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João de Almeida Dias, em Subotica (Sérvia)
Os murros foram tantos que o médico, que batia com uma cega raiva naquela mulher atingida por uma bala na perna, acabou por partir a mão. Isto passou-se nos primeiros meses de 2012, em Latakia, a cidade costeira que é um bastião do Presidente sírio Bashar al-Assad e do seu regime. Ainda assim, no pico da Primavera Árabe, aquela mulher decidiu sair à rua e pedir o fim daquela ditadura de 34 anos.
“Aquele médico estava feito com o regime, que logo ao início dos protestos disse aos médicos para torturarem as pessoas da oposição que chegassem ao hospital”, conta Issam, também ele médico, que assistiu a isto tudo. “Bateu-lhe com tanta força que partiu o quinto metacarpo”, diz, apontando para o osso que vai do nó do dedo mindinho ao pulso. “É o que nós chamamos de ‘fratura de pugilista’.” Issam recorda esta história ainda a quente, como se tivesse acabado de acontecer. “Não foi para isto que eu estudei para ser médico, não é nada disto, nada, nada. Um médico tem de ajudar as pessoas, seja lá quem elas forem. Não serve para torturá-las.”
Por isso, fugiu.
Issam, de 37 anos, está agora de pé e descalço em cima de uma manta cinzenta com o logótipo do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Está perto de Subotica, a última cidade do lado da Sérvia, onde se prepara para atravessar a vedação que protege a fronteira húngara. A espera é feita numa antiga fábrica de tijolos abandonada onde sírios, afegãos, iraquianos e refugiados de outras nacionalidades dormem ao relento ou abrigados nas várias estruturas em desuso que ali resistem, como fornos ou armazéns. Lá dentro, houve quem deixasse inscrições em árabe num longo tubo de metal enferrujado. A maior parte são os nomes daqueles que por aqui foram passando, mas também houve quem deixasse um desejo: “Um dia o meu querido Iraque vai voltar a ser grande”.
Como todos os sítios a céu aberto por onde os refugiados vão ficando, o chão de terra das imediações da fábrica está pejado de lixo, atraindo uma quantidade anormal de moscas. Há um cheiro permanente de fezes e urina neste espaço. Até há pouco tempo, antes de ter sido montada uma estrutura com dois chuveiros e uma torneira, a única água a que os refugiados tinham acesso (além das garrafas amiúde distribuídas por voluntários) era a de um poço que pertencia à fábrica.
É aqui, a três quilómetros de Subotica, e não no centro desta cidade de 100 mil habitantes, que está a maior praça de táxis de Subotica. Na altura em que Issam conta a sua história, estão sete carros estacionados à entrada da fábrica de tijolos, fora aqueles que lá chegam aproximadamente a cada dez minutos. A maior parte deles traz mais refugiados. Uma viagem normal do centro até ali custaria cerca de 2,20 euros — que foi o que o Observador pagou para fazê-la —, mas todos os refugiados com quem falámos pagaram 10 euros pelo mesmo percurso. “Os taxistas sabem que nós não conhecemos isto e que estamos desesperados, por isso aproveitam-se. Têm aqui muito trabalho connosco”, diz Issam, que chegou na noite anterior, por volta das 02h00. “Já era tarde mas havia muitos taxistas a oferecerem-se para me levarem lá. Isto para eles é época alta, hora de ponta a toda a hora!”
Muitos dos taxistas de Subotica tornaram-se agora em contrabandistas, cobrando cerca de 100 euros à cabeça para conduzir uns meros 20 quilómetros até junto da fronteira com a Hungria. São 12h30 e Issam está à espera que um taxista confirme se a estrada até ao país vizinho está livre de polícia.
“Eu tentei muito ficar no meu país, a sério que tentei”
“Eu tentei muito ficar no meu país, a sério que tentei”, diz. Latakia era, para Issam, “a melhor cidade do mundo”. Tinha restaurantes bons, a praia no verão, as montanhas no inverno, o cinema à noite. Era e tinha. A guerra estragou tudo. “Lá não há muita destruição, mas a pouca liberdade que havia deixou de existir. É impossível viver-se em paz naquele lugar.”
Issam e a mulher partiram para Norte e assentaram malas em Sarmada, passando a fazer parte dos 7 milhões de sírios (entre os 23 milhões da população total) que, por causa da guerra, tiveram de fugir para outras zonas do país. O sítio a que chegaram é uma vila na fronteira com a Turquia, onde forças militares da oposição conseguiram tomar o controlo ao exército leal a Bashar al-Assad. Por momentos, a vida parecia normal. Issam voltou a trabalhar como médico e a fazê-lo de cabeça erguida, ao serviço da ONG internacional de ajuda médica International Medical Corps. A mulher, que largara os estudos, também arranjou trabalho. A vida retomava o seu rumo normal, mesmo que lá fora se ouvissem tiros. E, apesar deles, em 2013, nasceu Bisher. Um rapaz saudável, o primeiro filho do casal, que veio ao mundo quando a guerra da Síria ainda não ia a meio.
As coisas pioraram. “Tudo bem que lá havia mais liberdade e tive a sorte de nunca ter ido para lá o Estado Islâmico. Mas os homens quando têm armas na mão e o poder na cabeça acabam por ser todos iguais. O pior deles sobressai de uma forma terrível.” Issam conta que era normal sair à rua de manhã para mais um dia de trabalho e, pelo caminho, encontrar um cadáver no meio da estrada. “Acontece tantas vezes que as pessoas já se começaram a habituar a isso.” Ao contrário de Issam que, por isso, decidiu que tinha novamente de fugir — desta vez para fora da Síria.
