O discurso de Marcelo Rebelo de Sousa

na declaração do décimo primeiro estado de emergência

“Foram duas semanas difíceis, mas terminaram melhor do que haviam começado.  Começaram com números de infeções e de mortos dos piores da Europa e dos piores do mundo, uma pressão elevadíssima nas estruturas da saúde, notícias pontuais de favoritismos no desvio de vacinas, sentimentos divididos contra apoios europeus e, nalgumas vozes da opinião política, acenos a Governos de salvação nacional.”

Marcelo Rebelo de Sousa começa por admitir que as duas últimas semanas foram complicadas, mas com uma mensagem otimista: hoje o país está melhor do que estava há 15 dias. Admite ainda que os números do país eram dos piores do mundo (há duas semanas já eram e disse que eram apenas os piores da Europa — fica o upgrade) e a juntar a isso ainda existiam, recorda, vacinações indevidas de pessoas com posição privilegiada (como autarcas, por exemplo). O Presidente referiu também pela primeira vez de uma forma mais direta a ideia inspirada no novo governo italiano de Mario Draghi de existir um Governo de salvação nacional em Portugal. O antigo presidente do governo regional da Madeira, Alberto João Jardim, defendeu-o, o ex-primeiro-ministro Pedro Santana Lopes concordou com a ideia, e o ex-ministro Marçal Grilo já o tinha defendido no passado. Marcelo começa por mostrar que esteve atento à sugestão, mas percebeu-se o que pensava dela quando colocou esta hipótese na enumeração de acontecimentos negativos que aconteceram no início do atual estado de emergência.

Foram dias, alguns, nesta saga de mais um ano, pesados para todos, dramáticos para bastantes. Mas foi precisamente o correr dos dias permitiu esclarecer o que parecia incompreensível, decidir o que não podia esperar, trazer razão onde reinava a emoção, compreender o que estava a mudar. Os portugueses compreenderam que os apoios europeus eram simbólicos, não substituíam os heróis na saúde, mas mostravam que, numa verdadeira União, ninguém deve esquecer ninguém.

O facto de Portugal receber apoios de países estrangeiros, em particular do governo alemão — que enviou 26 profissionais de saúde para Portugal — foi visto por vários portugueses como um sinal da incapacidade do Serviço Nacional de Saúde, bem como da incapacidade do país em dar resposta à pandemia. O Governo insistiu que o apoio era “simbólico” e Marcelo vem aqui mostrar que está em sintonia com a narrativa Governo. Quer passar um sinal: as autoridades portuguesas não são incapazes, mas é sempre bem-vinda a ajuda que vier por bem e efetivamente ajudar. Portugal rejeitou também, é preciso lembrar, a ajuda oferecida por outros países, como a Áustria.

Os portugueses compreenderam que há atrasos na vacinação e no fornecimento de vacinas, na Europa e em Portugal e que isso ia impor, a partir de abril, vacinar mais e mais depressa para cumprirmos a meta avançada para setembro. E também que os responsáveis pelos favoritismos pelo desvio de vacinas iam ser exemplarmente punidos.

Marcelo sabe que a vacinação não está ao ritmo esperado e que as encomendas de vacinas também não. António Costa tinha dito umas horas antes que em vez das 4,4 milhões de doses de vacinas, Portugal irá receber neste primeiro trimestre menos de metade (1,98 milhões). Sem pôr a causa a meta do Governo até ao fim do verão (70% da população vacinada), Marcelo explica que isso ainda é possível, desde que haja um ritmo mais acelerado a partir de abril. O Presidente garante ainda que as vacinações indevidas — que causaram uma indignação generalizada — terão consequências. Houve uma primeira fase de silêncio do Governo que sugeria desvalorização e até impunidade nestes casos, mas a 3 de fevereiro o próprio primeiro-ministro veio dizer que “Quem não cumpre as regras tem de ser punido”. Ou, nas palavras mais carregadas de Marcelo, “exemplarmente punidos”.

Os portugueses compreenderam que sublinhar a essencial ajuda das nossas forças armadas, presentes desde março de 2020, ao pessoal da saúde e aos autarcas, é um trunfo no processo de vacinação.

O Presidente da República queria há muito tempo envolver mais os militares no processo de vacinação, por considerar que têm provas dadas do ponto de vista logístico e por poderem acrescentar ética militar a um processo que estava eticamente turbulento. Marcelo Rebelo de Sousa fez até declarações há uns dias que sugeriam que foi ele que pressionou para que o substituto de Francisco Ramos na liderança da task force do plano de vacinação fosse um militar. Ora, o vice-almirante Henrique Gouveia e Melo foi o escolhido. Marcelo teve influência na escolha e não deixou de o vincar desta forma.

Os portugueses compreenderam que o bom senso já aconselhava que provocar nesta altura crises políticas, com cenários de Governos à margem dos partidos, de resultado indesejável, em tempo perdido, em terceiras eleições no verão e nada de novo no horizonte, não servia para outra coisa senão agravar a pandemia, nunca para abreviar.”

Se já tinha colocado o Governo de salvação nacional no rol de elementos negativos, Marcelo dissipou todas as dúvidas de que não acha essa uma boa ideia. Da parte dele não contem que seja um promotor de governos de salvação nacional, muito menos de iniciativa presidencial (tout court, como antigamente, já nem sequer estão previstos na Constituição). Mas diz mais do que isso: não quer eleições e acha que pôr em causa o governo minoritário de António Costa só ia piorar o combate à pandemia. Fica dada uma garantia clara: Marcelo não vai carregar no red button da bomba atómica presidencial (a dissolução da Assembleia da República) enquanto a pandemia durar nem contribuir seque para a instabilidade do executivo socialista.

