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Várias instituições da Igreja têm o estatuto de organismo de utilidade pública

SOPA Images/LightRocket via Gett

Várias instituições da Igreja têm o estatuto de organismo de utilidade pública

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Mais de 1.300 instituições da Igreja têm obrigação legal de denunciar qualquer suspeita de crime — mas os bispos não

A lei portuguesa obriga responsáveis de organismos de utilidade pública, incluindo IPSS, a denunciar crimes. Centenas destes são católicos. A obrigação civil não abrange os bispos, mas a canónica sim.

Qualquer cidadão que não denuncie um crime de que tenha tido conhecimento poderá ser condenado por omissão e, nalguns casos, ser considerado cúmplice. A lei prevê ainda uma obrigação acrescida de denúncia por parte dos funcionários públicos ou equiparados — onde se incluem responsáveis de centenas de instituições religiosas de utilidade pública.

Nos últimos dias, as instituições da Igreja que foram chamadas a reagir às suspeitas de encobrimento de dois casos de abuso sexual por parte de membros do clero tiveram uma resposta comum. Na carta aberta que o cardeal-patriarca de Lisboa publicou na sequência de uma notícia do Observador, D. Manuel Clemente garantiu que o seu antecessor cumpriu todas “as recomendações canónicas e civis da época”, quando uma vítima lhe contou ter sofrido abusos por um padre. Também a diocese de Setúbal veio repudiar as acusações de “ocultação” ou “encobrimento” por parte do seu bispo emérito na sequência de uma notícia do Expresso, garantindo que “o processo de averiguação” das suspeitas que lhe chegaram “decorreu no cumprimento das orientações canónicas e civis em vigor à data”.

Sendo que pelo crime de omissão casos como o de D. Manuel Clemente não podem ser levados à Justiça, porque o crime de abuso já prescreveu, o Observador foi perceber a que obrigações “civis e canónicas” se referem as respostas da Igreja?

De acordo com a lei portuguesa, segundo vários juristas contactados pelo Observador, apesar de todos os cidadãos terem o dever moral de comunicar às autoridades policiais um crime de que tenham conhecimento, a lei só prevê a obrigação de denúncia para funcionários públicos ou equiparados. E, mesmo assim, caso esta denúncia não seja feita, a única punição possível é de teor disciplinar.

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As notícias dos últimos dias levaram diferentes dioceses católicas a garantir que cumpriram as normas civis e canónicas vigentes

AFP/Getty Images

Só há lugar a responsabilidade criminal, punida com pena de prisão, num caso muito concreto: quando um agente policial, no exercício das suas funções, comete um crime contra a humanidade, como é o caso de tortura, com o conhecimento do seu superior hierárquico e este não o denunciar. Neste caso, não denunciar pode valer uma pena de cadeia entre os seis meses e os três anos — que na verdade poderá ser uma pena suspensa, por ser inferior a cinco anos.

Denúncia de abusos ocultada pelo patriarca. O que pode (ou podia) a justiça da Igreja Católica fazer?

Foram, aliás, estas as questões levantadas pelo Ministério Público quando pensou em acusar dirigentes do Corpo Nacional de Escutas e da Igreja Católica e, em junho de 2014, acusou o pároco da Golegã de dois crimes de abuso sexual de crianças agravado. No despacho de arquivamento, o procurador Teotónio Reis da Silva afirmou ter ponderado a eventualidade de uma acusação pelo crime de omissão de denúncia contra aqueles que, tendo conhecimento do caso, se limitaram a fazer um relatório interno e não denunciaram o caso à polícia.

Conclusão a que chegou o magistrado: o crime de omissão de denúncia só se aplica a crimes contra a humanidade. “A incriminação justificou-se por o direito português não acolher em termos gerais uma obrigação de denúncia”, lê-se no despacho, em que cita vários autores. “Concluímos não acolher, o  nosso ordenamento criminal/penal, um tipo de crime de omissão de denúncia nos termos gerais no caso de omissão de denúncia de crimes de abuso sexual de criança”. Sem forma de acusar os responsáveis dos escuteiros, o Ministério Público limitou-se a acusar o padre.

