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Caro amigo,
Partilho algumas considerações de enquadramento da falência do Silicon Valley Bank, da turbulência nos mercados financeiros e dos problemas decorrentes do aumento das taxas de juro e do surto inflacionista em curso.
O sistema bancário, a estabilidade financeira e a estabilidade dos preços
O sistema bancário tem um papel crítico na canalização da capacidade de financiamento disponível na economia (parte da poupança das empresas e particulares) para os agentes com necessidades de financiamento. Distingue-se do restante sistema financeiro pelo facto de mobilizar os recursos de agentes com maior aversão ao risco e maior preferência pela liquidez, sob a forma de depósitos, e pelo facto de acionar o chamado multiplicador de crédito, que permite antecipar poupança futura (ao contrário do mercado de capitais e do investimento direto que canaliza poupança presente e passada) e de absorver as perdas até ao limite dos seus capitais próprios e do chamado MREL* (dívida que foi emitida com uma cláusula de bail-in** assumida de forma explícita). Por isso, a sua eficiência da utilização dos recursos captados e a sua estabilidade são decisivas na promoção do crescimento económico de um dado país. Isto significa que há que encontrar um equilíbrio entre:
- Segurança das aplicações – uma maior segurança implica uma maior capacidade de absorção de perdas dos bancos e um menor multiplicador de crédito;
- E as oportunidades de investimento – uma maior cobertura das oportunidades de investimento requer um maior apetite de risco da parte dos aforradores.
O quadro regulatório, que é definido pelo poder político, a nível supra-nacional e nacional, e pela sociedade, determina o multiplicador de crédito – a capacidade de financiamento por conta da poupança futura – e o nível de segurança desejado num dado momento e, por consequência, os riscos de estabilidade financeira que a sociedade em causa decide implicitamente assumir. Isto implica que uma crise bancária acaba por revelar a opção feita no passado quanto ao risco aceitável e o eventual desencontro dessa opção política com a perceção dos aforradores – desencontro que acaba por impor a adoção de medidas de proteção dos depositantes para salvaguardar a confiança no sistema bancário.
O sistema bancário é assim uma peça importante da dinâmica de crescimento/desenvolvimento económico, absorvendo riscos que a aversão dos aforradores não permitiria assumir, assegurando volumes de financiamento que a atomização dos aforradores não facilita e colocando em contacto indireto os agentes com capacidade de financiamento com os agentes com necessidades de financiamento.
Para o efeito, o sistema bancário assume ou mitiga os riscos que o aforrador evita:
a) O risco de liquidez, ao proceder a aplicações por prazos superiores aos da disponibilidade dos recursos captados (que tende a ser à ordem ou a muito curto prazo);
b) O risco de crédito, ao absorver as perdas da concessão de crédito até ao limite dos capitais próprios;
c) O risco taxas de juro, ao fazer aplicações com longas maturidades a taxa fixa;
d) O risco taxas de câmbio, ao aceitar um mis-match de denominação monetária entre os recursos captados e as aplicações ou ao garantir taxas de câmbio;
e) O risco de sanções regulamentares, resultante do financiamento ou intervenção de operações irregulares.
As crises bancárias ocorrem sempre que os capitais próprios dos bancos são insuficientes para absorver/neutralizar as perdas decorrentes da assunção de riscos da atividade de intermediação financeira ou de fraudes, nomeadamente as facilitadas ou propiciadas pelas falhas operacionais.
A Grande Crise Financeira de 2008 (GFC) foi determinada por uma expansão exponencial do crédito como resultado de uma regulação que potenciava o multiplicador de crédito e o apetite de risco das instituições originadoras de crédito, através da generalização da titularização dos créditos, de mecanismos de garantia desses mesmos créditos e da sua colocação num mercado global (os casos de MBS ou dos CLS), conjugada com uma inevitável busca de maximização dos lucros das instituições financeiras. Criou-se a ilusão da diluição/anulação do risco de crédito através da sua redistribuição entre instituições financeiras e aforradores/investidores. Como o risco de crédito original não desaparece senão quando a criação de riqueza ou a geração de rendimento vem validar a decisão de crédito, a insolvência dos devedores hipotecários fez desmoronar o castelo de cartas – a engenharia financeira – que se tinha construído tendo por base a perspetiva de reembolso desses mesmos créditos. Isto é, a concessão de crédito traduziu-se na destruição de poupança acumulada que ultrapassou a capacidade de absorção de perdas das instituições bancárias que assumiram o correspondente risco, direta ou indiretamente, e acabou por transbordar para o restante sistema financeiro e para os demais agentes económicos.
Como resultado, registou-se uma contração do multiplicador de crédito determinada pela conjugação de quatro fatores: (i) a redução da poupança disponível para intermediação, (ii) a redução do capital total que suporta a função de intermediação financeira e, como reflexo da crise, (iii) o reforço do quadro regulatório, privilegiando a segurança, e (iv) o menor apetite de risco das instituições.