Os portugueses finalmente compreenderam o mais importante: que o número de infetados por dia descia de mais de 15 ou 16 mil para entre 2 e 7 mil. E o de mortos descia também. E isso, a manter-se, podia dentro de semanas, um mês, um mês e meio, reduzir a enorme pressão sobre as estruturas da saúde.

Marcelo Rebelo de Sousa, com as capacidades de comunicação que lhe são conhecidas, está a dizer muito claramente aos portugueses: continuem com o confinamento, que está a resultar. Nas primeiras semanas de regresso ao confinamento, já nesta segunda fase de inverno, os números continuaram a subir, o que fez os portugueses duvidarem da eficácia de um novo confinamento. Agora que há provas clara de que resulta, Marcelo tenta utilizar isso a favor do combate à pandemia (e da paciência dos portugueses para não vacilarem no confinamento).

E agora? Agora é muito claro: temos de sair da primavera sem mais um verão e outono ameaçados, em vida, saúde, economia, sociedade. Temos de assegurar que a Páscoa, no início de abril, não será causa de mais uns meses de regresso ao tempo que vivemos nestas semanas. Temos, até à Páscoa, de descer os infetados para menos de dois mil, para que os internamentos e os cuidados intensivos desçam dos mais de 5 mil e mais de 800 de agora para perto de um quarto desses valores. E descer também a propagação do vírus para números europeus. Estabilização esta duradoura, sustentada, sem altos e baixos. Temos de manter o estado de emergência e o confinamento como os atuais por mais 15 dias e apontar para prosseguir março fora no mesmo caminho, para não dar sinais errados para a Páscoa.

O Presidente da República quer evitar que a Páscoa seja o novo Natal, período em que o relaxamento das medidas levou a mais convívio e também a um aumento de casos e de mortes que foram dramáticos para o país. Como já tinha dito no anterior estado de emergência, Marcelo quer manter o confinamento “por março fora”, inclusive o próprio mês de março. O que significa uma coisa: restrições até 5 de abril (data mágica do pós-Páscoa) e, provavelmente, escolas fechadas também até essa altura. É preciso isso, alerta, para que a Páscoa não seja um problema. Além disso, define metas a atingir antes de tudo voltar a abrir. Uma espécie de travão ao contrário: quando se atingir estes objetivos (menos de 2 mil casos, um quarto dos internamentos — dentro e fora de UCI — que existem atualmente), Portugal pode pensar em começar a reabrir gradualmente.

Temos de melhorar o rastreio de contaminados, com mais testes, mas sobretudo com mais operacionais. E ter presente o desafio constante da vacinação possível. Sem essas peças-chave não haverá um desconfinamento bem sucedido.

Marcelo Rebelo de Sousa está, tal como o primeiro-ministro, preocupado com o rastreio de contaminados, que está muito aquém do esperado. Aparentemente foram os médicos que têm resistido a que outros profissionais (funcionários da administração central e local, estudantes e de elementos das forças de segurança e armadas) façam este trabalho. Ora, o Presidente pede mais operacionais como forma de pressionar que se utilizem todos os recursos que sejam eficazes neste rastreamento. Sejam ou não médicos. Estabelece ainda a tripeça necessária para um desconfinamento de sucesso: rastreio-testes-vacinas.

Temos de durante essas semanas ir estudando como depois da Páscoa evitar que qualquer abertura seja um novo intervalo entre duas vagas. Temos de continuar a apoiar, e apoiar depressa, os que na economia e sociedade sofrem com estas semanas de sacrifício.

O Presidente reforça a ideia de que tudo tem de ser devidamente planeado para que não haja o risco de o país voltar a abrir em abril para depois fechar semanas depois. Isso significaria que já teria chegado uma quarta vaga que o país quer, a todo o custo evitar.

Tudo sem crises políticas. Tudo sem cenários de governos de unidade ou salvação nacional. Não se conte comigo para dar o mínimo eco a cenários de crises políticas ou eleitorais. Já nos bastam a crise na saúde e a crise económica e social. Foi esse o mandato que recebi há cinco anos e que termina a 8 de março. É esse o mandato que recebi renovado para começar a 9 de março. Vencer as crises, mesmo as mais graves. Não provocar as crises, mesmo as mais sedutoras e contar, sempre, mas sempre com os portugueses.

Marcelo quer dizer que é o mesmo. Não contem com ele para governos de salvação nacional, crises políticas ou convocar eleições antes de tempo. A interpretação que o Presidente faz é que os portugueses o escolheram para dar estabilidade e não para entrar em aventuras de governos com mega-coligações em prol do interesse nacional. Neste “mandato renovado”, que começa a 9 de março, Marcelo Rebelo de Sousa garante que vai ser o mesmo que foi desde 2016. Ou seja: não vai ceder à tentação de deitar abaixo o Governo de António Costa. O próprio admite que podia ser tentado em provocar crises “mais sedutoras” — que conduzissem o espaço político de centro-direita, de onde vem, à governação — mas não o vai fazer. Não contem com ele para derrubar Costa.