Para o advogado Nuno Sá Costa, que já foi deputado, a Assembleia da República deveria debruçar-se sobre este tema e promover mesmo uma alteração ao Código Penal. “A tortura é um crime demasiado grave, mas no caso de abuso sexual também se justificava a obrigação de denúncia. Se o crime existisse, já muitas pessoas tinham sido acusadas por ele”, disse em declarações ao Observador.

Mas vamos por partes.

Só os funcionários públicos são obrigados a denunciar

De acordo com o Código do Processo Penal, a denúncia só é obrigatória para os funcionários, uma expressão habitualmente entendida como dizendo respeito somente aos funcionários públicos. Todavia, este conceito tem-se tornado mais abrangente ao longo do tempo. Se antes incluía, além de todos os funcionários públicos civis e militares, juízes do Tribunal Constitucional e de Contas, magistrados e até notários; em 2021 foi alargado o âmbito de aplicação e passou a incluir “quem, mesmo provisória ou temporariamente (…), desempenhar ou participar no desempenho de função pública administrativa ou exercer funções de autoridade em pessoa coletiva de utilidade pública, incluindo as instituições particulares de solidariedade social”.

Esta disposição legal inclui assim os responsáveis pelas IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social), que não são entidades públicas mas às quais é reconhecida uma utilidade pública pela missão que desempenham, bem como a outras instituições que recebam este estatuto. “Tem vindo a considerar-se que deve integrar-se nessa função lata, não apenas o paradigmático funcionário público, mas os privados que tenham esse relacionamento com as entidades públicas. Diria que as misericórdias também estarão aqui incluídas. Fora disso não há obrigação de denúncia. A Igreja, no geral, não está obrigada a denunciar. Só quando institui uma IPSS”, explica ao Observador o especialista em direito público José Luís Moreira da Silva.

"A tortura é um crime demasiado grave, mas no caso de abuso sexual também se justificava a obrigação de denúncia. Se o crime existisse, já muitas pessoas tinham sido acusadas por ele."
Nuno Sá Costa, advogado

Assim, “o padre responsável por determinada IPSS poderá estar obrigado à denúncia, mas não o bispo da diocese onde está determinada IPSS”, explica José Luís Moreira da Silva ao Observador.

Ainda assim, esta obrigação não encontra no Código Penal qualquer pena correspondente. “Como são funcionários públicos, são sujeitos ao regime disciplinar e, ao violar lei, podem incorrer em responsabilidade disciplinar”, acrescenta o advogado. Poderão, porém, ser responsabilizados e vir mesmo a ser obrigados a pagar uma indemnização às vítimas, “caso exista a lesão de um direito”, esclarece.

Mais de 1.300 instituições da Igreja Católica obrigadas a denunciar crimes

Dentro deste universo das “pessoas coletivas de utilidade pública”, que inclui todas as IPSS e um conjunto de outras organizações da sociedade civil que o Estado considera serem de utilidade pública, enquadram-se centenas de instituições da Igreja Católica, muitas delas lideradas ou integradas por membros do clero.

A situação mais óbvia é a dos centros sociais e paroquiais, que existem em múltiplos pontos do território português e que, em muitos lugares, são a única resposta social existente no que toca a valências como lares de idosos, creches, gabinetes de psicologia e outros serviços. De acordo com o último relatório estatístico da Segurança Social, existem em Portugal um total de 975 centros sociais e paroquiais. As estatísticas da Conferência Episcopal Portuguesa dizem que o universo católico nacional é composto por 4.378 paróquias, o que significa que um quinto das paróquias têm um centro social paroquial. Por norma, os centros sociais paroquiais são instituições ligadas diretamente à paróquia e, por isso, lideradas pelo pároco — que é habitualmente, por inerência, o presidente da direção. Tendo em conta que os centros sociais paroquiais são IPSS e organismos de utilidade pública, as suas figuras de autoridade, que incluem o padre e os responsáveis com cargos de direção ou coordenação, por exemplo, estão abrangidos pelo regime de denúncia obrigatória de todos os crimes de que tenham conhecimento no exercício das suas funções. Pense-se, por exemplo, num caso de abusos de menores numa creche paroquial: aí, existe obrigação de denúncia por parte dos seus responsáveis.

