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“Um conhecimento profundo da importância da Aliança, um líder natural e um comunicador que serviria bem a Aliança nestes tempos críticos.” A administração norte-americana não poupou elogios ao primeiro-ministro neerlandês demissionário, Mark Rutte, para explicar os motivos pelos quais o apoia para assumir o cargo mais importante na NATO: o de secretário-geral. No ano em que a Aliança transatlântica faz 75 anos desde que foi fundada, que se assinalam esta quinta-feira, tudo parece indicar que o homem que liderou os Países Baixos durante 14 anos deverá suceder ao norueguês Jens Stoltenberg.
Não são apenas os Estados Unidos que apoiam Mark Rutte. Os maiores países europeus na NATO também endossam a candidatura do neerlandês. Os assessores do chanceler alemão, Olaf Scholz, saudaram a sua “imensa experiência e as suas habilidades diplomáticas”, o primeiro-ministro francês, Gabriel Attal, sublinhou as “grande capacidade de unir e a sua capacidade de agir em prol da segurança coletiva” e o executivo britânico de Rishi Sunak lembrou que o “respeito” que granjeou entre os Estados-membros da aliança nos últimos anos.
Publicamente, há apenas um nome na corrida para concorrer com Mark Rutte: o do atual Presidente da Roménia, Klaus Iohannis. Contrariamente ao neerlandês — que nunca assumiu a candidatura —, o chefe de Estado abriu o jogo e justificou por que está na corrida: “A NATO precisa de se renovar a perspetiva da sua missão. A Europa de Leste tem tido uma contribuição valiosa nas conversas e nas decisões da NATO. Com uma representação balanceada, forte e influente desta região, a Aliança será capaz de tomar as melhores decisões para responder a todas as necessidades e preocupações dos Estados-membros”.
Vários governos da Europa de Leste pretendem que seja um líder oriundo desta zona geográfica a liderar a Aliança transatlântica, devido à guerra na Ucrânia que abalou e revitalizou a Aliança. Tendo em conta a ameaça que a Rússia representa, os executivos de Leste sentem que é altura de dar uma maior importância à região, muitas vezes marginalizada. Contudo, os 32 Estados-membros deverão acabar mesmo por eleger Mark Rutte, o quarto neerlandês a assumir a função de secretário-geral.
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“O apoio público dos Big Four [Alemanha, França, Reino Unido e Estados Unidos] de Mark Rutte torna quase certo que seja ele o escolhido. A NATO espera chegar a um consenso antes da cimeira de Washington em julho”, assinala ao Observador Jamie Shea, membro do think tank Chatham House, que já desempenhou várias funções dentro da Aliança. A embaixadora dos Estados Unidos na NATO, Julianne Smith, confirmou essa data num briefing online com jornalistas, onde o Observador participou, realçando que o processo está a “meio” e estão a ser pesados os “prós e os contras” das duas candidaturas. A diplomata voltou a reiterar, no entanto, que os norte-americanos desejam que seja o ainda primeiro-ministro dos Países Baixos a assumir o cargo.
E está longe de ser a vontade apenas dos Big Four. De acordo com o que apurou o Financial Times, 28 Estados-membros apoiam a candidatura de Mark Rutte, incluindo Portugal. Há apenas quatro países a criar obstáculos à candidatura do neerlandês: a Roménia (que tem um candidato), a Eslováquia, a Turquia e a Hungria. Ora, as relações entre o ainda primeiro-ministro neerlandês e o seu homólogo húngaro, Viktor Orbán, não são as melhores — o que promete criar problemas a uma eventual unanimidade entre os 32 aliados.
Mark Rutte: o “realista pragmático” que é “capaz de abraçar o diabo”
Um político de centro-direita, mas que negocia com a extrema-direita e com a esquerda. Mais do que alguém com ideologia bem definida, Mark Rutte é um negociador nato. Como escreveu o Financial Times, o líder neerlandês “beberia um café com o diabo e provavelmente abraçá-lo-ia”. Para Mark Rutte, o importante é chegar a consensos através de negociações, mais do que a defesa acérrima das suas ideias.
Ao longo de 14 anos à frente dos Países Baixos, Ben Bekkering, vice-almirante na reforma e antigo representante militar neerlandês na NATO, lembra ao Observador que Mark Rutte “provou que conseguiu liderar coligações com maiorias marginais, compostas por partidos políticos muitos deles com opiniões divergentes”. E fê-lo em tempos complexos, como a “pandemia da Covid-19 ou a crise geopolítica em torno da Ucrânia”.
