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Maria do Rosário Pedreira nasceu em Lisboa em 1959. Começou a publicar poesia em 1996 (com "A Casa e o Cheiro dos Livros"), que reuniu em 2012 num só volume
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Maria do Rosário Pedreira nasceu em Lisboa em 1959. Começou a publicar poesia em 1996 (com "A Casa e o Cheiro dos Livros"), que reuniu em 2012 num só volume

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Maria do Rosário Pedreira nasceu em Lisboa em 1959. Começou a publicar poesia em 1996 (com "A Casa e o Cheiro dos Livros"), que reuniu em 2012 num só volume

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Maria do Rosário Pedreira: "Os que fazem literatura são os que passam o teste do tempo"

Maria do Rosário Pedreira fala sobre crónicas cáusticas, pessoas e costumes. Em entrevista, a escritora e editora conta também como descobre autores e fala da aversão ao "politicamente correto".

[entrevista originalmente publicada em junho de 2021. Maria do Rosário Pedreira foi entretanto distinguida com o prémio literário Casino da Póvoa, do festival Correntes d’Escritas 2023]

O mais recente livro de Maria do Rosário Pedreira, editado há poucas semanas pela Quetzal e com prefácio do jornalista Ferreira Fernandes, junta dezenas de crónicas que a autora fez publicar no Diário de Notícias entre 2018 e 2020 — mas também algumas que estavam inéditas. A conhecida poetisa e letrista de fado surge como prosadora de verbo afiado, o que aliás só será novo para quem não a leu no jornal ou desconhece o blogue Horas Extraordinárias, que mantém há mais de uma década.

Adeus, Futuro é o título do volume e também a frase com que a autora termina cada texto. Numa mistura de memórias pessoas e episódios da atualidade, reflete com ironia e humor sobre “tudo aquilo que o presente produz de irracional, seguindo tantas vezes a agenda do politicamente correto”. A esperança é a de que o futuro “inclua e respeite os valores da cultura, do humanismo, da tolerância e do amor ao outro”, lê-se na contracapa.

O livro serviu de pretexto à entrevista que se segue. Maria do Rosário Pedreira, que é também editora e das mais influentes, recebeu o Observador na sede do grupo LeYa, em Alfragide, onde trabalha desde 2010. Durante mais de uma hora falou da aversão ao “politicamente correto” e às “questiúnculas” da chamada “linguagem inclusiva”. Lastimou a literatura que “não é literatura” e relatou como descobre novos talentos literários. Para a polémica em torno da tradução da americana Amanda Gorman usou duas palavras: “Protecionismo racista”.

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Nascida em Lisboa em 1959, é casada com o também editor Manuel Alberto Valente. Começou a publicar poesia em 1996 (com A Casa e o Cheiro dos Livros), que reuniu em 2012 num só volume. Assinou o romance Alguns Homens, Duas Mulheres e Eu e para uma geração que ronda os 30 anos é a eterna autora dos livros de aventuras Clube das Chaves (em parceria com Maria Teresa Maia Gonzalez). Assinou letras para intérpretes como Carlos do Carmo, Aldina Duarte ou António Zambujo e fez uma colaboração recente com João Gil, que pode ver a luz dia no fim deste ano. Estudou línguas e literaturas modernas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Como editora começou em 1998, na Temas e Debates, mas já levava 11 anos a trabalhar no mercado editorial. Mantém uma crónica semanal no site Mensagem de Lisboa.

A capa de "Adeus, Futuro", livro que reúne crónicas de Maria do Rosário Pedreira (Quetzal)

Ferreira Fernandes diz no prefácio que é uma revolucionária conservadora. Concorda?
Essa qualificação vai bem com o que fui nestas crónicas. Quando me convidaram para as escrever, tive um primeiro momento de pânico, porque não tinha qualquer experiência. Não de crónica, porque no meu blogue escrevo muitas crónicas, mas da crónica como comentário da atualidade e de forma regular.

A atualidade foi um dos pressupostos do convite para ser cronista do DN?
Não, mas achei que estaria implícito. Aceitei o convite, mas disse que precisava de tempo para pensar. Queria que as minhas crónicas tivessem um denominador comum.

Esse denominador é o pessimismo?
Não, não. Descobri que o ponto de partida tinha que ver não com o futuro mas com o regresso ao passado. Há a ideia de que o passado, só porque foi obscurantista, era mau em tudo. Entendo que havia muitas coisas boas.

