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Marcelo e as direitas: do berço à Presidência da República

O Presidente faz dois anos de mandato quando se abre um novo ciclo à direita. Se parece que se deu melhor com a esquerda, não é por afinidade política. Eis toda a história de Marcelo com as direitas.

Chegou a pé ao Parlamento. Tomou posse há dois anos, na Assembleia da República, a dizer que era preciso “cicatrizar feridas” dos “longos anos de sacrifícios” impostos pela troika, e era essencial esbater a crispação explícita “na divisão entre hemisférios políticos”. Marcelo Rebelo de Sousa fez uma campanha eleitoral com os votos garantidos da direita, mas com um discurso favorável à solução do Governo com a esquerda. O candidato dos afetos apareceu para descrispar. Chegou a dizer que “a coligação de esquerdas superou as expectativas.” Muita direita não gostou. Mas toda a gente sabe que Marcelo não é de esquerda.

A sua relação a partir de Belém com a direita — ou melhor, com a direita representada pelo seu partido — não foi a melhor na primeira metade do mandato. Pedro Passos Coelho teve de aceitar Marcelo como candidato presidencial, embora não desejasse um “catavento mediático” em Belém. Mesmo depois de eleito, todas as tentativas de aproximação públicas e privadas entre os dois homens acabaram frustradas. Podia ser uma questão ideológica, mas o próprio Marcelo Rebelo de Sousa foi tendo posições liberais ao longo da carreira. O problema era outro, sobretudo pessoal. Agora, com a nova liderança do PSD protagonizada por Rui Rio, será diferente? Está mais à esquerda, mais próximo do PS — menos descrispado do que Passos não podia ser — mas agradará ao Presidente da República? Marcelo, que também não tem química pessoal com Rui Rio desde que este saiu da sua direção partidária em ruptura, tem avisado que deve haver uma diferenciação clara de projetos entre os dois pólos políticos que alternam no Governo.

Para já, vai dar o palco a Rui Rio, como chegou a dizer numa reunião interna. Marcelo Rebelo de Sousa arranca a segunda metade do mandato — na verdade, ainda falta seis meses para a metade — com um novo ciclo aberto pelo PSD. Se a relação com a direita representada pelo PSD continuar a não ser a melhor, não é por o Presidente ter perdido a afinidade ideológica. Ele nasceu, cresceu e fez-se na direita. É um cristão-social, embora nunca se tenha definido como democrata-cristão. Afinal, pertence a um partido dito social-democrata. O seu posicionamento político nunca se pode desligar do seu catolicismo. Chegou a estar à esquerda de Sá Carneiro, mas depois voltou à direita. E até quando foi líder do partido acabou por perder porque estava a pensar à direita. Nessa época, como hoje, o problema eram os choques de personalidades. Eis uma história dos posicionamentos ideológicos de Marcelo Rebelo de Sousa.

https://observador.pt/videos/atualidade/video-os-momentos-mais-insolitos-destes-dois-anos-de-marcelo-em-belem/

Nascido e criado dentro da direita do regime

Marcelo não escolheu ser de direita. Nasceu dentro da direita. Naquele tempo, nem toda a gente tinha carro e Baltazar Rebelo de Sousa ainda não possuía esse bem dos abastados. Maria da Neves, com as dores de parto, ligou ao padrinho de casamento e amigo da família a pedir ajuda: a Marcello Caetano. Embora conduzisse pessimamente, foi ele — nessa época presidente da Comissão Executiva da União Nacional, o partido único do regime — que fez de motorista da parturiente até à maternidade, a 11 de dezembro de 1948.

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O menino nascia na madrugada do dia seguinte. O batismo seria com um nome de direita: Marcelo, em homenagem a Caetano, que ficaria toda a vida com a fama de apadrinhar o rapaz, mas recusaria esse papel por se achar demasiado velho. O verdadeiro padrinho de Marcelo Rebelo de Sousa havia de ser Camilo Mendonça, outra personalidade do regime — primeiro presidente da RTP e depois ministro da Economia.

