Vive nos Estados Unidos há cerca de 30 anos. É professor de Economia na New York University Stern School of Business e vem a Portugal poucas vezes ao ano. Esteve na semana passada por cá para participar na primeira edição do Observatório de Economia & Finanças organizado pela AESE Business School, onde também é professor. O Observador aproveitou essa visita para entrevistar o professor que garante ver grandes diferenças em Portugal nos últimos 30 anos.
Vai deixando algumas ideias para Portugal, nomeadamente ao nível da tributação. Assistiu a grandes mudanças no país, mas acredita que Portugal está bem posicionado no caminho que está a acontecer para a globalização 4.0.
Nesta entrevista ao Observador, Luís Cabral ainda dá a sua visão sobre a inflação e como desconfia dos economistas que sabem dizer qual vai ser a taxa do próximo ano. Deixa ainda uns alertas sobre as políticas de resgates dos estados.
Estamos a viver uma guerra na Europa. Os Estados Unidos vão, com esta guerra, reforçar a sua posição de maior economia mundial? Acredita que podem reforçar?
Não estou convencido que tenha uma influência muito grande. Nesse sentido, neste momento, a economia que mais rivaliza com a americana em dimensão é a chinesa. E não é evidente para mim que a guerra da Rússia na Ucrânia tenha um impacto muito grande neste balanço entre as economias americana e chinesa. O que faz, creio eu, é alterar o equilíbrio geopolítico do mundo. Nós, durante muitas décadas, vivemos no sistema bipolar e agora estamos num que é muito diferente, ao qual ainda nos estamos a tentar habituar, que é um sistema multilateral em que não há apenas duas potências. É evidente que os Estados Unidos e a China têm emergido como potências principais, mas não são as únicas. Na teoria dos jogos sempre dizemos que há uma diferença muito grande entre os jogos com dois jogadores e jogos com mais do que dois jogadores. Mas, portanto, isto é mais uma questão geopolítica do que económica. De facto, estamos numa era muito mais complexa do que era a guerra fria.
O facto de a China não se ter afastado da Rússia nesta guerra não lhe permite ter mais ganhos em termos económicos?
Talvez e, de facto, alguma da ajuda que a China tem dado à Rússia terá algum impacto positivo na economia chinesa. Mas não estou convencido que seja um fator de primeira ordem, comparando, por exemplo, com os problemas que a China está a ter com a pandemia e não creio que isso signifique necessariamente uma aproximação permanente da China à Rússia. Acho que é mais uma questão de conveniência do ponto de vista da China como país, não simplesmente pela economia, mas como nação.
As sanções que estão a ser aplicadas nomeadamente pelos aliados à Rússia penalizam mais a Rússia ou podem penalizar, em termos económicos, mais os aliados e principalmente também os países subdesenvolvidos?
O impacto não é uniforme, portanto é difícil responder à pergunta de uma forma tão abrangente. Em primeiro lugar, como dizia anteriormente, no mundo que inclui múltiplas potências o efeito das sanções será sempre necessariamente menor. Aliás, o que estamos a ver é isso mesmo, porque a Rússia tem utilizado a China e outros países como formas alternativas…
… a Turquia nomeadamente…
… e o Brasil, de certo modo. Este novo equilíbrio enfraquece o efeito de sanções unilaterais ou mesmo multilaterais por parte de um bloco do mundo. E nós estamos a ver isso. A Rússia não tem sofrido tanto como sofreria numa situação em que fosse a única potência para além dos Estados Unidos. Por outro lado, de facto, nós estamos a ver que há países que sofrem e outros que não sofrem. A Europa tem sofrido muito, mas, mesmo dentro da Europa, uns países sofrem mais do que outros. A Alemanha mais do que Portugal, pela questão energética; a Polónia mais do que Espanha, por uma questão de proximidade… Há uma série de fatores de heterogeneidade e, em relação ao países em vias de desenvolvimento, não posso responder com grande precisão, mas só pensando no Brasil: é um país onde a guerra tem tido um impacto muito diferente em relação à Argentina, por exemplo, por questões económicas e por questões políticas, de alinhamento. Por conseguinte, não me parece que haja um efeito homogéneo em todos esses países. Agora, na guerra nunca há vencedores, todos perdem de alguma forma, incluindo os Estados Unidos, incluindo a China.
O que parece certo é que o mundo está a caminhar para uma recessão. Acredita que nos conseguimos afastar dessa recessão ou vê pouca possibilidade de economias como a dos Estados Unidos e da União Europeia não entrarem em recessão?
É difícil responder a isso e devo dizer que a área de ciclos económicos, de macroeconomia, não é a minha especialidade. Mas, em relação ao crescimento económico de curto prazo e em relação à taxa de inflação, eu, normalmente, desconfio muito das pessoas que dizem que sabem ou que têm uma grande confiança sobre aquilo que acontecerá no próximo ano.
