Desde o dia 1 de outubro que a Procuradoria-Geral da República sabia do trânsito em julgado da pena de prisão de cinco anos e oito meses aplicada a João Rendeiro em julho de 2020. Mas, mesmo assim, a própria procuradora-geral Lucília Gago pediu à África do Sul em novembro que executasse um mandado de detenção provisório ao abrigo de um segundo processo do caso BPP que ainda não era (e continua a não ser) definitivo.
O Diário de Notícias informou que tinha sido o Departamento de Cooperação Judiciária e Relações Internacionais da Procuradoria-Geral da República a cometer esse erro. Mas, na realidade, o primeiro pedido formal para a detenção provisória de João Rendeiro foi assinado pela própria procuradora-geral da República e dirigido por via diplomática para o ministro da Justiça e dos Serviços Correcionais da África do Sul, Ronald Lamola. Tal erro só foi corrigido esta semana com o envio da informação sobre a pena transitada em julgado no chamado caso da falsificação da contabilidade.
Rendeiro foi detido de pijama e foi para a prisão de camisa cor-de-rosa
O Observador enviou um conjunto de perguntas à procuradora-geral Lucília Gago mas não obteve qualquer resposta até ao momento.
Erro da PGR perturbou, mas não deverá ter importância na decisão do juiz
Desde outubro que a Polícia Judiciária (PJ) liderada por Luís Neves sabia que João Rendeiro estava na África do Sul. A informação resultou da mistura entre a investigação da PJ junto de diversas fontes humanas em Portugal, a análise das viagens de avião de Rendeiro, bem como da informação prestada pela congénere da PJ na África do Sul.
Entre os dias 3 e 5 de novembro, datas em que Maria Rendeiro é detida por promoção da procuradora Inês Bonina no caso do descaminho das obras de arte e confessa no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa de que o marido está na África do Sul, que João Rendeiro comete um erro: sai do seu esconderijo num hotel de luxo em Joanesburgo e desloca-se para Durban, na costa sul-africana. Uma equipa especial da polícia sul-africana, liderada pelo general KJ Sitole, estava no seu encalce.
Com o cerco a apertar, e a PJ em consultas intensas com a sua congénere sul-africana, surgiu a necessidade de o Departamento de Cooperação Judiciária e Relações Internacionais, liderado pela procuradora-geral adjunta Joana Gomes Ferreira, escrever uma missiva que servisse de base a uma carta oficial da procuradora-geral Lucília Gago para as autoridades sul-africanas a solicitar a detenção provisória de João Rendeiro.
Ora, e de acordo com documentos do processo n.º 7447/08.2 TDLSB, a Procuradoria-Geral da República tinha sido informada no dia 1 de outubro de 2021 pelo juiz Nuno Dias Costa de que a pena de prisão de cinco anos e oito meses aplicada a João Rendeiro pelos crimes de falsidade informática e de falsificação de documento. Na prática, Rendeiro foi condenado nos autos por ter falsificado a contabilidade do BPP.
Inexplicavelmente, a PGR não invocou esse processo quando enviou para a África do Sul o primeiro pedido de detenção provisória de João Rendeiro. Invocou, sim, o processo n.º 5037/14.0 TDLSB — que é um caso em que Rendeiro também foi condenado mas ainda está em fase de recurso na Relação de Lisboa.
Quando o ex-líder do BPP dá a entrevista à CNN Portugal a 22 de novembro, o processo acelera e é a própria Lucília Gago quem envia a carta, invocando a pena de prisão do chamado caso dos prémios (processo n.º 5037/14.0 TDLSB), suspensa na sua eficácia devido ao recurso apresentado no Tribunal da Relação de Lisboa.
Este primeiro erro da Procuradoria-Geral da República poderia ter sido evitado, caso o gabinete de Lucília Gago tivesse estado coordenado com outros departamentos da própria PGR. Bastava a própria procuradora-geral ter ideia de que o juiz Nuno Dias Costa tinha comunicado o trânsito em julgado de uma pena de prisão para que o erro não tivesse sido cometido.
Tal como o DN noticiou, a PGR enviou esta semana uma segunda comunicação para as autoridades sul-africanas a comunicar a sentença transitada em julgado do processo n.º 7447/08.2 TDLSB que obriga João Rendeiro a cumprir uma pena de cinco anos e oito meses de prisão efetiva em Portugal. Mas a má impressão já tinha ficado instalada no Tribunal Verulam Magistrates.
Rendeiro pediu por duas vezes o registo criminal depois de ter fugido
A pena de prisão decidida pelo Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão de 10 de julho de 2020 transitou em julgado no dia 16 de setembro de 2021 mas só foi averbada ao registo criminal de João Rendeiro no dia 12 de outubro. Rendeiro, que já tinha fugido do país a 14 de setembro, requereu nesse intervalo de quase um mês a emissão de duas certidões de ‘cadastro limpo’ que apresentou em tribunal esta semana.
Este pormenor não só reforça a ideia já consolidada de que o ex-banqueiro fugiu para não voltar, como também indicia que já estava a recolher documentação para lutar contra um eventual processo de extradição, caso fosse detido — como acabou por ser.
Foram precisamente esses dois registos de ‘cadastro limpo’ que Rendeiro apresentou no Tribunal Verulam Magistrates, em Durban. Perante o juiz Rajesh Parshotam, a defesa tentou criar a ideia de que o ex-líder do BPP não tinha qualquer condenação definitiva em Portugal.
Ao que o Observador apurou, as autoridades portuguesas informaram de imediato as suas congéneres sul-africanas do atual estado do registo criminal, de forma a que o juiz Rajesh Parshotam percebesse que, apesar de os documentos não serem falsos, não estavam atualizados.
O mesmo aconteceu com outro tema relacionado com mais uma afirmação enganadora da defesa de João Rendeiro: a de que a sua mulher, Maria Rendeiro, estava a preparar-se para se juntar ao ex-líder do BPP.
Além da tradução para inglês da entrevista à CNN Portugal, na qual Rendeiro afirmou que a sua mulher tinha medo de viajar e preferiu ficar em Portugal com as suas “três cadelinhas”, o juiz Rajesh Parshotam também já terá na sua posse informação documental que atesta que Maria Rendeiro está neste momento em prisão domiciliária no chamado processo do descaminho das obras de arte. Logo, não pode obviamente viajar.
Declaração de contumácia no processo da “ganância”
Além de dois mandados de captura internacional nos processos n.º 7447/08.2 TDLSB e no n.º 5037/14.0 TDLSB, João Rendeiro foi ainda condenado a uma pena de três anos e seis meses pelo crime de burla qualificada num terceiro processo do caso BPP. E é precisamente esse terceiro processo que levou à emissão de uma declaração de contumácia.
De acordo com um edital emitido pelo juiz Francisco Henriques no dia 9 de dezembro, João Rendeiro tem 30 dias para se apresentar no tribunal. Se não o fizer, será declarado contumaz.
Trata-se de uma queixa de um antigo cliente do BPP, o embaixador jubilado Júlio Mascarenhas, que levou à condenação de Rendeiro a uma pena de prisão de três anos e seis meses decretada pelo Tribunal Judicial de Lisboa em setembro último — e quando ex-banqueiro já estava em fuga.
Vários órgãos de comunicação social noticiaram que estes autos teriam levado à emissão de um terceiro mandado de captura internacional, mas o Observador não conseguiu confirmar essa informação. Para que tal acontecesse, era necessário que o juiz Francisco Henriques tivesse declarado a prisão preventiva de Rendeiro, como aconteceu no autos do processo n.º 5037/14.0 TDLSB.