Mas os centros sociais paroquiais não são o único tipo de instituições da Igreja a que este regime se aplica. Outro tipo de IPSS com ligação eclesiástica são as irmandades de Misericórdia — são 345 em todo o país, de acordo com o mesmo relatório estatístico da Segurança Social.

A este universo composto pelas IPSS católicas somam-se todas as organizações da Igreja Católica que têm o estatuto de utilidade pública. São muitas — a pesquisa pode ser feita no portal dos serviços públicos do Estado português —, mas há exemplos paradigmáticos que ajudam a perceber que tipo de instituições são estas. O Corpo Nacional de Escutas, por exemplo, é reconhecido como instituição de utilidade pública desde 1983. Com mais de 73 mil escuteiros inscritos, o CNE é a maior associação de juventude do país e está disseminada por praticamente todo o território nacional, com os agrupamentos escutistas associados às paróquias católicas. Dentro da hierarquia escutista existem membros do clero, a começar pelos párocos das paróquias onde há agrupamento escutista — uma vez que todos os agrupamentos têm um assistente eclesiástico, que é o pároco. Todos eles, à semelhança de todos os chefes de escuteiros, estão obrigados a denunciar às autoridades civis quaisquer crimes de que tenham conhecimento nas suas funções. Atualmente, o CNE também tem um manual de procedimentos interno que inclui essa obrigatoriedade disciplinar.

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Muitos lares de idosos, por exemplo, pertencem a centros sociais paroquiais, onde os responsáveis são obrigados a denunciar crimes

Universal Images Group via Getty

Outros exemplos conhecidos são os da Comunidade Vida e Paz (instituição da Igreja que trabalha com pessoas em situação de vulnerabilidade, que é tutelada pelo Patriarcado de Lisboa e que tem o estatuto de organismo de utilidade pública desde 1989) e da Cáritas Portuguesa, que se contam entre as muitas instituições católicas que detêm o estatuto.

Em todas estas organizações — e, de igual modo, em todas as que tenham este estatuto de utilidade pública —, os elementos da hierarquia interna da instituição estão abrangidos pelo regime de denúncia obrigatória. Só dentro do universo da Igreja Católica, incluindo IPSS e outros organismos, é possível contabilizar mais de 1.300 instituições nestas circunstâncias, praticamente todas com membros do clero nas suas estruturas e órgãos sociais.

Todavia, esta obrigatoriedade não se estende de modo generalizado a todas as instituições de direito canónico, reconhecidas pelo Estado português ao abrigo da Concordata. Isto significa que as instituições eclesiásticas que não tenham o estatuto de utilidade pública — como é o caso das dioceses e paróquias — não se enquadram neste regime. Isto significa, por exemplo, que os bispos católicos não têm atualmente qualquer obrigação legal de denunciar um crime às autoridades civis.

Para o advogado Nuno Sá Costa, o que a Concordata permite é “reconhecer algumas vantagens à Igreja Católica, por exemplo cobrança de impostos; permite que a diocese, enquanto instituição, seja equiparada a uma pessoa coletiva, mas não isenta nestas questões do direito penal, nem afasta a aplicabilidade de qualquer lei ou circunstância. Aqui a questão é que, se o membro da paróquia integra a IPSS, não tem proteção por ser da Igreja. A Concordata não isenta a aplicabilidade da lei civil, dá um regime híbrido à diocese e à paróquia, que é uma pessoa coletiva diferente das associações”, explica, lembrando que um “padre pode ser punido pela lei civil e pela lei canónica”.