De que passado estamos a falar?
Do tempo minha infância, dos anos 60 e 70. Há uma certa tendência para se cortar com esse passado, porque correspondeu a uma fase obscura.

Politicamente obscura em Portugal?
Sim. Hoje há muito medo de se usar aspetos bons desse passado. Na educação, por exemplo. A abertura é fantástica, os que são bons nunca tiveram tantos recursos… Mas temos enormíssimos problemas de disciplina, que acho que têm origem no medo de levar a autoridade para o ensino. A autoridade estava muito ligada ao fascismo e à ditadura. Deu-se tanta liberdade que os pais hoje vão à escola bater nos professores e os alunos andam de skate dentro da sala de aula.

Em muitas área temos sinais de um regresso ao passado, o que significa que essa visão…
Mas não quero nada um regresso ao passado. Não era isso que estava em causa nestas crónicas. Queria, sim, comparar a facilidade com que se diz mal daquele tempo e o perdão, no presente, a coisas absurdas, a ponto de a visão do futuro ser tenebrosa.

Isso implica o regresso a alguns valores do passado, pelo menos nos campos em que considera ter havido uma evolução negativa.
A alguns valores, sim. Outros não e Deus queira que não.

Que valores se perderam e considera valiosos?
Não sou uma pessoa religiosa, mas acho que os princípios cristãos da compaixão, da caridade e do ajudar o outro estão todos em falência. As pessoas não se preocupam nada com o outro. São individualistas, não são empáticas. Claro que há minorias… Os que viveram antes do 25 de Abril, como eu, sonharam que a democracia nos ia trazer não apenas a liberdade, mas também a possibilidade de todos terem ensino, leitura, cultura, o que iria criar populações mais informadas, mais interessadas. Ora, o que vemos é que os jornais estão cheios de fake news, de pessoas impreparadas, o ensino é ministrado pelos que têm médias mais baixas à entrada dos cursos. Passei pelo ensino durante cinco anos, na década de 80, e já via que isto ia acontecer. Como conto numa crónica, naquele tempo os editores iam mostrar livros à escola onde eu estava e os professores não se interessavam minimamente, mas quando aparecia uma senhora vender ouro as professoras estavam lá caídas. Já se adivinhava os erros de interpretação sobre o que é a disciplina e o cumprir obrigações. Já nessa altura estavam no ensino os que não tinham conseguido outro emprego, aquilo era uma espécie de caixote do lixo.

"Uma vez estava na Feira do Livro e vi uma fila enorme para a sessão de autógrafos de uma miúda dos seus 20 anos. O livro dela tinha ilustrações com umas frases por baixo. As pessoas abraçavam-na e diziam que o livro era lindo. Fui pegar no livro e abri numa página que tinha o desenho de um sexo masculino estilizado e por baixo dizia “Fodafone”. Isto vende 40 mil exemplares. Só posso estar preocupada."

Essa visão pessimista pode ser apenas uma interpretação.
Não me parece. Quando o país mais importante do mundo teve um presidente como Donald Trump é porque batemos todos no fundo. Não é possível que os EUA, que são um pouco de todos nós, tenham tido como presidente aquela criatura. Ou Bolsonaro no Brasil. Estamos a entrar por um caminho que tem tudo que ver com a falta de cultura, de leitura, de valores. Tenho que me assustar com o futuro quando tenho uma geração adolescente em Portugal que diz aos pais que não quer ir visitar certo monumento porque já o viu em fotografia. É assustador.

A idade costuma tornar as pessoas mais conservadoras. Acontece consigo?
Claro. Não podemos ignorar que enquanto caminhamos para a velhice… O Julian Barnes tem uma frase notável em O Papagaio de Flaubert: é muito mais fácil, quando nos aproximamos da morte, pensarmos que vamos abandonar um lugar que é desengraçado. Há essa tendência. Quando estávamos lá atrás, éramos ignorantes, portanto não tínhamos a noção das coisas que temos quando somos mais velhos. Não reparávamos. Os meus pais, provavelmente, também acharam que o meu tempo de juventude foi horrível. Repare: o número de leitores tem vindo a baixar, estamos em 2021 e ainda não conseguimos igualar as vendas que tivemos em 2007. A queda é diária. Preocupa-me muito um país sem leitores. Como dizia o Manguel, num artigo muito interessante no New York Times, a verdade é que a leitura cria empatia. Há estudos sobre isso. Uma pessoa que lê o David Copperfield ganha uma empatia e uma compaixão pela pobreza. Quem leu a Odisseia perceberá melhor aquilo por que passam os migrantes que hoje atravessam o Mediterrâneo. Os dispositivos eletrónicos são o contrário disto: fixam o olhar num objeto, não nos deixam reparar no outro, a comunicação é através da máquina, não há conversa, não há toque.