Uma inflação que já estava a subir antes da guerra na Ucrânia
Portanto, desconfiou dos bancos centrais quando nos venderam que a inflação iria ser temporária?
Sim. Mas é função dos bancos centrais tentar influenciar o mais possível as expectativas inflacionistas que são, neste momento, uma componente importante da inflação. É evidente que uma pessoa pode ter, e é isso que eles fazem, uma certa estimativa de valores mínimos prováveis ou valores máximos prováveis. Mas, em relação às previsões de inflação e de crescimento económico, fazê-las a mais do que alguns meses é muito difícil. A economia não é como um automóvel. Um automóvel tem uma avaria na estrada, pára e uma pessoa descobre que houve um motivo: foi um mau contacto ou o carburador… Na economia, não há só um fator, são milhares de empresas, milhões de pessoas e, portanto, é muito difícil dizer quais foram as causas. Nós temos tido um crescimento tão elevado na recuperação da pandemia que é natural que venha a haver algum abrandamento porque um pouco deste crescimento foi induzido por uma política semi-expansionista e, na medida em que essa política vá abrandando, e vemos isso também com a política monetária que está a subir a taxa de juro, é natural que haja um abrandamento. Se vamos chamar a isso uma recessão, não sei. Oficialmente, recessão nos Estados Unidos é quando o National Bureau of Economic Research diz que há uma recessão — é uma questão um bocadinho arbitrária, devo dizer. Que haverá um abrandamento, creio que sim. E, em relação à inflação, mais uma vez, estaria de acordo com os bancos centrais que haverá uma tendência para o abrandamento da taxa de inflação. Agora, se me pedir para dar o número, não sou capaz.
Nem um calendário?
Ninguém consegue. As pessoas dizem que foi a guerra na Ucrânia a causa da inflação, e isso eu acho que se pode dizer que não — pelo menos, não principalmente. Se olharmos para os números, o crescimento de preços era uma coisa que se estava a dar bem antes da invasão da Ucrânia.
Que papel tiveram os bancos centrais para o início da trajetória de subida de preços ao injetarem dinheiro nas economias?
Mais uma vez, é difícil, porque há muitos fatores. Essa política é anterior ao começo da inflação, as taxas de juro igual a zero já vêm desde há vários anos. Talvez tenhamos aí as condições básicas, mas não foi o gatilho que fez disparar a inflação. A explicação mais simples e plausível para o espoletar da inflação é a política expansionista dos Estados na pandemia. E devo dizer que foi em grande parte previsível. Nos Estados Unidos, que acompanhei mais de perto, a política de enviar cheques para todas as pessoas levou a que se discutisse desde o princípio a possibilidade de levar a pressões inflacionistas, não foi uma surpresa completa.
E agora a limpeza de empréstimos aos estudantes também contribui para isso, não?
Contribuirá (ainda não está implementado). E terá ainda outros efeitos negativos… Mas, em relação à inflação, não foi uma completa surpresa. Uma vez que começa um processo inflacionista entramos com outro aspecto que é o das expectativas inflacionistas. Houve dois fatores, o da política expansionista fiscal mas também os problemas das cadeias de valor. O que levou a um problema do lado da procura, mas também a um do lado da oferta — uma retração grande da oferta de muitos produtos devido aos problemas logísticos.
Foi um choque de oferta e procura em simultâneo, o que não aconteceu nas últimas crises inflacionistas.
Não com esta dimensão.
As ferramentas da política monetária estão adequadas a uma inflação provocada por um choque de oferta?
As ferramentas da política monetária, em princípio, funcionam para quaisquer desequilíbrios entre oferta e procura. Com este aspeto adicional de que a inflação é um fenómeno muito complicado. É um pouco como em física eu utilizar a mecânica clássica para analisar a realidade subatómica — quando se chega aí, a mecânica clássica já não funciona. Na economia, temos um modelo base que funciona, em geral, para a análise de muitos aspetos económicos, mas quando chega a questões como inflação começa a patinar porque já não é uma questão apenas de oferta e procura — também é, e aliás o espoletar da inflação foi em grande parte, um fenómeno de oferta e procura, mas depois entra o fenómeno das expectativas, que é um fenómeno de psicologia social… Por isso é que desconfio muito dos economistas que sabem dizer exatamente qual será a taxa de inflação no próximo ano, porque neste momento não é simplesmente uma questão de economia. Mais. Nós estamos perante uma geração, abaixo de uma certa idade, que nunca viu taxas de inflação e portanto é um fenómeno a que já não estávamos habituados há muito tempo. É um problema que em Portugal e na Europa não existe desde há muito tempo. Por conseguinte, é muito difícil dizer como é que, em termos de expectativas, nos vamos adaptar a este fenómeno — que também é um fenómeno de psicologia social — e em que medida é que a narrativa dos bancos centrais irá ajudar, de facto, a controlar essas expectativas inflacionistas.