Célinho, como lhe chamavam, foi criado no convívio com a elite do Estado Novo. A partir dos seis anos, começou a acompanhar o pai nas visitas por todo o país, como subsecretário de Estado da Educação de Salazar. O menino chegou a ir com o pai a São Bento. Entrava, cumprimentava o presidente do Conselho e depois ficava do lado de fora à espera que Baltazar terminasse o despacho. Aos 11 anos escreveu-lhe uma carta a agradecer uns livros rubricados que recebeu de Salazar através de uma amiga da família.

Foi Marcello Caetano quem levou a mãe de Marcelo à maternidade

Influenciado pelo pai, tornou-se desde cedo republicano. Influenciado pela mãe, mais à esquerda — era assistente social —, ia tendo a perceção que de havia um mundo pobre do qual estava protegido.

Foi neste mundo que cresceu, embora já nessa época o seu pai pudesse, em certos momentos, ser considerado uma espécie de esquerda da direita pelos padrões regime, dada a sua preferência por Marcello Caetano, que era visto como um potencial liberalizador. Quando andava no liceu, o rapaz assistia todas as semanas às reuniões do grupo de marcelistas com o mentor, na Choupana, um restaurante na linha do Estoril. Em 2016, na campanha eleitoral para as presidenciais, Marcelo havia de se definir como uma espécie de esquerda da direita e de certa forma isso acompanhou-o na vida.

Faculdade: nem da extrema-direita nem da extrema-esquerda, mas anti-associativo

Quando o melhor aluno do país chegou à Faculdade de Direito de Lisboa, em 1966, a escola ainda vivia na ressaca da crise académica de 1962. Havia estudantes de esquerda presos ou enviados para a guerra a meio do curso. Logo no início do ano letivo, em outubro, mal as aulas tinham começado, Marcelo é referido pela PIDE como candidato à Associação de Estudantes pela Ação Académica, um dos grupos de extrema-direita anti-marxista. Rebelo de Sousa foi convidado, mas recusou. E a PIDE voltou a dar conta disso.

No ano seguinte não passou para a esquerda, mas viveu as cheias mais graves do país em 1967 e a realidade que descobriu contribuiu para um dia vir a questionar o poder — embora naquele momento menos do que outros estudantes. Quando chega o maio de 68, Marcelo e os amigos estão do outro lado dos extremistas de esquerda, ancorados na suas sólidas raízes conservadoras e católicas. O caminho de lento afastamento da direita salazarista vai sendo feito pelo convívio com padres progressistas e acelera com o Concílio Vaticano II.

A meio da faculdade, o pai é nomeado governador-geral de Moçambique e a família parte toda para África, menos ele. O jovem passa a ser acompanhado por Marcello Caetano, em cuja casa janta todas as semanas. Falam dos estudos, das convulsões académicas e dos bastidores políticos do regime. Entretanto, o anfitrião e tutor de Marcelo Nuno — era assim que Caetano lhe chamava — é nomeado para ocupar o lugar de Salazar. O jovem Rebelo de Sousa passa assim a ser visita regular do novo chefe da ditadura.

Quando rebenta a crise estudantil de 1969, Marcelo ainda está do lado do regime, embora já tivesse uma posição crítica em relação ao ministro da Educação, José Hermano Saraiva. Em vez de participar nas manifestações estudantis de protesto, faz parte do grupo que vai saudar Caetano ao aeroporto quando este regressa de uma viagem a África. Nas eleições desse ano para a Assembleia Nacional, ainda não vota, por não ter feito os 21 anos da maioridade. Se votasse estava com as listas da União Nacional, que integravam a Ala Liberal de Sá Carneiro e Francisco Pinto Balsemão. Apesar disso, a curiosidade leva-o a comícios da CDE (próximos dos comunistas) e da CEUD, de Mário Soares.

Passadas as eleições, Marcelo Nuno é um dos jovens que Marcello Caetano ouve — como Freitas do Amaral — sobre a formação de partidos políticos: defende associações cívicas que mais tarde evoluam para partidos, mas o presidente do Conselho não segue a sugestão.

Nesta fase, parece ter um pé dentro e um pé fora. Numa candidatura a delegado de turma, apresenta um programa onde escreve que a universidade “deve democratizar-se” e permitir “um acesso mais generalizado e socialmente equitativo”.  Marcelo parece moderado e democrático, mas aquela é uma época de extremos. Os estudantes de esquerda estão radicalizados e, perante os “ortodoxos” comunistas e a extrema-esquerda, Rebelo de Sousa posiciona-se como “anti-associativo”.