Talvez a realidade do humano esteja a mudar e isso seja difícil de aceitar.
Talvez, mas até me ir embora vou lutar para que a humanidade, mesmo mudando, seja humanista. E não é. Esse é o problema.

A leitura de livros pode vir a ser substituída pelas séries em streaming?
Quando leio um livro onde se diz que “a Joana é loira e bonita”, na minha cabeça aparece uma Joana e na cabeça de outra pessoa aparece outra Joana. Na televisão, a Joana é sempre a mesma para toda a gente. Aquilo não desenvolve as capacidades mentais, como faz a leitura. Portanto, não há substituição possível. Passei a adolescência a decorar números de telefone, por exemplo. Hoje ninguém sabe nada de cor. Às vezes, nem o próprio número. Há facilitação permanente, é tudo muito rápido. Penso que isso torna as pessoas cada vez menos interessantes, menos cultas, menos criativas. Um livro do António-Pedro Vasconcelos, que se chama O Futuro da Ficção, diz que todos os períodos criativos e áureos foram muito curtos e seguidos de longos períodos cinzentos, sem gente criativa, o que gera maldade e tristeza. O período da Inquisição, por exemplo. Ele diz que o último período criativo terá terminado nos anos 1940. Hoje a arte é instalação e pouca arte e há uma literatura de muito baixa qualidade. Temos uma minoria de boa literatura, mas o que sobressai são aquelas coisas que aparecem nos tops. Nós, que vivemos os tempos da literatura áurea, sabemos a miséria que são esses livros.

Há sempre o argumento de que quem lê livros considerados maus…
Vai a seguir ler coisas com qualidade? Não, não vai. Não se ganha um leitor de qualidade. Ele vicia-se naquele facilitismo e não consegue acompanhar a literatura séria.

Há uma literatura séria e outra que não é séria?
A outra não é literatura, mas como lhe chamam literatura… São livros, são histórias.

Como por exemplo?
Aqueles livros do Raul Minh’alma ou mesmo do José Rodrigues dos Santos. Para mim, literatura são as obras que ficam para o futuro. Porque é que ainda hoje sabemos quem é o Homero ou o André Gide ou o William Butler Yeats? Os que fazem literatura são os que passam o teste do tempo. Estes que referi não vão passar o teste do tempo. Os leitores são uma minoria cada vez mais reduzida, o que hoje torna difícil a qualquer autor passar o teste de tempo. Vivemos num tempo em que só interessa o presente. Olhe, uma vez estava na Feira do Livro e vi uma fila enorme para a sessão de autógrafos de uma miúda dos seus 20 anos. O livro dela tinha ilustrações com umas frases por baixo. As pessoas abraçavam-na e diziam que o livro era lindo. Fui pegar no livro e abri numa página que tinha o desenho de um sexo masculino estilizado e por baixo dizia “Fodafone”. Isto vende 40 mil exemplares. Só posso estar preocupada. Quem abraça uma autora destas e lhe diz que o livro mudou a sua vida…

E se mudou a vida dessas pessoas?
Até pode ter mudado, não quer dizer que tenha sido para melhor. Penso que todos os Velhos do Restelo têm o direito de reclamar e de lutar por aquilo que acham que faria um mundo melhor. É isso que faço.

"Há uma geração claramente formada pela televisão, que acha que um livro é um guião de novela", diz a escritora e editora

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Vê-se então como Velho do Restelo?
Sou um bocado. Não sou uma revolucionária histérica, sou uma revolucionária conservadora. Gostaria de revolucionar o mundo, porque me parece que o mundo vai num sentido muito perigoso e mau. Faço o meu pedagogismo de forma calma, sensata e o mais possível racional. Não sou nada de comportamentos histéricos. Sou uma pessoa ponderada e sou muito lúcida.