Existem em Portugal um total de 975 centros sociais e paroquiais. As estatísticas da Conferência Episcopal dizem que o universo católico nacional é composto por 4.378 paróquias, o que significa que um quinto das paróquias têm um centro social paroquial.

Para o advogado Pedro Cabeça, que trabalha na Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes, a Concordata traz mais ainda: “Dentro do espírito do direito canónico, nós temos um regime privilegiado com a Igreja Católica por causa da Concordata e isso implica um dever acrescido de quem exerce funções na Igreja.” Uma opinião partilhada pelo presidente da Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes, Carlos Anjos: “As dioceses estão sujeitas a um um regime híbrido, por causa da Concordata, mas deviam ser obrigadas a denunciar.”

Só há crime de omissão de denúncia em casos de tortura

Há, porém, na lei uma pena que pode começar nos seis meses e terminar nos três anos de cadeia pelo crime de omissão de denúncia. “Por exemplo, um polícia tem um preso à sua guarda e, nesse caso, inflige tortura. O seu superior hierárquico tem a obrigação de fazer queixa e, se não o fizer, incorre num processo crime. É a única circunstância em que há pena”, alerta o advogado Nuno Sá Costa ao Observador.

A omissão, de acordo com a lei, existe quando um superior hierárquico, tendo conhecimento de que o seu subordinado cometeu um crime de tortura, nada disse. Não se aplica, por isso, a qualquer outro funcionário, como no caso da denúncia obrigatória, nem a qualquer outra pessoa. A lei prevê que, nestes casos, a queixa seja feita no prazo de três dias após o conhecimento do caso. Em causa está o crime de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos graves, definido por ofensas à integridade física grave, bem como ao emprego de meios de tortura graves, como espancamentos, eletrochoques, simulacros de execução ou substâncias alucinatórias.

“Não está prevista outra circunstância penal de omissão de denúncia, mas se um funcionário vir o seu subordinado a cometer um crime, tem que fazer queixa. Se não fizer não lhe acontece nada. O que pode fazer-se é abrir um processo disciplinar, por não ter feito queixa”, insiste Nuno Sá Costa.

“Se as pessoas sabiam e nada disseram, estão a encobrir um crime. Estão a ser cúmplices”

Nuno Sá da Costa e Moreira da Silva são unânimes num ponto. A mesma lei que não obriga à denúncia pune não só quem comete um crime, mas também quem o omite, assumindo mesmo que ao fazê-lo se torna cúmplice.

A prova, segundo o advogado Moreira da Silva, é difícil de conseguir, como aconteceu aliás na Golegã — em que não se provou que os dirigentes dos escuteiros pudessem prever que o padre, ao deitar-se na tenda das meninas, iria abusar de uma delas (o arguido era tido com um padre respeitador e também era comum dormir na tenda dos meninos). Mas Nuno de Sá Costa dá outro exemplo para explicar melhor este conceito: “Se um amigo meu for assaltar uma casa e eu ficar à porta posso ser considerado cúmplice do crime. Por ser conivente, sou cúmplice. É uma discussão muito técnica, mas uma coisa é eu ter desconfiado de uma coisa, outra é eu estar cinco anos numa paróquia e fazer o contrário e omitir para manter a imagem da Igreja”.

Ministério Público pensou acusar a hierarquia da Igreja por não ter denunciado padre

Recentemente, o Ministério Público de Santarém desbravou este caminho. E, do que se conhece, fez a primeira acusação contra um padre precisamente por este não ter denunciado às autoridades policiais as suspeitas de abuso sexual contra um acólito. O padre mudou o suspeito de funções e ele acabaria por repetir o crime. Neste momento, o padre enfrenta uma acusação de crime de abuso sexual por omissão.