“Quando vi as fotografias do Aylan, morto na praia, lembrei-me do meu filho e chorei”
Ao princípio, marido e mulher debateram-se sobre se a família devia ir toda a junta para a Europa. “Falei muito com a minha mulher e tentámos perceber o que é que era melhor para nós todos. No final concordámos que não era seguro o nosso filho fazer uma viagem destas, é muito perigoso. Eu sou o pai da família, portanto tenho de fazer este sacrifício.”
Acabaram por sair todos, passando então a fazer parte dos 4 milhões de sírios que fugiram do seu país. Ainda assim, Bisher e a mãe ficaram pela Turquia, em Antakya, mesmo junto à fronteira da Síria — onde têm a certeza de quererem voltar, “quando tudo acabar”. Issam despediu-se da mulher e do filho e partiu rumo à Europa, com o objetivo de chegar à Alemanha. Quando isso acontecer — “se acontecer”, acrescenta cauteloso — o resto da família poderá, legalmente e de avião, juntar-se a ele.
Issam demorou uma hora para atravessar o mar entre a Turquia e a Grécia num barco de borracha com outras 49 pessoas — cada uma pagou mil euros pela viagem. Quando pisou terra firme, numa ilha grega, Issam partiu para Atenas num “navio enorme”. Na capital helénica, ficou alojado num hotel durante 15 dias, enquanto esperava por um amigo que, afinal de contas, acabou por desistir de fugir da Síria.
Enquanto aguardava pelo companheiro em Atenas, Issam fechava-se no quarto e ligava o telemóvel à rede wi-fi do hotel para poder aprender alemão com vídeos do YouTube. “Guten morgen, guten nacht”, ensaia, sempre que tem acesso à internet. E também uma outra frase: “Ich habe nichts”. Eu não tenho nada.
Num dos intervalos do estudo, foi ao Facebook, onde comunica com a família e com os amigos que deixou para trás, e que também usa para ler as últimas notícias. Era 2 de setembro e, nesse dia, a Internet foi tomada por uma fotografia de um menino sírio de três anos chamado Aylan Kurdi que, já morto, deu à costa turca depois de uma tentativa falhada de passar o mar Egeu. Aylan morreu na mesma viagem à qual Issam quis poupar o seu filho Bisher.
“Quando vi as fotografias do Aylan, morto na praia, lembrei-me do meu filho e chorei. Tenho muitas saudades dele.”
Issam segue os passos da irmã, que já está em Estugarda
Enquanto falamos com Issam, chega um voluntário eslovaco, também ele médico, que lhe pergunta se precisa de alguma coisa. Depois de alguns “não, obrigado, estou mesmo só de passagem”, o voluntário deixa um conselho a Issam: “Se queres ir, tens de ir hoje ou amanhã o mais tardar, não deixes isso para depois. Na terça-feira a fronteira da Hungria vai ter lá o exército, vai ser impossível”. Issam, que já estava preocupado com a sua passagem por terreno magiar, ficou ainda mais apreensivo.
Antes de Issam, a sua irmã também partiu. Fez o mesmo percurso que o irmão fez até agora: Síria, Grécia, Macedónia e Sérvia. Depois, a Hungria: “A pior parte”. A irmã conta-lhe que esteve quatro dias detida, juntamente com os filhos e o marido. Passaram 48 horas sem que lhes fosse dada comida ou água enquanto esperavam pela sua vez de requerer asilo à Hungria. Quando o conseguiram fazer, foram postos em liberdade. E, depois, foram até Budapeste de comboio — de onde ficaram aliviados de sair. Hoje, estão em Estugarda, no Sul da Alemanha, num apartamento concedido temporariamente a famílias de refugiados.
“O meu objetivo é chegar à Alemanha, ir ter com eles, para depois poder chamar a minha família para lá também. Para vivermos todos em segurança, de maneira a que possamos retomar as nossas vidas”, diz. “Mas a passagem pela Hungria preocupa-me muito. Toda a gente diz que a polícia lá é má, acham que nós somos todos terroristas e que queremos roubar os empregos a toda a gente. Por amor de Deus, nós só queremos viver em paz.”
Por fim, Issam pede licença. “Quando começámos a falar ia começar a rezar, dá-me licença?”, pergunta, antes de se ajoelhar na manta cinzenta das Nações Unidas. Por três vezes, inclina-se para a frente, encostando a cara ao chão, com os olhos fechados. Murmura palavras que, depois de rezar, partilha connosco: “Alá, deixe-me chegar são e salvo à Alemanha, que o meu sofrimento até lá não seja tanto que eu seja obrigado a desistir”.
De repente, mesmo de depois de Issam se levantar, surge um murmúrio entre os refugiados da fábrica de tijolos de Subotica. Falam alto, em árabe, todos muito apressados. Issam enrola com pressa a manta e coloca-a debaixo do braço, mete uma mochila às costas e segura outra com a mão direita. Depois, corre até à linha de comboio que passa mesmo à entrada da fábrica. É lá que se junta um grupo onde os homens estão em maioria, cerca de 15, mas que também conta com duas mulheres e quatro crianças.
São 14h00 e, por fim, o taxista por quem Issam e tantos outros esperavam chegou. A estrada está livre e a partir de agora vão começar a aparecer carros para os levarem para mais perto da Hungria. Os adultos estão tensos — apenas as crianças parecem passar ao lado dos nervos que ali se sentem. Há quem discuta em voz alta e chega a haver um empurrão entre dois homens. Nesse momento, Issam pedem educadamente ao jornalista do Observador e a outros fotojornalistas no local que se afastem. “Desculpem, mas é que enquanto vocês estiverem cá, os contrabandistas não vêm.”