Significa isso que vai também haver mudanças no estudo da economia, precisamente por esse fator de imprevisibilidade?
Penso que não. O que vai levar é as pessoas a lerem capítulos dos livros que não liam há muito tempo, porque estes capítulos foram escritos. Ainda me lembro da inflação de 25% em Portugal… E, portanto, nós estudávamos isso. Era uma grande parte da cadeira de macroeconomia, não era apenas uma aula, eram várias semanas, mas depois deixámos de dar muita importância a isso porque estávamos numa economia com 1-2% de inflação, que é uma taxa normal, e passou a ser um problema de segunda ordem. Agora é um problema de primeira ordem novamente.
A Fed e o BCE estão a atuar bem para a redução desta inflação? Ou nomeadamente o BCE começou a atuar um pouco tarde?
Francamente, não sei. Essa é uma das perguntas em que a resposta tem de ser “por um lado isto, mas por outro lado aquilo”. Este equilíbrio ótimo entre a mão direita e mão esquerda é complicado e, nesse sentido, confio mais nas pessoas que tratam disso, eu sou uma pessoa mais da área de análise microeconómica e portanto dou alguma credibilidade às pessoas que estão na Fed e no Banco Central Europeu. Há sempre razões para atuar mais depressa e razões para atuar mais tarde. Há aqui sempre um equilíbrio. E, mais uma vez, quando se trata de questões de expectativas inflacionistas não é apenas uma questão de oferta e procura, não é uma questão apenas de economia simples, é uma questão de psicologia social, tem muito a ver até mesmo com o carisma das pessoas que estão à frente das instituições.
E estas são carismáticas?
Não os conheço suficientemente bem para dar uma resposta. A posteriori, podia dizer que Mário Draghi foi uma figura carismática enquanto presidente do BCE. A clássica afirmação em 2012 de que “Vou defender o euro até à morte, custe o que custar”…
Whatever it takes…
É uma afirmação carismática e há momentos certos para fazer essas afirmações. Em princípio, não há nada que ele tenha dito que fosse uma medida quantitativa mensurável de economia mas foi o que disse, no momento em que disse, e como disse.
A tal confiança…
A tal confiança que gerou de facto um efeito real na economia real, mas que começou por uma medida que não é real, era apenas uma afirmação que tem a credibilidade que tem. Isto é uma área em que o modelo clássico da economia não tem muito a dizer, entramos aqui em outras áreas, nomeadamente na psicologia social, na comunicação, que não são facilmente mensuráveis e não são facilmente explicáveis como modelo clássico de economia.
Portugal mudou muito em 30 anos
Quando vem a Portugal consegue sentir o pulso da economia ou parece-lhe tudo mais ou menos na mesma?
Nota-se uma grande diferença em Portugal ao longo dos anos. Nesta minha segunda estada fora de Portugal — são 30 anos, agora — o país mudou muito, muito. Mesmo vindo a Portugal com alguma frequência, nota-se essa diferença. Ao nível de 30 anos, a maior diferença que se encontra em Portugal é a extraordinária explosão de capital humano que se deu no país, no tecido universitário, na investigação científica, em todas as áreas relacionadas com conhecimento humano. Em 1974, Portugal era uma economia agrícola — era o setor com maior emprego no país — e mudou completamente. Muitas economias no mundo também mudaram, ficaram mais uma economia de serviços, mas acho que em Portugal esse fenómeno é muito sensível.
E é bom para o país ser muito dependente dos serviços, nomeadamente do turismo?
Acho que há uma aposta natural e certa em ser um país de serviços, mas não necessariamente só no turismo. A dependência exclusiva do turismo é potencialmente problemática. Esta semana estive com uma antiga colega da universidade que está no setor hoteleiro e ela dizia-me, com piada: “Eu não tenho clientes. Uma pessoa que vem hoje ao hotel não vem no próximo ano. Uma empresa que faz um evento no meu hotel já não faz no próximo ano”. Portanto, não tem esta regularidade de clientes. E isto de facto reflete este aspeto muito precário da indústria do turismo, que não tem clientes estáveis. A economia portuguesa continuará a ser uma economia de serviço mas nós temos, por um lado, de diversificar esses serviços para além do turismo; e, por outro, direcionar para um turismo de clientes, ou seja, de pessoas que passam uma temporada e não simplesmente um fim de semana para ir à praia ou pessoas que se reformam em Portugal ou pessoas que vivem em Portugal em part time mesmo que tenham um emprego fora — como agora muitos californianos estão a fazer quando vêm para Portugal passar vários meses. Nós temos de adquirir clientes no setor do turismo. Nós ainda não temos muitos clientes.