A mesma imputação poderia ser feita a qualquer padre ou bispo que tivesse conhecimento de um crime e não tivesse comunicado à polícia, limitando-se a mudar o padre em questão de local.

Para Nuno de Sá Costa, qualquer cidadão que presencie um crime particular ou público tem obrigação moral de denunciar. Aliás, é por isso que se tem batido também a Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes. O advogado Pedro Cabeça, que integra esta comissão, lembra mesmo que no caso dos crimes públicos (aqui inclui-se o abuso sexual de menores até aos 14 anos; entre os 14 e os 16 o crime passa a semi-público e precisa que a vítima ou o seu responsável legal formalizem a queixa) “as pessoas não são obrigadas a denunciar, mas devem”.

Pároco de Samora Correia acusado de omissão por ocultar abusos de menores cometidos por catequista

Não há uma obrigação legal de denunciar, mas é um dever de proteção da vítima. E é já por isso que estes crimes são públicos”, diz ao Observador. “Imagine que existe um crime público do qual tem conhecimento. Quem é que vai saber se sabe ou não? O dever de denunciar é meramente moral”, explica. “Diferente é saber que as pessoas sabem de um crime e não o denunciam.  Se as pessoas sabiam e nada disseram, estão a encobrir um crime. Estão a ser cúmplices. Agora, fazer prova é mais difícil”, sustenta.

Bispo foi condenado em França por não ter denunciado

Em França, o bispo de Lyon, o cardeal Philippe Barbarin, foi condenado a uma pena suspensa de seis meses por ter tido conhecimento de vários abusos sexuais praticados por um padre da diocese anos antes e não ter denunciado. O tribunal de recurso acabaria por ilibá-lo, a 30 de janeiro de 2020, não por ter dado como provado que não omitiu a denúncia, mas pela sua prescrição. O bispo terá tido conhecimento do caso em novembro de 2014, mas por esta altura já as vítimas eram maiores de idade. Não só os crimes de que foram vítimas tinham prescrito como a lei só obriga a denúncia de crimes de abuso sexual praticados contra menores, como explicou o Le Monde.

Na decisão, o tribunal lembrou que em julgamento não estava a Igreja como instituição — o caso levou mesmo Barbarin a pedir ao Papa para o afastar —, mas sim um homem pelos seus atos.

O Código Penal francês, diferentemente da lei portuguesa, prevê que quem tiver conhecimento de privação, maus tratos, agressão ou abuso sexual infligidos a um menor ou a uma pessoa incapaz de se proteger pela sua idade, doença ou deficiência, e não denunciar às autoridades seja condenado a uma pena de três anos de prisão e 45 mil euros de multa. Se o menor tiver menos de 15 anos a pena é agravada em 5 anos de prisão e a multa de 75 mil euros.

E do ponto de vista canónico, o que dizem as leis internas da Igreja Católica?

Atualmente, a indicação a que todos os bispos e responsáveis eclesiásticos estão sujeitos é a de que devem denunciar às autoridades civis todos os crimes de que tenham conhecimento, independentemente da existência ou não de uma obrigação legal nesse sentido. Além disso, a lei canónica prevê a possibilidade de responsabilização dos bispos, cardeais e superiores religiosos que, por ação ou omissão, encubram os casos, interfiram em investigações das autoridades civis e protejam os clérigos abusadores. Tudo isto é analisado, investigado e julgado no contexto do Direito Canónico, o sistema legal próprio da Igreja, que tem os seus próprios tribunais de várias instâncias (da diocese até ao Vaticano).

Até há poucos anos, a prática secular da Igreja Católica era a do encobrimento destes escândalos de abusos. Através de esquemas relativamente disseminados por todo o universo católico, bispos de todo o mundo desvalorizaram denúncias de abusos, transferiram os padres suspeitos de paróquia uma e outra vez com vista a abafar as polémicas (permitindo-lhes que abusassem novamente noutros lugares) e mantiveram os padres denunciados longe dos olhares das autoridades civis, com vista à proteção da reputação e da autoridade moral da Igreja Católica.