Quando é que se apercebeu de que tinha um pouco de Velho do Restelo?
Falei disso agora. Não houve um momento. Apercebi-me, sim, que já nos anos 80 havia indícios de que, sobretudo em Portugal, tínhamos enormes problemas com a leitura, com o ensino e com a ignorância. Tinha passado muito pouco tempo desde o 25 de Abril de 1974. Eu, que sou de esquerda, sonhei outra coisa. Com a minha irmã, logo a seguir ao 25 de Abril, estive em campanhas de alfabetização, tentámos ajudar pessoas a falar francês porque precisavam de emigrar para a Suíça, etc. Custa-me horrores ver que aquilo tudo com que sonhámos e por que lutámos afinal não deu em nada. As pessoas querem ser ignorantes, não querem participar na sociedade, os jovens não votam, não querem saber do lugar onde vivem e de quem os governa. Porquê? Porque já nasceram com tudo e não tiveram de exigir nada? Assusta-me imenso. O fosso entre ricos e pobres é cada vez maior, temos dois milhões de cidadãos no limiar da pobreza, e em vez de resolvermos estes problemas estamos a perder tempo com questiúnculas que não resolvem nada, como “todas e todos” e “presidenta”. Nunca ouvi nenhum homem queixar-se por não ser “dentisto” ou “pianisto”.

São questiúnculas?
O feminismo não é uma questiúncula, mas o que tem de se resolver é a igualdade de oportunidades, não é a gramática. Como as pessoas não têm a coragem de pôr a mão na massa para resolver as questões de fundo — o racismo, os direitos das mulheres, a pobreza, coisas que, sim, têm de ser resolvidas —, entretêm-se com coisitas.

Foi nos meios académicos que nasceu a ideia de que as palavras condicionam o pensamento. Julia Kristeva dizia isso nos anos 70. Muitas pessoas estarão preocupadas com o “todas e todos” por entenderem que só com a mudança na linguagem é que se muda o pensamento e a prática.
Linguagem e língua não são a mesma coisa, e a língua muda espontaneamente ao longo do tempo, não mediante imposições externas. Não é por se forçarem femininos em palavras neutras que a linguagem mudará. Será que as pessoas que exigem o “todas e todos” dizem em casa delas “filhos e filhas, vamos sair”? Ou “este ano vamos todos e todas de férias”? Pergunte-lhes se dizem isto. Não dizem.

É uma ideia hipócrita?
Claro que é. Vivemos num tempo muito hipócrita, que tenta escamotear a falta de vontade ou a dificuldade de resolver as questões sérias. Essas preocupaçõezinhas vão açucarando as pessoas, dão a ideia de que se está a fazer alguma coisa séria. Mas não se está a fazer nada. O racismo, por exemplo, não se resolve por se deixar de dizer “preto” e passar a dizer “negro”.

Deixou o ensino e passou para o setor livreiro por estar desiludida com o que via?
Não, eu até gostava do ensino. Aconteceu começar a trabalhar numa editora. Dava aulas à tarde e de manhã estava na editora. Entretanto o editor foi viver para Macau e pediu-me para ficar a tempo inteiro. Foram cinco anos, tive de agarrar o projeto, estava sozinha porque as outras pessoas eram da parte comercial, da contabilidade.

Já fazia planos para ser editora?
Não. O dia a dia passou a ser aquele e fui aprendendo, aprendendo. Depois saí, estive um ano e tal fora da edição, a fazer trabalho para a representação portuguesa na Feira do Livro de Frankfurt. Em 1998 fui convidada para entrar já como editora para uma editora do grupo Bertelsmann. Eles tinham o Círculo de Leitores e não vendiam em livrarias, só ao domicílio. Entrei para tentar levar esses títulos para o mercado tradicional dos livros e para criar uma editora de raiz. A partir daí, nunca deixei.

"A outra não é literatura, mas como lhe chamam literatura… São livros, são histórias. Aqueles livros do Raul Minh’alma ou mesmo do José Rodrigues dos Santos. Para mim, literatura são as obras que ficam para o futuro. Porque é que ainda hoje sabemos quem é o Homero ou o André Gide ou o William Butler Yeats? Os que fazem literatura são os que passam o teste do tempo."

Dizem que é uma das mais poderosas editoras portuguesas.
De modo nenhum. Se calhar tive mais visibilidade do que poder. A visibilidade foi-me dada, graças a Deus, pelos autores que publiquei, que foram premiados e largamente traduzidos. Até hoje, são pessoas importantes.

Qual foi o primeiro?
José Luís Peixoto, se não estou em erro. Depois o Valter [Hugo Mãe], o João Tordo… Foram autores que lancei. Criou-se a ideia de que, com estes autores, que ganhavam prémios, eu tinha poder, mas não é verdade.