E pode ser pela via fiscal? Acha bem os incentivos fiscais que são dados a esse grupo de pessoas?
É uma estratégia conhecida em muitos setores. A Uber quando começa em Portugal também o faz com preços mais baratos, é assim que consegue convencer as pessoas a utilizar o sistema e criar uma certa base de clientes. Quando essa base de clientes vai aumentando e começa a ter uma certa segurança e começa a ser conhecida… Aliás, uma das coisas que reparei esta semana é que os preços do Uber já estão acima dos preços do táxi, o que não era verdade da última vez que vim cá. Por analogia, no caso do sistema fiscal acho que é uma estratégia viável e promissora e acho que tem sido bem aplicada, mas o nosso objetivo será chegar a um ponto em que Portugal é suficientemente atrativo para que um escritor americano, ou um professor de matemática, ou um CEO, ou um programador de software queira viver em Portugal e o queira fazer pelo que encontra em Portugal de concentração de talento, de clima, de infraestruturas, de habitação e não necessariamente pelos benefícios fiscais. O objetivo é chegar a um ponto em que os benefícios fiscais não sejam o ponto central e não sejam necessários.
Não sei se tem acompanhado a evolução das contas públicas nacionais, mas acha que já estão neste momento preparadas para estes choques que temos estado a ter na economia mundial?
Noto que as contas públicas registaram uma melhoria significativa em relação aos tempos da crise do euro e aos tempos pós crise do euro, portanto isso é de salutar e de celebrar. Ter as contas certas é muito importante, é um fator muito importante para a estabilidade da economia. A última coisa que nós queremos é ter outra crise do euro. Estas crises, tal como a inflação, geram-se muito na base de expectativas. O Paul Krugman escreveu uma memória, quando morreu o professor Silva Lopes — Krugman enquanto era aluno do MIT trabalhou no Banco de Portugal, num programa que o Banco de Portugal teve durante alguns anos que trazia alunos dos Estados Unidos e Paul Krugman fez parte da primeira geração de alunos que vieram a Lisboa e o prof. Silva Lopes era o coordenador –, a lembrar uma frase que o prof. Silva Lopes dizia: “Quando tenho reservas externas apenas para seis meses não tenho reservas externas”. Quer dizer, se se gera um problema de expectativa, se as pessoas pensam que não vou ter reservas externas, há uma corrida, na altura, naturalmente contra o escudo. Muitos destes fenómenos financeiros e de inflação estão muito baseados em expectativas e, portanto, a questão de ter uma situação fiscal e de dívida pública estável não é apenas uma questão de ser um bom contabilista, é que tem uma importância muito grande como defesa contra este tipo de ataques especulativos que nós queremos evitar a todo o custo porque já vimos que têm um custo enorme para a economia. Por conseguinte, acho que estamos muito melhor, mas agora qual é o número certo de percentagem do PIB que a dívida deve ter não sei, varia muito de país para país — os Estados Unidos têm uma dívida muitíssimo superior em percentagem do PIB que Portugal, mas podem tê-la. Portugal não tem essa possibilidade de gerir uma moeda e de emitir uma moeda de aceitação mundial, é uma pequena diferença entre os dois países, já para não falar da dimensão da economia. Baseado na experiência que temos tido nas últimas décadas, não há risco zero, mas também não é assustador, portanto é uma questão de continuar com uma política responsável, como temos tido nos últimos anos, e esperar que não haja nenhuma nova crise do euro.
Há uma grande discussão em Portugal sobre os valores do défice e da dívida. Os partidos da oposição, nomeadamente, argumentam que deviam aumentar ligeiramente para se conseguir ajudar as pessoas por causa da subida da inflação. Esta economia de resgates [bailout] que desde a crise financeira se vulgarizou pelos Estados é positiva ou tem de haver alguma contenção nestas políticas de resgates, quer às empresas quer às pessoas?
Talvez o aspeto mais importante e mais característico, da perspetiva económica da realidade, é o trade off, o custo de oportunidade. Quase tudo na economia é uma questão de trade off e o bailout tem esse grande problema — tem um efeito positivo no curto prazo, mas tem um efeito negativo no longo prazo, portanto vai ser uma questão de comparar um com o outro. Por exemplo, o perdão da dívida dos estudantes nos Estados Unidos que referiu anteriormente é também um caso — e os economistas têm tido uma grande discussão nos Estados Unidos em relação a isso. É verdade que muita da dívida dos estudantes americanos foi o resultado até de fraude, em que universidades privadas foram criminosas — com todas as letras, criminosas — a prometer o que não poderiam ter prometido, a enganar os alunos também na forma como os empréstimos foram feitos e eu compreendo que o Governo queira ter esta iniciativa de salvar as pessoas que têm uma vida miserável neste momento, têm um emprego e têm de pagar uns juros que é uma fração muito grande da compensação que auferem. Isto é o efeito de curto prazo claramente positivo, mas o efeito negativo é a questão: não será isto um incentivo para os estudantes se endividarem ainda mais no futuro? O pior que pode acontecer é eu ficar com uma grande dívida e pensar que depois há de haver um governo futuro que vai fazer o bailout.