Cria então o Movimento Académico Independente (MAI), de que a PIDE dá conta, com um grupo restrito de amigos. Candido Igrejas Bastos, o parceiro de Marcelo nas manobras clandestinas, trabalhava no Secretariado Nacional de Informação (SNI), o órgão da propaganda do regime. A ideia era criar uma corrente estudantil que não fosse maoísta, nem comunista, nem socialista. Os comunicados do MAI recolhidos pela PIDE, defendem a democracia e a demissão do ministro da Educação, mas não falam da guerra nem da autonomia das colónias. Eram sobretudo contra a esquerda, embora também escrevessem panfletos violentos contra os estudantes da extrema-direita.

“Ideologicamente somos radicais, mas acreditamos noutra via, além da marxista leninista, para o futuro da universidade e da sociedade portuguesa”, regista Marcelo num dos comunicados clandestinos recolhidos pela PIDE.

Fica para as memórias dos estudantes daquela época a greve estudantil de 1970, que Marcelo e os amigos furam, por não concordarem com a forma como foi convocada. Muitos, vão chamar-lhe “fura-greves” ou “amarelos” ao longo de anos. Aos 30 ou 40 estudantes do grupo anti-associativo — onde está Leonor Beleza ou Jorge Braga de Macedo — a esquerda chama-lhe “falangistas”.

No último comunicado do MAI, em fevereiro de 1970, Marcelo escreve que “os acontecimentos ultrapassarão irreversivelmente as suas contradições pela evolução ou pela revolução”. No entanto, a PIDE continua a classificar estes panfletos como “das Direitas”.

Os amigos comunistas e o afastamento lento do regime

Aos poucos, nos finais da faculdade, o círculo de amigos alarga-se para lá de grupos mais conservadores. Marcelo Rebelo de Sousa faz amizade com António Reis, próximo do Partido Comunista sem ter entrado para a organização, que lhe apresenta Mário Sottomayor Cardia, esse sim militante do PCP e chefe de redação da Seara Nova.  Por aqui começa a debater “a situação”. Se Reis e Cardia — que anos mais tarde vão acabar no PS —, acham que o marcelismo está bloqueado, Marcelo Nuno ainda acredita na evolução do regime.

No convívio com estes novos companheiros, que hão-de estar no seu casamento, Marcelo frequenta uma esquerda com que nunca tinha contactado tão de perto. Todos respiravam política. Como quem vai ao cinema ou ao teatro, eles iam à Assembleia Nacional assistir às sessões parlamentares para tomar o pulso às tensões entre os deputados da ala liberal e os mais conservadores do regime. Eram espectadores, mas imaginavam-se protagonistas numa futura assembleia democrática, e viriam a sê-lo.

O jornalismo aproxima-o da Ala Liberal. Ainda em 1969 começa a escrever para o Tempo de Moçambique, dirigido por Rui Cartaxana. Entrevista Sá Carneiro no Grémio Literário — mas o texto será muito cortado pela censura — e depois José Pinto Leite. Através de outros amigos comuns, começa a relacionar-se também com os jovens tecnocratas do Governo, como João Salgueiro.

Embora permaneça na direita, começa a descolar. Em artigos em A Capital, escritos com outros amigos, vai criticando o regime. Chega a enviar uma carta a Marcello Caetano, a justificar que aquela coluna se trata de “jornalismo na via marcelista de centro-esquerda, e de apoio às linhas avançadas no Governo”. Marcelo Nuno dá uma no cravo e outra na ferradura. Percebendo que o jovem se está a afastar, o outro Marcello não aprecia os atrevimentos do “afilhado”.

O caminho para a “esquerda da direita” em que foi educado, passou sobretudo pela Igreja e pelo convívio com padres progressistas. O principal seria Vítor Melícias, o franciscano colega de faculdade e animador do Grupo da Luz, que se reunia no seminário em Carnide. No núcleo duro, de que faziam parte Miguel Beleza ou Carlos Santos Ferreira, a figura mais influente era António Guterres. Embora estes fossem moderados, os amigos mais antigos e mais à direita consideram que isto terá uma influência decisiva na visão que tem do mundo e da vida.