Hoje é responsável pela ficção portuguesa da LeYa?
Não, há muita ficção portuguesa que não sou eu que publico. Vim para o grupo LeYa publicar novos autores, novos talentos, em português. Depois alarguei a línguas periféricas, com as quais normalmente as outras chancelas do grupo não trabalham: neerlandês, coreano, mesmo o alemão. Ou seja, escritores promissores de países não muito badalados. Tenho tido sorte, porque dois deles já ganharam o Booker. Ter faro não é ter poder. Poder terá o dono de uma editora, não eu.

Tem o poder de quem tem bom faro.
Tenho algum faro. Tenho publicado bastantes livros que tiveram sucesso e cujos autores seguiram uma carreira.

Como é que isso se sabe?
São muitos fatores em jogo. É preciso ter lido de tudo no mundo para percebermos cada vez mais facilmente o que pode funcionar. Porque é que há tanta gente a ser escritora?

Porque é barato.
Pois, porque a pessoa precisa apenas do computador para escrever. Vai utilizar o quê para escrever? O mesmo que utiliza todos os dias para comprar um medicamento ou para pedir um café: as palavras. Ao fim de séculos de texto escrito, ainda é possível utilizar este material banal para fazer combinações novas. É fantástico estar a ler um texto e de repente ficar espantada porque aquilo é novo, não foi feito por ninguém. É isso que se procura quando se é editor. Sobretudo, a inventividade e a originalidade. O problema é que, com a indústria, em vez de se procurar um autor procura-se o que o leitor quer. Isso é tremendo. Se o leitor quer o Big Brother, temos livros à moda do Big Brother.

Mas não é isso a democracia?
Democracia é oferecer a toda a gente a mesma oportunidade de chegar à informação, ao livro e à cultura. Quanto mais estúpidas e mal informadas estiverem as pessoas, menos se conseguem defender.

Quantos originais recebe por ano? Ainda funciona assim: as pessoas mandam o original por correio à editora?
É por email. Recebo muitíssimos.

Mandam-lhe o livro todo?
Algumas pessoas, sim. O que pedimos é uma sinopse e alguns capítulos para avaliarmos. Não há hipótese de responder a todos. Até há pouco tempo recebíamos uma média de 150 originais por ano. Quando se tornou quase impossível ler tudo, passámos a sugerir às pessoas que concorressem ao Prémio LeYa, porque a equipa é maior e podemos dar resposta mais depressa.

Numa das crónicas do livro fala da falta de qualidade daquilo que lhe enviam.
É outra coisa que me preocupa. Há uma geração claramente formada pela televisão, que acha que um livro é um guião de novela. São notas para um romance, não são romances. É tudo escrito no presente, não usam outros tempos verbais. Há aliás alguns tempos verbais que estão a morrer, como o mais-que-perfeito e o imperfeito do conjuntivo. Um escritor muito bom é capaz de escrever apenas no presente, não digo que não, mas ali percebe-se que é um decalque da linguagem televisiva. Além disso, há pessoas viciadas em cursos de escrita criativa, que acham que isso basta. Levam à letra, por serem pouco espertas, que o orientador do curso lhes tenha dito que é preciso descrever bem as personagens, e então dizem que o Zé pesava “x” quilos e media não sei quanto. Percebe-se imediatamente que a pessoa quer ser escritora sem ter sido leitora. Não é capaz sequer de construir uma sinopse. Já disse a algumas pessoas que precisavam de ler mais para poderem escrever e responderam-me que não gostam de ler. Está tudo dito.

Com o passar dos anos surpreende-se cada vez menos com o que lê?
É como tudo. Quem viaja muito também começa a ver mais semelhanças do que diferenças nos lugares a que vai. Livros que aos 16 anos me deixaram fascinada, lidos aos 50 ou 60 anos fazem-me pensar sobre o porquê de ter gostado tanto. À medida que a vida avança, que a nossa cultura é enriquecida com outras coisas e a nossa maturidade é outra, deixa de haver tanta surpresa.

"Ao fim de séculos de texto escrito, ainda é possível utilizar este material banal para fazer combinações novas. É fantástico estar a ler um texto e de repente ficar espantada porque aquilo é novo, não foi feito por ninguém. É isso que se procura quando se é editor. Sobretudo, a inventividade, a originalidade."

É preciso criar uma personagem para se ser cronista?
Diria que, mais do que uma personagem — que não está aí, está apenas o “eu”, sou eu mesma — há sobretudo ficção. As minhas memórias nem sempre estão aí exatamente como aconteceram, têm de ser moldadas para se ligarem à história que interessa contar. Há coisas limadas e polidas a partir da minha memória do passado, porque dá mais jeito. A minha crónica está próxima de uma peça literária, mas sem grandes pretensões.