Já não estamos todos à espera que haja sempre um bailout futuro?
Há mais pessoas que estão à espera desse bailout, ou a probabilidade de uma pessoa esperar que esse bailout exista é maior. De cada vez que há um bailout estamos a criar este custo para o futuro. É preciso tomar muito cuidado com a forma como isso é feito. Há uma diferença muito grande entre bailout de pessoas e bailout de empresas. A economia deve defender a pessoa, e deve defender a empresa na medida em que seja importante para a pessoa, mas são duas questões muito diferentes. Numa empresa que não tem viabilidade económica, o contraste entre o possível benefício [do bailout] de curto prazo e o custo de longo prazo é ainda maior. Nós pensamos que estamos a ajudar aquela empresa e aquelas pessoas que estão naquela empresa, e de alguma forma é verdade, mas estamos a fazê-lo a um custo tão grande que, na minha opinião, não compensa nem economicamente nem do ponto de vista de justiça — porque nós pensamos que é uma injustiça para com estas pessoas, mas então e a geração seguinte que vai ter, de alguma forma, de pagar em forma de impostos ou de outra forma qualquer? É um bocadinho como as alterações climáticas — a justiça climática é uma justiça entre países ricos e países pobres, mas também é uma justiça entre a geração presente e a geração futura. Não podemos pensar apenas de um lado.
Esses resgates também são uma questão concorrencial entre blocos? Ou seja, se os Estados Unidos fizerem resgates às companhias de aviação e a Europa não fizer vai haver um choque concorrencial?
Quando se trata de empresas que concorrem internacionalmente é verdade. Aliás, o caso da Airbus e Boeing, do qual eu fui um dos peritos, foi interessante porque é claramente um caso de apoios financeiros e resgates a empresas que competem diretamente e tem essa dimensão adicional que refere e com razão. Neste ponto concreto, foram dois casos. No mesmo dia, horas depois de o Presidente Bush pôr em tribunal a União Europeia, a União Europeia pôs o presidente Bush em tribunal. Os casos demoraram vários anos e o resultado final foi que eram ambos culpados.
Tributar mais o património e menos o trabalho
Nesta atual crise têm sido adotadas as chamadas taxas por lucros excessivos. Concorda que existam estas taxas às empresas, nomeadamente à banca, ao retalho e à energia?
Correndo o risco de me repetir, é mais um caso em que temos de comparar o possível benefício inicial com um possível, diria mesmo provável, custo posterior. O problema da tributação é que, por um lado, há o benefício de conseguir receitas fiscais que podem ser utilizadas de formas maravilhosas — como distribuir aos mais necessitados ou fazer resgates de pessoas ou empresas que precisam. O custo é o dos incentivos que isso cria ou a falta de incentivos que isso cria. É difícil medir isso, mas em geral a tributação do capital tem esse grande problema, de reduzir os incentivos para investimento futuro ou até para relocalização do capital. A concorrência fiscal, na minha opinião, é um dos problemas que poderiam e deveriam ter sido já resolvidos a nível internacional.
No âmbito da OCDE, nomeadamente?
Ou do G20, ou da OCDE, ou da União Europeia.
Como o acordo a que se conseguiu chegar para a taxa mínima de 15% de IRC?
A taxa mínima foi um pequeno passo. Penso que deveríamos fazer mais, não só em relação à tributação do capital, mas também em relação à tributação das pessoas.
Sem ter uma bola de cristal, acha mesmo que a taxa mínima de 15% de IRC vai ser aplicada? Quão cético é em relação a esses acordos?
Sou bastante cético. É um bocadinho como os acordos do clima. Tenho grande respeito pelas pessoas que estão no Cairo, que estiveram em Tóquio, no Rio, mas até haver alguma coisa que faça doer estes acordos são muito pouco eficientes, efetivos e eficazes. A solução mais promissora será a utilização da Organização Mundial do Comércio porque, historicamente, é talvez o instrumento mais eficaz para conseguir induzir países soberanos a tomar decisões que de outra forma não tomariam. Porque é que a China começou de repente a respeitar os direitos de propriedade? Foi porque a OMC disse que se quer ser membro de pleno direito tem de implementar estas medidas. Neste contexto, talvez isso pudesse também ser aplicado à tributação. Voltando ao clima, se eu tenho um sistema de comércio e abrir uma exceção de que posso aplicar uma taxa de importação adicional a um país que não respeita ou não aplica uma série de ações que foram acordadas, então aí já teria maior esperança que fosse aplicado. Se qualquer país pudesse colocar uma taxa seletiva de importações à China ou aos Estados Unidos até eles implementarem algumas das medidas do acordo, penso que isso poderia ter algum efeito de mexer no ponteiro das alterações climáticas.