Guterres esteve no casamento de Marcelo: eram amigos próximos

Como católicos, os jovens querem estar “junto das alavancas do poder”. Não lhes basta discutir a fé e a Igreja. A doutrina só faz sentido se intervierem no mundo, para o melhorar. É a missão de um católico. Esse é um aspeto vital para Rebelo de Sousa e um eixo não explícito da sua ação como Presidente da República — como o consolo das vítimas de tragédias, a agenda dos sem-abrigo, ou a proximidade com os mais fracos. No seu discurso na noite da vitória das presidenciais, Marcelo prometeu prestar atenção preferencial aos mais carenciados, “os que vivem nas periferias da sociedade, de que fala o Papa Francisco”. Não mudou.

Em dois ou três anos, esta jovem promessa da direita já soma amigos comunistas, começa a estar com os liberais, entra para a SEDES — que é mais um pólo de pressão para o regime — e vai divergindo dos setores mais conservadores por via do catolicismo mais progressista pós-conciliar. Mas nunca deriva para “a esquerda”. Se está a caminhar para o lado esquerdo, é para a esquerda do regime. Naquela época já não é preciso muito para se ser visto como sendo “do contra”. Para aborrecerem o pai, nos dias 28 de maio, os dois irmãos mais velhos — Marcelo e António Rebelo de Sousa — aparecem junto de Baltazar com gravatas pretas.

Quando escreve um artigo no jornal O Tempo Universitário, dirigido por Adelino Amaro da Costa, a dizer que as reformas do Ensino Superior “deverão permitir uma gestão democrática da universidade” e salvaguardar “a verdadeira democratização do ensino”, acrescenta que é impossível fazê-lo num quadro de um “regime político autoritário e antidemocráticático”. Depois de ler o texto, Marcello Caetano corta com ele quase em definitivo.

A ruptura com Caetano. A revolução no partido dos liberais, tecnocratas e católicos

O lançamento do Expresso, em janeiro de 1973, é mais um passo para o afastamento de Marcelo Rebelo de Sousa da direita do Estado Novo. Já nem sequer está com o marcelismo, apesar de o seu pai ser ministro de Caetano. Defende uma evolução do regime para uma democracia ocidental, o fim da censura e a liberdade de imprensa. Nos primeiros tempos, nem assina com o seu nome, demasiado conotado com o regime. De “Marcelo” a “Rebelo de Sousa”, cheira tudo às direitas. Por isso usa outros nomes, sobretudo Nuno Sousa ou Duarte Fernandes.

Quando quer fazer pontes com Caetano, não hesita em elogiá-lo, como numa carta de abril de 1973, em que critica os oposicionistas do Congresso de Aveiro — e as “veleidades ‘soaristas’” —, que foram reprimidos pela polícia do Estado Novo. No jornal, porém, desobedece à censura, escreve “Fábulas” na “Gente” onde Caetano é o “senhor feudal” e arranja um problema a Pinto Balsemão, por o jornal passar por isso a ser obrigado a fazer prova de página.

Uma sucessão de acontecimentos faz com que deixe de acreditar numa evolução de tendência democrática. A revisão das leis de imprensa propostas por Sá Carneiro e pelos liberais falha, estes vão deixando a Assembleia Nacional sobretudo depois da vigília na Capela do Rato, e Américo Thomaz mantém-se na Presidência da República. Marcelo afasta-se definitivamente. Percebe que o regime morreu e vai cair. Aquela realidade imutável deixara de ser a sua direita. No entanto, não é fácil encontrar escritos de Marcelo contra a guerra colonial — o maior problema do regime —, numa fase em que o pai já era ministro do Ultramar.

Numa carta a Caetano, a mãe de Marcelo Nuno chega a pedir desculpas pelo filho, por se ter “ligado a pessoas que o têm influenciado de forma negativa”. Mas que isso não teria posto em causa “o seu amor à Pátria e aos valores fundamentais”. Em fevereiro de 1974, sabe que o regime está para acabar. Num colóquio da SEDES, aos 25 anos, diz que oficiais do quadro, como tenentes e capitães num futuro próximo iam tomar uma posição política no país. O Estado Novo estava por semanas e ele sabia.