Os escândalos públicos que se têm multiplicado por todo o mundo ao longo das últimas quatro décadas, desde o início dos anos 80 até aos dias de hoje, forçaram os vários papas a reagir, mudando leis internas e criando mecanismos de proteção dos menores, de punição dos abusadores e de responsabilização dos ocultadores. A transformação mais radical pode ser situada no ano de 2019, quando o Papa Francisco reuniu no Vaticano centenas de bispos, cardeais e superiores religiosos de todo o mundo para uma cimeira dedicada ao tema da proteção dos menores na Igreja. A cimeira seguiu-se ao annus horribilis de 2018, em que a dramática viagem de Francisco ao Chile, a publicação do relatório da Pensilvânia e a demissão do cardeal McCarrick tinham levado o Papa a determinar que era preciso agir decisivamente para combater a crise.

epa10098166 Pope Francis holds a news conference aboard the papal plane on his flight back after visiting Canada, 30 July 2022.  EPA/GUGLIELMO MANGIAPANE / POOL

O Papa Francisco está a mudar a legislação da Igreja e o modo como a instituição lida com as denúncias de abuso

GUGLIELMO MANGIAPANE / POOL/EPA

Nessa reunião, o Papa Francisco forçou os bispos de todo o mundo (Portugal foi representado pelo cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente) a ouvir os testemunhos de várias vítimas de abuso sexual — e indicou-lhes que era tempo de mudar de atitude. Logo no primeiro dia dessa reunião, o Papa Francisco apresentou aos bispos um conjunto de pontos de reflexão para o debate e não deixou a questão da denúncia às autoridades civis fora da discussão: um dos pedidos do Papa aos bispos era que as novas normas da Igreja passassem a incluir a previsão de comunicação dos crimes às autoridades civis. Ao longo da cimeira, o tema da obrigação moral dos bispos de denunciar os casos à polícia voltou a ser ponto de discussão. Além disso, pouco antes da cimeira, o padre jesuíta alemão Hans Zollner, um dos conselheiros do Papa Francisco para a questão dos abusos e um dos organizadores da reunião, havia dado uma entrevista ao Observador na qual afirmara que a denúncia à polícia era uma obrigação moral dos bispos.

A comunicação dos casos às autoridades civis como regra foi uma das principais conclusões da cimeira, da qual saiu também a promessa de publicação de novas leis e de um novo manual de procedimentos nos meses seguintes.

Quando os bispos voltaram de Roma para os seus países, a Igreja Católica vivia já num novo clima no que toca à questão dos abusos. Em breve seriam formalizadas as novas regras e o espírito era claro: transparência total, tolerância zero, comunicação às autoridades. Ainda assim, poucos dias depois do final da cimeira, a Igreja Católica em Portugal continuava a repetir os padrões do passado, com o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa a assumir que havia duas queixas de abusos a serem investigadas pelas autoridades eclesiásticas e que apenas seriam levadas à polícia se tivessem “credibilidade e fundamento”. Isto depois de, na cimeira, os responsáveis do Vaticano terem insistido que a jurisdição da Igreja é espiritual e que a investigação de crimes cabe às autoridades civis.

De qualquer modo, o Vaticano cumpriu a promessa e, nos meses que se seguiram à cimeira de fevereiro de 2019, publicou dois importantes documentos normativos que atualmente são determinantes para compreender o modo como a Igreja Católica entende a relação com as autoridades civis e o problema do encobrimento dos abusos sexuais de menores.