Em que registo se sente mais à vontade: poesia, romance ou crónica?
Depende dos dias. Os outros consideram-me sobretudo poetisa. Dentro da poesia também faço ficção. Introduzo sempre uma narrativa em tudo o que escrevo. Não fui mãe e não tenho a veleidade de saber o que é perder um filho, mas tenho um poema sobre um casal que perde um filho. O sentimento é genuíno na poesia, mas o contorno ou o contexto pode corresponder a uma narrativa ficcional. A ficção é o género que mais utilizo para falar da verdade. A ficção serve para falar da verdade.

Preza muito a ironia e o humor?
Os leitores podem dizer melhor que eu. Não tenho isso como intenção antes do texto, porque as crónicas são espontâneas. Não parto de figuras estilo, aparecerão naturalmente à medida que escrevo. Na poesia também. Muitas vezes o poema começa por causa de um verso que nos aparece na cabeça, mas quando é publicado esse verso já nem está lá.

Quem são as suas referências? Marguerite Duras terá sido das primeiras autoras que leu.
Não foi das primeiras, foi das mais importantes. Li-a quando já andava na faculdade, anos 70, por sugestão de um professor. Foi o Moderato Cantabile [1958], que nem é dos livros dela de que mais gosto. Antes disso, li os livros da Coleção Dois Mundos, da Livros do Brasil:  Steinbeck, Hemingway, por aí. Costumo falar da Duras porque foi um espanto, deu-me uma experiência literária nova, mostrou-me que a literatura podia ser desconstruída, uma coisa totalmente diferente da escrita clássica.

Prefere os originais ou as traduções?
Traduções, se forem boas. Por muito que saiba inglês, francês, italiano e algum alemão, perco sempre alguma coisa. Só abro uma exceção: a poesia tem de ser na língua original, porque a tradução muda-lhe a música.

Caso Amanda Gorman: quem traduz deve ter a mesma identidade de quem é traduzido?

Como editora, se tivesse agora de mandar traduzir o poema de uma autora negra americana…
Por favor!

Que critério utilizaria?
Alguém sensível, que soubesse muito bem a língua de partida e a de chegada e que tivesse o sentido do poético. Há gente da prosa com sentido do poético, que traduz muito bem poesia. Só isso.

A cor da pele ou o género do tradutor não seriam critério?
De maneira nenhuma. A literatura é universal. Esse critério é igual a dizer os negros só podem ler livros de negros, que os brancos só podem ler livros de brancos, que as mulheres só podem ler livros de mulheres.

Há quem diga que as pessoas negras têm poucas oportunidades na área da tradução porque as editoras só contratam pessoas brancas.
Se alguém negro se candidatou a um lugar e foi preterido por causa da cor da pele, isso é gravíssimo. Agora, se ninguém negro se candidatou ou se tinha um currículo pior… Se contratar uma pessoa negra só porque ela é negra, estou a sublinhar que ela é negra.

Mas está a dar-lhe uma oportunidade, que ela se calhar não teria.
E se essa pessoa for pior profissional do que as outras que estão disponíveis? Não faz sentido. Fui a Nova Iorque, ao Whitney Museum, onde estava uma exposição de fotografia. Como só conheço os fotógrafos americanos mais conhecidos, fui ver as notas biográficas. Havia uma que começava assim: “Esta artista, que é neta de escravos…” Isto não é racista? Este protecionismo não é racista? Quando estou a ver uma exposição, é-me indiferente qual a origem étnica do autor.

O trabalho dela remetia para a escravatura?
Nada, eram fotografias de cidade. Muito interessantes. Lembro-me de ter publicado um livro, ainda nos meus primeiros anos de edição, do então diretor da Biblioteca do Congresso, Daniel Boorstin: O Nariz de Cleópatra. É sobre o politicamente correto. Ele dizia que na América um jornal de grande tiragem se obriga a ter uma notícia sobre negros, outra sobre mulheres, outra sobre esta e aquela minoria. Isto é um protecionismo que só sublinha o racismo, o machismo, etc. É o “coitadinhos, estão aqui porque temos pena deles.” Se as pessoas são todas iguais, é preciso dar-lhes as mesmas oportunidades e lutar por essa igualdade. Isso não passa de certeza por transformar a palavra presidente em “presidenta”.

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