A nível da concorrência fiscal devia caminhar-se para onde? Para uma taxa mínima maior, para uma taxa mínima de 15% mas extensível a mais países?
O primeiro passo seria que, de facto, fosse aplicável a todos os países, que não houvesse exceções. Não tenho uma varinha mágica, mas pessoalmente talvez pusesse uma taxa superior a essa. Aliás, do ponto de vista da reforma fiscal, uma das várias medidas que proporia seria uma redução da tributação do trabalho nas empresas compensando com uma maior tributação do rendimento da empresa, para que fosse mais ou menos neutro em relação à competitividade das empresas. Isso provavelmente levaria a uma taxa de IRC superior à atual e, se pudéssemos convergir para um valor superior a 15%, eu seria favorável, mais uma vez, compensando, por exemplo, com as empresas a deixarem de descontar para a segurança social e deixarem de ter todos os encargos laborais que atualmente têm e que são um grande entrave à criação do emprego.
Mas como é que financiava, depois, a segurança social?
Se esta variação fosse neutral em relação às empresas haveria receitas superiores. Mas, já que estamos a falar em questões fiscais, penso que, embora Portugal não esteja muito longe da média da OCDE em relação à tributação sobre a propriedade, é uma área em que no futuro Portugal deveria investir. Primeiro, com um maior controlo. Depois, com uma taxa superior, porque de um ponto de vista de economia idealmente gostaríamos de colocar taxas superiores em recursos económicos que têm uma menor elasticidade face à taxa de imposto. O problema de tributar o trabalho é que é mais difícil encontrar empregos. O problema de tributar a atividade económica é que as pessoas deixam de ter incentivos para investir. Na tributação da propriedade, a alternativa é uma pessoa ir para Espanha ou ir para outro sítio. Não tenho essas contas feitas, mas tenho a impressão que a elasticidade de procura de propriedade é inferior e é menos nocivo à atividade económica do que a tributação quer do trabalho quer dos lucros das empresas.
Mantendo o enquadramento como está, sem outras compensações, a taxa de IRC em Portugal devia ou poderia baixar?
Aí é que está a ligação com o problema anterior. Acho que faria sentido se nós conseguíssemos um acordo internacional para uma taxa superior mínima do IRC, porque senão é muito difícil. Voltamos outra vez ao problema. Estou convencido de que muitos países beneficiariam de uma reforma deste tipo, mas é muito difícil implementá-la se for unilateral, esse é que é o problema.
A regulação e a concorrência são temas que tem estudado. Há um grande debate em Portugal atualmente sobre a independência dos reguladores, nomeadamente do Banco de Portugal. Numa análise geral, e do que conhece, os reguladores em Portugal parecem-lhe independentes? Têm as ferramentas certas para serem independentes?
O meu conhecimento dos reguladores em Portugal é um pouco limitado e é muito enviesado em relação à Autoridade da Concorrência, a agência que eu acompanhei desde o início, desde que o professor Abel Mateus foi o primeiro presidente. Em relação à Autoridade de Concorrência, não sei se é um caso exemplar ou não. Parece-me que as condições básicas não estão ainda expostas.
O que falta?
Autonomia financeira. Essa seria uma área em que eu tentaria criar um sistema ou com uma dotação fixa ou uma forma de financiamento que não fosse dependente de autorização de outras entidades, certamente não numa base anual, mas a cada cinco anos fazer uma revisão. Em relação a outras agências, não sei assim tão bem. Mas a experiência que tive com a Autoridade da Concorrência é que não estamos ainda realmente numa situação que possamos chamar verdadeiramente de independência.
E em relação à nomeação das pessoas para esses reguladores? Normalmente são nomeadas pelo governo. É o método adequado?
É uma forma possível. Quando a nomeação é feita por um governo, na medida em que for escalonado — como por exemplo na Fed nos Estados Unidos ou na FTC, que tem uma série de comissários mas não são todos nomeados de uma vez, é um de cada vez — permite uma certa independência porque não há um governo específico que domine a nomeação de todas as pessoas que vão estar a atuar numa certa agência. Isso é uma possibilidade. A outra, que na minha opinião seria preferível em Portugal, seria a de haver um comité, até incluindo vários não nacionais, que fosse encarregado de fazer essa nomeação. O país é muito pequeno, tanto em número de habitantes como também do ponto de vista social. É até mais pequeno do que um país com 10 milhões sugeriria. Não estou a dizer isso como uma coisa má, agora implica que, quando se trata de situações de independência institucional, temos de ir um pouco mais além do que outros países iriam.