No primeiro governo que formou após vencer as eleições parlamentares de 2010, Mark Rutte fez um acordo de incidência parlamentar com o Partido para a Liberdade, de extrema-direita e liderado por Geert Wilders (que venceu as últimas eleições em 2023). Foi precisamente esta força política que lhe retira a confiança política, em 2012. Isso levou a que o ainda primeiro-ministro se coligasse depois com o Partido do Trabalho, de centro-esquerda.
Nas eleições de 2017, o partido de Mark Rutte — Partido Popular para a Liberdade e Democracia (VVD, sigla em neerlandês) — volta a sangrar-se vencedor. Contudo, o Partido do Trabalho obtém um resultado aquém das expectativas, sendo que a coligação não atinge os lugares suficientes para formar uma maioria. Assim, o líder do governo decidiu aliar-se a outros partidos pequenos de direita e aos liberais, o suficiente para obter maioria. O mesmo aconteceu em 2021, até que, dois anos depois, fruto de um desacordo na política migratória, o chefe do executivo deixou cair o governo e anunciou que abandonaria o cargo.
Ainda que tenha havido eleições nos Países Baixos em novembro do ano passado, os partidos ainda não chegaram a nenhum acordo para uma maioria estável na Câmara dos Representantes, o que tem mantido Mark Rutte naquele lugar. Ora, isso deverá alterar-se quando o primeiro-ministro demissionário for muito provavelmente eleito secretário-geral da NATO.
Todo este passado governativo mostra que Mark Rutte sabe como construir pontes entre partidos que pouco têm em comum. Como explica Jamie Shea, a NATO procura sempre alguém que tenha “influência e experiência para representar a NATO no panorama internacional”, que consiga “arbitrar divergências entre os 32 aliados” e disponha de “competências de gestão para dirigir uma grande e complexa organização como a NATO”. E o neerlandês parece preencher todos os requisitos para o cargo.
“Mark Rutte é o candidato que é visto como estando a meio do caminho, um candidato de continuidade com a imagem do muito apreciado [Jens] Stoltenberg”, nota Jamie Shea, que sintetiza duas das principais características do neerlandês: “Um realista pragmático”. Por sua vez, Ben Bekkering acrescenta: “Ele tem o conhecimento, as habilidades e a experiência para avançar com a resolução de problemas, apesar das diferentes opiniões e interesses variados”.
“Eu acredito que são essas competências que tornam Mark Rutte o candidato perfeito para ser o próximo secretário-geral da NATO”, continua Ben Bekkering, lembrando o contexto internacional: “Nestes tempos difíceis, com interesses por vezes divergentes entre os aliados, com tendências nacionalistas crescentes e com o aumento das ameaças e dos riscos de segurança, os Estados-membros veem a NATO como a melhor garantia para a paz na região transatlântica e fora dela”. “Mark Rutte provou ser mais do que capaz de liderar eficazmente sob essas condições”, acredita o vice-almirante na reforma, destancando ainda a sua “modéstia”.
O “atlantista” Mark Rutte que é “duro com a Rússia” e que pede aos europeus para deixarem de “se queixar” de Trump
Além da sua personalidade e capacidade de gerar consensos, há outros motivos para que Mark Rutte seja visto como o candidato ideal para suceder a Jens Stoltenberg. Em primeiro lugar, o facto de ter nacionalidade neerlandesa. “Os Países Baixos são um país favorecido quer na NATO, quer na União Europeia. São vistos como atlantistas e europeístas ao mesmo tempo”, argumenta Jamie Shea, realçando: “Poucos países têm algo a opor-se”.
Outro fator que favorece o primeiro-ministro neerlandês consiste no facto de trabalhar com pessoas de todas ideologias. E isso inclui o antigo Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que está na corrida à Casa Branca e poderá tornar-se o próximo chefe de Estado. “Rutte mantém boas relações com Trump, com Biden e com o Congresso norte-americano”, subscreve Jamie Shea.
A chegada de Donald Trump à Casa Branca pode mudar por completo a NATO, correndo mesmo o risco de a Aliança se dissolver. Ao longo do seu mandato, o magnata manteve várias reservas sobre a Aliança, instando os Estados-membros a investirem os 2% do PIB em defesa, algo que ficou acordado em 2014. As declarações recentes do republicano — de que “encorajaria a Rússia a atacar um Estado-membro” que não cumprisse a meta financeira —, fez com que soassem os alarmes na Europa.