Marcelo vive o dia 25 de Abril a partir da redação do Expresso, com uma dupla preocupação: a política, mas também a familiar. Não se sabe a certa altura o que pode acontecer aos pais. Nessas 24 horas, desmorona-se o mundo em que tinha sido criado. Mas ele entraria aí noutra dimensão.

Menos de duas semanas depois do golpe militar, está no grupo que funda o PPD, na mesma sala do Expresso, com Pinto Balsemão e Sá Carneiro ao telefone, a escolher o nome do novo partido. É ele que escreve o comunicado que será lido na televisão. Quando fala com o seu amigo António Guterres, para se juntarem no partido que vai nascer a partir da Ala Liberal, dos tecnocratas e da SEDES e com uma componente de católicos, percebe que o companheiro já está inscrito no Partido Socialista. Guterres terá justificado que havia muita gente com o seu perfil nessa nova formação partidária. Ele acha que um católico fará mais a diferença entre os socialistas.

Perante o novo quadro de geometria política revolucionária — agora com o centro muito à esquerda —, Rebelo de Sousa continua à direita, apesar das músicas revolucionárias que põe no gira-discos na sede provisória do PPD no Largo do Rato. Nessa fase, que viveu intensamente, recebeu a tarefa de implantar o PPD no sul. Marcelo e os amigos do partido rumavam ao Alentejo, à Margem Sul ou ao Ribatejo em verdadeiras aventuras políticas, onde estavam obrigados a dizer “coisas de esquerda”, nem que fosse para salvar a pele. Andou fugido da extrema-esquerda pelos telhados de Beja, elogiou o camarada Cunhal em Grândola, onde fora recebido por panfletos de “morte ao PPD!”, e no meio de toda esta paixão política proselitista a pregar a social-democracia, nem se despediu dos pais quando estes, logo em junho de 1974, fugiram para o Brasil.

Na Página Dois do Expresso, ia escrevendo contra o PCP e a extrema-esquerda militar. Ajudava o PPD ou a sua ala dentro do partido. Nessa fase, apoiava Sá Carneiro contra a fação de Sá Borges, a ala esquerdista entre os sociais-democratas. Combinado com Sá Carneiro para o ajudar a combater a esquerda interna pela via socialista, Marcelo chega a escrever que o programa do PPD “seja inequivocamente social-democrata e não liberal”. Como se vê, é uma tensão muito antiga dentro do PSD. Chega a entusiasmar-se com a “efetiva cogestão” das empresas, mas recusa a autogestão. Está no espírito do tempo, quando chega a ameaçar deixar o partido antes de o primeiro congresso do PPD se realizar: “Considero estar a haver uma viragem inadmissível à direita e digo que estou a ponderar não assistir ao congresso partidário, senão mesmo desfiliar-me, se tal viragem não for claramente travada e invertida”, chega a dizer numa entrevista. Isso, porém, nunca acontecerá. Até hoje.

Na Página Dois do Expresso, Marcelo ia escrevendo contra o PCP e a extrema-esquerda militar

Numa entrevista ao Diário de Notícias por aqueles dias, dará uma ideia de onde se situa naquele momento: “Concebo o PPD como um verdadeiro partido social-democrático (o que me parece corresponder às intenções dos fundadores) e não como um partido liberal, com verniz mais ou menos socializante. (…) Estou confiante, surpreenderá alguns observadores pela sua nítida opção de esquerda.”

Durante o PREC deixa praticamente de usar gravata. A barba desgrenhada dá-lhe um ar levemente revolucionário. Mas a revolução recentra-o. Apanha uns tabefes na herdade da Torre Bela — tomada pela LUAR — e a sul tudo está mais difícil. Na Assembleia Constituinte tem despiques épicos com Vital Moreira, do PCP. Participa na redação da constituição, choca-se com o assalto à embaixada de Espanha, e deixa de dormir em casa em novembro de 1975, para se proteger. A mulher e o filho vão dormindo em casa de amigos. Recebiam ameaças de movimentos de extrema-esquerda em Cascais.

Com a estabilização democrática depois do 25 de novembro, Marcelo é mais um tático entre as páginas dos jornais e ação no partido do que um ideólogo. No momento de votar a Constituição, Rebelo de Sousa faz parte dos quadros do PSD que ajudam a convencer Sá Carneiro a votar a favor, por razões instrumentais, para o partido não fica fora do arco constitucional.