O primeiro desses documentos é uma carta apostólica sob a forma de motu proprio (o que significa que emana da autoridade direta do Papa) e foi publicado em maio de 2019, menos de três meses depois da cimeira de Roma. Sob o título Vos Estis Lux Mundi (“Vós Sois a Luz do Mundo”), aquele documento vem introduzir uma novidade em relação àquilo que era até então a luta contra os abusos na Igreja. Se, até 2019, o foco do Direito Canónico estava exclusivamente apontado para o modo de investigar e punir os clérigos que abusassem sexualmente de crianças e jovens, a partir de 2019 a Igreja passou a ter mecanismos internos específicos para investigar e punir os bispos e superiores religiosos que ocultassem os casos.

Concretamente, o Vos Estis Lux Mundi tem disposições concretas que se referem a cardeais, patriarcas, bispos, legados pontifícios, clérigos que estejam responsáveis por determinadas circunscrições eclesiásticas, superiores de congregações religiosos, prelados, entre outros cargos de liderança eclesiástica. A lei canónica passa a ter mecanismos para investigar e punir estas figuras de liderança por “ações ou omissões tendentes a interferir ou contornar as investigações civis ou as investigações canónicas, administrativas ou criminais, contra um clérigo ou um religioso” no que toca a crimes de abuso sexual.

Ou seja: um bispo que oculte um caso de abusos cometidos por um padre da sua diocese, impedindo que seja feito o devido processo judicial na justiça civil, pode ser punido pela lei eclesiástica (mesmo que na lei civil não exista uma obrigação legal de denúncia). As investigações são conduzidas pelos arcebispos que tiverem jurisdição sobre o bispo em questão, em cooperação com as instituições da Santa Sé, e podem resultar em penas canónicas ao bispo, incluindo a demissão.

"Mesmo na ausência de uma explícita obrigação normativa, a autoridade eclesiástica apresente denúncia às autoridades civis competentes, sempre que o considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos."
Guia do Vaticano sobre denúncias de abusos de menores na Igreja

Um ano depois, em julho de 2020, o Vaticano publicou um Vademecum, ou guia de boas práticas, entretanto atualizado, sintetizando todos os pormenores dos procedimentos que os responsáveis da Igreja Católica devem seguir no tratamento de denúncias de abusos sexuais. Entre as novidades apresentadas neste guia de boas práticas (que teria de ser implementado por todas as conferências episcopais do mundo), conta-se a obrigatoriedade de dar crédito a todas as denúncias, incluindo àquelas cuja credibilidade possa parecer duvidosa aos olhos dos bispos, e a necessidade de comunicação às autoridades civis de todos os casos.

O Vademecum é explícito nesta questão. No ponto 17 daquele documento, referente às ações que um responsável eclesiástico deve adotar quando recebe uma informação de um crime, lê-se: “Mesmo na ausência de uma explícita obrigação normativa, a autoridade eclesiástica apresente denúncia às autoridades civis competentes, sempre que o considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos.” Ou seja, a regra é os bispos denunciarem sempre os crimes de que têm conhecimento, mesmo que a vítima que lhes apresenta a queixa não pretenda que haja um processo sobre o seu caso ou até que o eventual crime esteja prescrito: isto, porque um dos principais objetivos da denúncia é a prevenção de eventuais futuros crimes, uma possibilidade especialmente preocupante num tipo de crime em que a reincidência é frequente. O tipo de medidas cautelares a ser tomadas com vista a esta prevenção é decidido pelas autoridades civis — e não pela Igreja.

A regra formal vem dar corpo legal à obrigação moral que já existia no contexto da Igreja Católica e que o Papa Francisco repetiu insistentemente nos últimos anos: as suspeitas de crime devem ser investigadas pela polícia civil, não pelas autoridades religiosas. Nas palavras do arcebispo maltês Charles Scicluna, um dos principais procuradores do Vaticano para a situação dos abusos, importa distinguir a jurisdição da Igreja e das autoridades: “As pessoas têm de olhar para nós como amigos da segurança dos seus filhos. Que tipo de jurisdição temos?”. “A nossa jurisdição é espiritual. Não temos forma de aplicar medidas coercivas e não temos nostalgia do tempo da Inquisição.”

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