Faria sentido ter concursos públicos internacionais para a nomeação destes reguladores?
Há 30 anos teria muita dificuldade em atrair um regulador estrangeiro a Portugal, mas neste momento há muito menos. Só que também depende da maneira como isso é implementado.
É também uma questão cultural?
Um bocadinho, mas demora algum tempo. Nesse sentido, sinto um grande respeito pela Inglaterra, onde vivi durante vários anos, que foi o primeiro país a nomear um presidente não inglês para a autoridade da concorrência.
E um governador do Banco de Inglaterra.
Sim. Mas antes disso na autoridade concorrência.
Mário Centeno passou diretamente do Ministério das Finanças para governador do Banco de Portugal. Belisca a independência do Banco de Portugal?
Não necessariamente. Mais uma vez, desculpe a repetição, mas é uma questão de “por um lado mas por outro”. Há vantagens e desvantagens, há um trade-off. É relativamente semelhante às chamadas portas giratórias, entre os reguladores e as pessoas que estão na indústria. Não é a mesma coisa, eu sei, mas conceptualmente é um fenómeno semelhante. Qual é a grande vantagem de permitir que uma pessoa que trabalhou neste setor trabalhe para o regulador deste setor? É o conhecimento técnico, porque sabe o que está a fazer.
E qual é a desvantagem?
Há mecanismos que tentam balancear isso, há períodos de nojo. Em relação à passagem do governo para uma entidade como o Banco de Portugal, há vantagens e desvantagens. Ter tido experiência governamental é uma mais-valia muito importante para uma pessoa que vai ser governador porque tem um conhecimento da realidade que muito poucas pessoas têm. Mas tem desvantagens? Tem, especialmente se o governo em questão tem um primeiro-ministro do mesmo partido ou até o mesmo primeiro-ministro. Nesse sentido, teria mais problemas, mas vejo que pode haver vantagens. Em última análise também é uma questão de personalidade. Esta questão da independência tem muito a ver com a independência financeira dos reguladores, com outros aspetos legais e institucionais, mas também tem muito a ver com a credibilidade da pessoa em si.
Vem aí a globalização 4.0
Para finalizar, gostava de falar de outro tema do nosso mundo atual, que é o poder das big tech. Deve-lhes ser retirado esse poder ou, pelo menos, algum desse poder?
O ideal da política de concorrência no que respeita às big tech é conseguir evitar o abuso de poder de mercado que tem existido sem perder um enorme valor que foi criado.
É um trade-off difícil?
É muito difícil. Neste caso, já não é um problema simplesmente para a autoridade da concorrência, é um problema de um poder que vai muito para além do poder económico. Tenho esta teoria um pouco louca de que a globalização 4.0 — que é a que vai aparecer no resto deste século —, ao contrário da globalização 1.0, 2.0 e 3.0, vai retirar do centro de valor o país para passar a ser um indivíduo. Isto é um bocadinho assustador, mas nós já começamos a vislumbrar as primeiras manifestações disso. Quando vemos o poder de empresas como o Facebook ou o Google, o poder não é só da empresa mas é também de pessoas concretas que têm um poder muito grande sobre essas empresas. Às tantas, já não é um problema simplesmente de margens de lucro e de preços ao consumidor, é um problema mais grave porque depois também tem a ver com controlo de informação, com dados, com notícias e de como a informação é apresentada às pessoas. São problemas que vão para além da concorrência em si. Esta parte da privacidade e das fake news é um problema que tem de ser discutido a nível político, que já não é um problema simplesmente de concorrência, é um problema muito mais complicado.
E a nível de concorrência?
A União Europeia tem feito muito melhor trabalho que os Estados Unidos. Há um livro de um colega meu, que é o Thomas Philippon — The Great Reversal — que recomendo vivamente. O título resume tudo. Os Estados Unidos durante o século XX foram os líderes mundiais da política de concorrência e foram eles que ensinaram o resto do mundo como é que se faz antitrust [política antimonopolista]. Mas, desde o final do século XX, a União Europeia claramente tomou a liderança e tem tido muito mais ambição, temos tido bons comissários da concorrência — que, aliás, a seguir ao presidente da União Europeia é, de facto, o lugar mais importante, de longe, porque é aquele que realmente morde. Fizeram-se erros, inevitavelmente, mas temos tido bons comissários da concorrência. Ainda ontem estive numa conferência a discutir o Digital Markets Act [DMA], que poderá ser um momento muito importante no que respeita à big tech. Mas agora, como se diz em inglês, the devil is in the detail [o diabo está nos detalhes]. Como é que isto agora se vai transformar…
Em algumas entrevistas mostrou-se contra um desmembramento dessas grandes empresas, como aqui há uns se tentou fazer com a Microsoft.