Consciente do pouco entusiasmo de Donald Trump pela NATO, o Congresso norte-americano aprovou, em dezembro de 2023, uma medida que proíbe que a decisão de sair da Aliança seja apenas tomada por iniciativa presidencial, com o apoio de democratas e de alguns republicanos. Agora, a decisão terá também de passar pelo Senado e precisa de dois terços de votos a favor para ser aprovada.
Neste contexto de incerteza oriundo do principal Estado-membro da aliança, Mark Rutte parece ser a pessoa ideal para gerir um eventual regresso de Donald Trump à Casa Branca. Ainda recentemente, o líder do executivo neerlandês aconselhou os europeus a pararem de se “queixar” sobre o antigo Presidente norte-americano. “[A decisão] cabe aos norte-americanos. Não sou norte-americano, não posso votar nos Estados Unidos”, afirmou na Conferência de Segurança de Munique, mostrando mais uma vez o seu pragmatismo: “Temos de trabalhar com quem está na pista de dança”.
Simultaneamente, a seu favor, Mark Rutte defende convictamente, segundo Jamie Shea, a “relação transatlântica” e “é um oponente firme de uma ‘autonomia estratégica europeia’, independente dos Estados Unidos”. “Isso faz com que seja valorizado pelos norte-americanos, britânicos e escandinavos”, ao mesmo tempo que obtém o respaldo francês e alemão, “que não favorecem um secretário-geral da Europa de Leste”.
No que toca à Rússia e à China (considerados os dois principais rivais geopolíticos da NATO), Mark Rutte adota uma posição “dura” e crítica, o que contenta a esmagadora maioria dos Estados-membros. No entanto, a relação entre Vladimir Putin e o primeiro-ministro dos Países Baixos nem sempre foi má. No início do seu mandato, em 2013, o neerlandês visitou São Petersburgo e mostrava ter “grandes perspetivas sobre o incremento das relações comerciais e económicas com a Rússia”. O chefe de Estado russo concordava e destacava: “As nossas trocas comerciais chegaram aos 82 mil milhões de dólares. Os investimentos também aumentaram”.
As relações entre os Países Baixos e a Rússia começaram a azedar em 2014 com a anexação da Crimeia. E atingiram ainda um ponto mais baixo, quando a Rússia abateu o avião da Malaysia Airlines (que saiu de Amesterdão rumo à capital malaia, Kuala Lumpur) naquele ano, o que originou a morte de 193 cidadãos neerlandeses. Pioraram ainda mais com a invasão russa da Ucrânia, sendo que Mark Rutte foi sempre um forte defensor de Kiev. Por exemplo, os Países Baixos foram um dos poucos países, conjuntamente com a Dinamarca, que concordou enviar caças F-16 para defender os céus ucranianos.
Klaus Iohannis: o candidato do Leste da Europa (que tem trunfo contra Mark Rutte)
Tal como Mark Rutte, Klaus Iohannis é alguém experiente nas lides políticas. É Presidente da Roménia desde 2014 e está em fim de mandato (acumulando o limite de dois), devendo sair de cargo no início do próximo ano, ainda que com a popularidade em mínimos. Numa decisão tida como surpreendente, o chefe de Estado anunciou a candidatura a secretário-geral no início de março.
Ganhou logo o estatuto de candidato do Leste da Europa contra Mark Rutte, antecipando-se a nomes como o da primeira-ministra da Estónia, Kaja Kallas, ou o do Chefe de Estado da Letónia, Edgars Rinkēvičs, que expressaram algum interesse no cargo de secretário-geral. E conta com um trunfo em relação ao primeiro-ministro neerlandês: o facto de serem os Estados-membros de Leste quem lidera os gastos em Defesa. Por exemplo, em 2023, a Roménia gastou 2,44% do seu PIB naquela área, enquanto os Países Baixos se ficaram pelos 1,70%.
“O anúncio de Iohannis dá aos europeus de Leste um pretexto para apresentarem novamente o argumento de que estão a gastar mais em Defesa do que a Europa Ocidental”, sinaliza Jamie Shea, mostrando que é aquela região da Europa que mais “enfrenta a Rússia”: “Então, é a sua vez de liderarem a aliança”. Num artigo de opinião publicado no Politico, em que detalhava as principais prioridades do seu futuro mandato, o chefe de Estado romeno enfatizava precisamente esse ponto: “Devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para atingir os 2% do PIB em despesas com a Defesa o mais rapidamente possível”.
