece só poder ser combatida de duas formas. A primeira, seria forçando o cânone a adaptar-se à diversidade do mundo através, por exemplo, de sistemas de quotas. Essas quotas teriam sempre como consequência natural, numa primeira fase, pelos motivos acima descritos, um certo baixar da fasquia. Se existem desigualdades tão prementes de acesso à discussão literária, exercícios de contrafogo poderiam, até certo ponto, reequilibrar artificialmente os pratos da balança. Complementarmente, poder-se-ia lutar por representatividade nos júris dos prémios literários, por forma a que pessoas de sensibilidades diferentes julgassem os candidatos, embora isso tenha limites práticos evidentes, uma vez que júris de prémios internacionais nunca poderão ter membros suficientes para acomodar a diversidade de culturas de todos os potenciais galardoados.
Há, finalmente, uma outra solução que, sendo mais demorada, poderia, essa sim, garantir uma verdadeira justiça. As desigualdades acima expostas podem ser atenuadas não criando uma homogeneidade global, mas garantindo condições socio-económicas para que mulheres e homens tenham iguais oportunidades e, acima de tudo, para que países periféricos se tornem, enfim, menos periféricos, diminuindo a sua pobreza e marginalidade.
No fundo, a injustiça sistémica que se verifica na atribuição dos prémios não é uma característica exclusiva destes, mas antes consequência e reflexo das desigualdades evidentes que se verificam em toda a parte. Assim, só atacando o problema na raiz se conseguirá impedir que prémios literários atribuídos a mulheres ou a membros de comunidades socio-economicamente marginais não tenham sempre um certo travo a meros prémios de consolação atribuídos a pessoas que teimosamente insistem em intrometer-se em conversas para as quais não são chamadas. A literatura, neste aspeto específico, sempre funcionou como um espelho das desigualdades do mundo. Culpá-la por essas mesmas desigualdades não é, por isso, diferente de culpar os meteorologistas pelos danos causados por tempestades.
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