Sim, tenho sido crítico em relação ao desmembramento e também tenho sido crítico em relação à política radical de aquisições. As cinco big tech, se incluirmos a Apple, Amazon, Google, Facebook e Microsoft, adquiriram cerca de 1000 empresas neste século. Mil aquisições são muitas aquisições. E nenhuma foi bloqueada… até ao ano passado, quando o regulador inglês bloqueou a compra da Giphy pelo Facebook. Portanto, uma em mil… De facto, tem havido uma política possivelmente muito soft em relação a aquisições. As pessoas dizem que o WhatsApp ou o Instagram não deviam ter sido comprados pelo Facebook e a Waze talvez não devesse ter sido comprada pelo Google. A senadora americana Elizabeth Warren tinha uma proposta de bloquear praticamente todas as compras. Acho que isso seria desastroso para o ecossistema de investigação de startups, que necessitam muito desta possibilidade de serem adquiridas por grandes empresas, muitas vezes é a única forma de ter acesso ao mercado. Sou muito mais favorável à abordagem que a União Europeia propõe – o DMA não fala praticamente sobre aquisições, é essencialmente sobre a relação direta de empresas e sobre o abuso da posição dominante. Essa é a área em que deveremos atuar mais. É muito mais difícil regular o abuso de posição dominante no contexto digital do que em indústrias mais tradicionais. Como é que posso demonstrar que o motor de pesquisa da Google favorece empresas da Google ou que o motor de pesquisa da Amazon favorece produtos da Amazon? É muito difícil dizer porque o algoritmo não é uma coisa que o regulador possa ver.
Os desafios de investigação são maiores?
Muito maiores. Quando foi o caso da Microsoft em 1998, um dos remédios propostos, mas que não foi implementado, foi o de que especialistas de ciência da computação estivessem na própria empresa como delegados do Departamento de Justiça. Depois, George Bush essencialmente arquivou o processo e isso nunca aconteceu. Mas eu até disse na conferência: “Leave it to the nerds” [deixem isso para quem percebe]. Chegou uma altura em que não são os advogados, não são os economistas, nós precisamos é dos que realmente sabem de ciências de computação e de análise de dados. Eles é que nos precisam de ajudar agora, porque é muito difícil a um tribunal monitorizar e compreender como e em que medida é que estas empresas estão realmente a abusar da sua posição, porque muitos desses mecanismos são pouco visíveis do ponto de vista externo.
Falou na globalização 4.0. Isso significa que a globalização não acabou? Quem decretou a morte da globalização fê-lo muito cedo?
Claramente. A pandemia é o acontecimento mais importante ultimamente mas não é o fim da história e não é uma tendência. A pandemia acelerou algumas tendências, é verdade, como por exemplo o trabalho remoto, mas espero que o futuro seja mais normal. Tivemos os Descobrimentos, que foram a globalização 1.0; tivemos a revolução industrial, a produção em massa, os contentores, os grandes navios, que foram a globalização 2.0; tivemos as multinacionais, as transferências de capital, de serviços no século XX, que foram a globalização 3.0; e nós estamos agora gradualmente a tender para uma economia em que os espaços têm menos importância, em que a localização física da atividade económica é menos importante — nós já temos um iPhone que é designed in California, que é a única maneira de pôr a palavra Califórnia ali, porque ele é todo feito na China. É uma economia em que podemos ter um médico na Índia a fazer uma operação a um doente que está em África. Podemos ter um professor de matemática da universidade Stanford a viver no Alentejo.
Já estamos nessa fase?
Cada vez mais temos esta economia. Sendo uma economia principalmente de serviços, a localização física da produção passa a ser secundária — e isso muda muito as coisas. Ainda estamos longe de chegar aí, mas os parâmetros mudam muito. Isto é um bocadinho filosófico, mas a ideia é a de que, na globalização 4.0, o centro de poder vai-se gradualmente desviar do país para o indivíduo. Isto é muito perigoso e é um desafio enorme do ponto de vista económico, social, político. O outro ponto que me parece interessante é que, embora o poder vá deixar de estar tão centrado na nação, diferentes países ou diferentes partes do mundo serão mais ou menos beneficiados por este movimento para a globalização 4.0. E acho que Portugal está claramente no topo da lista dos grandes beneficiados com a globalização 4.0. Nós temos a localização, temos o clima, temos o sistema de saúde, temos espaço, temos um capital humano ótimo — as pessoas formadas falam inglês —, estamos próximos dos sítios certos, temos o fuso horário melhor para globalização porque podemos fazer negócios com a China e com Califórnia. As condições estão aí é uma questão de as aproveitar.