Entretanto, encabeça a criação da primeira tendência interna do PPD oficialmente reconhecida pelo partido. É o CERESD – Centro de Estudos e Reflexão Social-Democrático. Com o partido a posicionar-se mais à direita, a ideia de Marcelo, acertada com Sá Carneiro, era manter os quadros mais à esquerda no partido, agregando alguns dos “condicionais”, ou seja, dos que não eram “incondicionais” do líder-fundador. Marcelo Rebelo de Sousa nunca foi um sá-carneirista incondicional. Esteve próximo e distante do líder. Arranjou-lhe sarilhos. Intrigou toda a vida. Mas isso não o fazia mais de esquerda ou direita. Esteve próximo dos protagonistas das “Opções Inadiáveis” — documento que também assinou — que saíram do partido pela esquerda, mas Marcelo jamais o faria.

O regresso à direita na Nova Esperança liberal

Marcelo Rebelo de Sousa seria apanhado com choque pela morte trágica de Sá Carneiro, do seu amigo Adelino Amaro da Costa e do seu compadre António Patrício Gouveia, em dezembro de 1980. A tragédia teria consequências para toda a gente, para o país, para o partido, mas também pessoais. Pinto Balsemão ascenderia a primeiro-ministro. Marcelo havia de o criticar no Expresso mais pela forma como conduz o Governo do que por questões ideológicas, mas acabaria por ir parar a secretário de Estado e depois a ministro. Uma parte do seu trabalho é colaborar com Freitas do Amaral na revisão constitucional para acabar com o Conselho da Revolução.

Mais uma vez, está na direita moderada. A esquerda é contra a revisão constitucional de 1982, menos o PS de Mário Soares — embora a oposição interna do “ex-secretariado” de Jorge Sampaio e António Guterres também critiquem o líder do partido por aprovar aquelas alterações à lei fundamental.

O verdadeiro impulso ideológico de Marcelo acontece depois da queda do Governo da AD, quando se remete à oposição interna durante do Governo do Bloco Central de Mário Soares com Carlos Mota Pinto. Contra o Bloco Central havia de ser um pequeno opúsculo e um movimento de Rebelo de Sousa com José Miguel Júdice que lideram o grupo que ainda inclui Pedro Santana Lopes, Nuno Morais Sarmento, Conceição Monteiro ou José Manuel Durão Barroso. São um grupo de “queques” de Lisboa com posições liberais e assumidamente à direita.

Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Santana Lopes e José Miguel Júdice juntaram-se na Nova Esperança contra o Bloco Central

Ao sair do Governo, não regressa ao Expresso e funda o Semanário aos 34 anos. O projeto editorial lançado em 1983 tem um objetivo político: ser um jornal conservador, que apoiasse uma solução presidencial de sucessão a Ramalho Eanes e ajudasse a direta a voltar ao poder. Marcelo promove colunistas como Paulo Portas, e o grupo de liberais que escrevem a “Mão invisível”, como António Borges, Miguel Beleza, Manuel Lucena ou os irmãos Pinto Barbosa. O diretor é Victor Cunha Rego.

A moção estratégica que a Nova Esperança leva ao congresso do PSD em 1984 tem frases como esta: “O patriotismo é um elemento anímico indispensável para ultrapassarmos as crises”. E, nessa época, recuperar a palavra “patriotismo” era um sinal claro de direita. Apostavam no aumento da escolaridade obrigatória até ao 9.º ano. Condenavam o modelo “dos grandes projetos” de obras públicas (e estamos antes do cavaquismo). Esse modelo requeria, no entender dos esperancistas, “num país escasso em recursos humanos, tecnológicos e financeiros, uma intervenção ativa e multiplicadora do Estado, que provocou uma adulteração no sistema de mercado”.

Na área económica, o discurso era liberalizante. Queriam “desestatizar a sociedade e a economia, promover o sucesso como valor para a mobilidade social em que o motor é o setor privado”. Já em 1984, Marcelo desejava uma revisão da parte económica da Constituição não concretizada em 1982 — que só aconteceria em 1989. Na organização do país, propõem a regionalização, mas “sem criar pequenos feudos burocráticos”.