Além disso, Klaus Iohannis destacava que eram as “fronteiras de Leste e do Sul” da NATO que estavam mais expostas a ameaças, mostrando que a Roménia é um país que geograficamente localizado nesses dois pontos geográficos. “[As fronteiras] devem ser fortalecidas. E não nos devemos esquecer do Extremo Norte e dos Balcãs Ocidentais e a sua importância para a nossa segurança é indiscutível.”
Apesar destas reivindicações, no entender de Jamie Shea, as chances do Presidente romeno substituir Jens Stoltenberg são baixas. O especialista ressalva, porém, que a candidatura de Klaus Iohannis não pode ser “facilmente descartada”, já que “apresenta um plano detalhado” para o futuro da NATO. A embaixadora norte-americana na aliança elogiou o chefe de Estado romeno, “respeitando” a sua decisão de apresentar à corrida, ainda que os EUA não o tenham apoiado.
Do Leste da Europa chegaram, no entanto, más notícias para a candidatura de Klaus Iohannis. A primeira-ministra da Estónia, uma das líderes mais respeitadas desta região, anunciou que apoiaria Mark Rutte. Numa publicação no X (antigo Twitter), Kaja Kallas escreveu que apoiará o primeiro-ministro demissionário, após uma discussão “profunda” com o líder neerlandês. E deixou vários recados que mais parecem ter servido como condições para esse apoio: a NATO precisa de estar muito “atenta à Rússia”, tem de “aumentar os gastos em Defesa”, tem de “apoiar a adesão da Ucrânia” à aliança e tem de subscrever o princípio do “equilíbrio geográfico”.
For a strong #NATO, we need to be clear-eyed on Russia, boost deterrence and defence spending, back Ukraine's membership, and geographic balance.
I have discussed this in depth with @markrutte and he commits to these priorities. Estonia can back him for NATO's Secretary General.
— Kaja Kallas (@kajakallas) April 2, 2024
Erdoğan e Orbán podem atrasar candidatura de Rutte
Eslováquia, Hungria, Roménia e Turquia ainda não estão completamente convencidos com a candidatura de Mark Rutte. De acordo com Jamie Shea, o governo húngaro e o turco podem mesmo “atrasar” a eleição do primeiro-ministro neerlandês, tal como fizeram com a adesão da Finlândia e da Suécia. O objetivo? Tentar ganhar alguma vantagem com a intransigência.
O Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, tem mantido uma posição ambígua sobre o apoio a Mark Rutte. O líder da Turquia apenas refere que o país vai apoiar um líder que defenda os “interesses” de Ancara e que tenha em consideração os problemas dos Estados-membros que não integram a União Europeia. E deixou uma pista, segundo a agência de notícias TRT: o novo secretário-geral tem de ter como uma prioridades o combate contra o terrorismo.
Por seu turno, a Hungria já se opôs à candidatura do ainda primeiro-ministro dos Países Baixos. Viktor Orbán e Mark Rutte não escondem a animosidade que sentem um pelo outro. “Certamente não podemos apoiar a eleição de um homem para o cargo de secretário-geral da NATO que queria forçar a Hungria a ajoelhar-se”, atirou o ministro dos Negócios Estrangeiros húngaro, Péter Szijjártó.
As declarações de a Hungria “ajoelhar-se” remontam a 2021, quando Mark Rutte criticou duramente as medidas anti-LGBT adotadas pelo governo húngaro. O chefe do executivo neerlandês afirmou que a Hungria “não tinha mais lugar na União Europeia” e que devia ser “obrigada a ajoelhar-se” neste assunto, sugerindo que o país devia ser pressionado por Bruxelas para que não adotasse a legislação.
Um atraso na escolha do novo secretário-geral, que se estendesse para além do início de julho, seria “embaraçoso” para a NATO, defende Jamie Shea, recordando que a eleição do novo líder da NATO pode ficar igualmente perdido “na alocação de cargos após as eleições europeias em junho”. Por tudo isto, o especialista conjetura que, num futuro mais próximo, haverá ações diplomáticas “ao mais alto nível” para que “alguns aliados do Leste Europeu, em particular a Polónia”, anunciem o seu apoio a Mark Rutte.