Ao contrário do que tinha defendido anos antes, no campo político, Marcelo e a Nova Esperança consideram “laborar num equívoco” continuar a definir o PSD como de centro-esquerda. Parece uma discussão atual. Isso não distingue o partido do PS. Consideram necessária uma bipolarização efetiva com os socialistas, ainda que moderada ao centro direita, e uma revisão das leis eleitorais que garanta maior ligação dos deputados aos eleitores através da criação de círculos uninominais, que favoreça a criação de maiorias (naquela época ainda não tinha havido uma maioria absoluta de um só partido). Para as presidenciais, defendem um civil e militante do PSD.

Não o podem adivinhar, mas dali a um ano, com a eleição de Cavaco Silva na Figueira da Foz, o candidato a Presidente será um civil, mas do CDS: Freitas do Amaral. A escolha do professor de Finanças para a chefia do partido acaba com as ambições de Marcelo Rebelo de Sousa à liderança, que se retira para a universidade e para o comentário político. Só dali a 11 anos regressa. Para, finalmente, comandar o partido e a direita portuguesa.

O líder do PSD acabou derrotado por ir pela direita (mas essa direita chamava-se Paulo Portas)

Cristo desceu à Terra e Marcelo Rebelo de Sousa avançou mesmo para a liderança do PSD em março de 1996. Fernando Nogueira abandonava a liderança depois de ter sido derrotado por António Guterres nas legislativas de outubro de 1995, mas mantivera-se à frente do partido até Cavaco Silva perder as presidenciais para Jorge Sampaio. Na década em que esteve afastado, Marcelo tinha sido o candidato da direita à câmara de Lisboa em 1989, coligado com o CDS e com o PPM, contra a frente de esquerda liderada por Jorge Sampaio. Perdeu.

O tempo era outro. Marcelo tomava conta do partido na ressaca dos vícios de poder do cavaquismo. O PSD não o adorava. Mas apoiava-o contrariado sempre que “o professor” convocava um congresso e exigia dois terços para sair de lá reforçado.

Não era fácil ser a oposição. Ao contrário de hoje, o centro político estava mais à direita. O mundo ainda vivia na nova fase aberta pela queda do Muro de Berlim, em que se esbateram as clivagens ideológicas. O PS de António Guterres, tão católico quanto Marcelo, tinha-se convertido à Terceira Via britânica, ao blairismo, ao mercado, ao centro e ao “neo-liberalismo”, segundo as acusações vindas da esquerda do próprio Partido Socialista.

À sua esquerda, o PSD tinha socialistas moderados, a economia a crescer e crédito cada vez mais facilitado. À sua direita, o CDS — aliás Partido Popular (PP), porque tinha mudado de nome — era liderado por Manuel Monteiro: populista, crítico da União Europeia, anti-Maastricht e contra o euro que estava para nascer.

Neste contexto, Marcelo representava uma direita moderada, que admitia viabilizar os orçamentos do PS em nome de um bem maior: a entrada de Portugal no euro em 1999. Muito longe da popularidade de hoje, Rebelo de Sousa tinha dificuldade em lutar contra o estado de graça de António Guterres. As suas primeiras propostas não eram particularmente ideológicas. No primeiro congresso, em Santa Maria da Feira, fez logo depender a regionalização da revisão constitucional e de um referendo. Achava as políticas sociais guterristas, como o Rendimento Mínimo Garantido, como “esmolas de espírito caritativo”. E defendia a venda da RTP: “O arrastamento da crise financeira da televisão pode implicar a privatização de um dos canais.” Naquela época, ainda defendia um referendo sobre a revisão do tratado da União Europeia. E criticava o conluio do poder socialista com os grupos económicos.

Do ponto de vista do posicionamento ideológico, deu um passo que chocou de frente com alguns dos sociais-democratas mais antigos. Foi na liderança de Marcelo que o PSD deixou o grupo europeu dos Liberais e passou para o Partido Popular Europeu, onde se juntam os partidos da direita europeia, sobretudo os democratas-cristãos. Pôs o partido numa grande família de poder e de governos europeus, mas deu o sinal que o PSD estava na direita e não na Internacional Socialista como advogara à saída da revolução.

Mas a grande ideia de Marcelo à frente do PSD seria sobretudo outra — e também era de direita. Foi o primeiro a perceber, no pós-cavaquismo que não era possível ao PSD voltar ao poder sozinho. Maiorias absolutas só com o CDS. Por isso, lançou-se na aventura que deitaria tudo a perder. Foi pragmático e ideológico, ao mesmo tempo. Apesar de dar a mão ao PS nos orçamentos com a justificação patriótica do euro, entendeu que o partido não sobrevivia da proximidade com os socialistas, mas da alternativa com o Partido Popular.

Do outro lado porém, tinha uma formação radicalizada, anti europeia, liderada por Manuel Monteiro que estava de saída da liderança e em perda, num partido que tivera uma grande influência ideológica de Paulo Portas. Para aprovar aquilo a que chamou de AD – Alternativa Democrática, Marcelo Rebelo de Sousa fez uma jogada de risco. Convocou um congresso difícil para Tavira, em 1998.

Um mês antes do congresso social-democrata, no entanto, Paulo Portas era eleito líder do CDS contra Maria José Nogueira Pinto. Saíra a fava a Marcelo. Vender a ideia de uma aliança do PSD com o homem que poucos anos antes ajudara a destruir tanta gente no partido e era a principal figura do anti-cavaquismo era uma tarefa quase impossível de justificar contra adversários internos como Pedro Santana Lopes ou José Manuel Durão Barroso.

“Para ganharmos, temos de criar todas as condições da vitória. A Alternativa Democrática tem todas as condições para atrair ao seu projeto de mudança gente da direita à esquerda desiludida com o PS, para criar uma mobilização que ultrapasse muito o que o PSD sozinho pode alcançar”, disse Marcelo no congresso onde pediu dois terços dos votos para aprovar a estratégia.

Ao mesmo tempo, fez um discurso de pendor liberal, apesar de costumar definir-se como um social-cristão: “Impõe-se o direito de escolha financeira das famílias e das pessoas quanto à escola que querem, quanto à saúde que desejam, quanto à segurança social que anseiam, com maior protagonismo para o setor social privado.” Abre uma janela de mudança no Estado social português, na tradição do que tem sido o PSD há anos: “Queremos que o Estado aceite o direito das famílias e das pessoas a escolherem o seu próprio destino e que os sistemas sociais sejam muito menos estatistas.”

Em termos de liberalismo vai mais longe e defende mesmo a “privatização da Caixa Geral de Depósitos de forma escalonada e gradual” e a privatização da RTP e da RDP “com a salvaguarda do serviço público, submetido a concurso”.

Nos referendos, assume uma marca fiel aos seus princípios católicos. Rejeita a liberalização do aborto para além do risco de saúde da mãe e em casos de violação. “O aborto passaria a ser a forma normal do controlo da natalidade, o que seria não um avanço, mas um retrocesso cultural e social.” Venceria o primeiro referendo em 1998, mas anos mais tarde a sua ação como comentador não impediria a aprovação do segundo. No fim do congresso, ataca os grandes grupos económicos, o que leva Ricardo Salgado, seu amigo, a zangar-se e a Belmiro de Azevedo a dizer que “ele devia ser eliminado, pura e simplesmente”.

O projeto político de Marcelo Rebelo de Sousa na liderança da direita portuguesa acabaria pelo desacerto de personalidades com Paulo Portas. Com o caso Moderna a fazer escândalo nos jornais, os dois homens acentuaram todas as desconfianças que traziam de trás. Marcelo não caiu por ser mais de esquerda ou menos de direita. Nem sequer por a sua estratégia ser a errada. A conjugação de protagonistas naquele momento é que não era mais acertada. No plano partidário, Marcelo perdeu. Como Presidente, ganhou com os votos da direita enquanto abraçava a esquerda. No PSD, foi derrotado porque a sua estratégia era uma aposta à direita.

No ciclo seguinte, em 2002, Durão Barroso havia de lhe dar razão depois das eleições. E coligava-se com Paulo Portas. Ciclos depois, Pedro Passos Coelho dar-lhe-ia razão em 2011. E coligava-se com Paulo Portas. A partir de Belém, Marcelo agora assiste a uma nova reformulação da direita. Rui Rio muda o ciclo, Assunção Cristas consolida o seu ciclo. Mas esta direita só lhe serve se, pelo menos, impedir uma maioria absoluta de António Costa.

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