Estes quatro fatores discriminaram negativamente os agentes económicos e os soberanos que implicavam maior risco.
Em 2023, temos um sistema bancário mais capitalizado, com mais liquidez e com aplicações que têm um menor risco de crédito e uma maior carteira de obrigações a taxa fixa que foram emitidas num período de baixas taxas de juro. Temos ainda uma inflação anormalmente alta que coloca os bancos centrais perante a inevitabilidade do aumento das taxas de juro para garantir a estabilidade nominal e com um dilema:
i) Ou agir em força e de imediato, assegurando o retorno à estabilidade nominal num prazo que evite a desancoragem das expectativas de inflação a médio prazo (cinco e dez anos), de forma a garantir que a inflação a médio prazo continue na vizinhança dos 2%;
ii) Ou agir de forma gradual, adiando o retorno à estabilidade nominal para mais tarde, com o risco de desancoragem das expectativas de inflação e, consequentemente, de inflação significativamente acima de 2% e durante um maior período de tempo – esta opção não garante um pico das taxas de juro inferior ao da intervenção imediata e em força, dado que a reversão das tensões inflacionistas requer taxas de juros reais positivas, isto é, superiores à inflação, e esta tende a consolidar-se com a desancoragem das expectativas de inflação.
Isto significa que a vulnerabilidade do sistema bancário se agrava com a desancoragem das expectativas de inflação: o valor da carteira de rendimento fixo tende a ser menor quanto maior seja a expectativa de inflação a cinco e a dez anos ou, a contrario, tende a ser maior quanto mais a credibilidade da estabilidade nominal se reforce. Haverá uma perda em qualquer caso, mas que será menor num cenário de retorno rápido à estabilidade nominal. Assim, não há um trade-off entre estabilidade nominal e estabilidade financeira.
A vulnerabilidade dos bancos ao aumento das taxas de juro é função da quota parte das aplicações em títulos de dívida a médio e longo prazo, da taxa média de juro destas aplicações, do tempo necessário para a reposição da estabilidade nominal (inflação de 2%) e da eventual desancoragem das expectativas de inflação.
A manifestação desta vulnerabilidade vai depender da natureza da carteira dos bancos:
i) Se os títulos fizerem parte da carteira de investimento, a vulnerabilidade vai manifestar-se numa penalização da conta de resultados anuais, dado que aqueles continuarão registados no balanço ao valor de emissão, e a sua menor remuneração vai ser compensada, em parte ou na totalidade, pelo aumento da taxa de juro praticada na concessão de novos créditos e pelo subsequente aumento da margem de intermediação financeira , como resultado do alargamento do diferencial entre estas taxas e a taxa média dos depósitos captados pelos bancos;
ii) Se os títulos fizerem parte da carteira de negociação, a vulnerabilidade vai manifestar-se sempre que variar a respetiva cotação no mercado secundário, o que vai acontecer com a variação das taxas de juro de referência dos bancos centrais, com impacto nos resultados anuais e nos capitais próprios e no rácio de solvência, num grau que vai depender da evolução da margem financeira associada à concessão de novos créditos.
No caso dos bancos europeus, dada a diferente relevância das aplicações a taxa fixa e importância relativa das carteiras de investimento e, ainda, a folga dos rácios de capital com relação ao mínimo exigível, não é expectável, no curto prazo, que haja lugar para uma necessidade de reforço significativo dos capitais próprios e, por consequência, um risco para a estabilidade financeira decorrente do impacto do aumento das taxas de juro sobre as carteiras a rendimento fixo.
O aumento das taxas de juro só agrava o risco de insolvência dos devedores quando as taxas de juro reais são positivas. Isto é, haverá que ter presente que a taxa de inflação determinou uma redução do valor das dívidas em termos reais (há uma transferência de riqueza dos credores para os devedores, tanto para as empresas como para as famílias e o Estado) pelo que o problema que se coloca é em termos de um aumento do serviço da dívida (taxa de esforço) no imediato por contrapartida de uma redução gradual depois (há lugar para um alisamento).
Inflação: causas, efeitos e respostas políticas – a importância de preservar a estabilidade macroeconómica e financeira
Os efeitos da inflação sobre os agentes económicos – famílias, empresas e Estado – fazem-se sentir em três planos: patrimonial, rendimento e liquidez.
- Os efeitos patrimoniais sobre cada agente dependem da natureza dos ativos e passivos que integram o património de cada um dos agentes e da evolução dos respetivos preços relativos. Os ativos e passivos monetários, pela sua própria natureza, sofrem uma depreciação do seu valor real e o seu impacto sobre o agente económico depende da posição monetária líquida de cada agente: uma posição líquida credora implica uma perda patrimonial; uma posição líquida devedora implica um ganho patrimonial em termos reias, correspondente à depreciação real da respetiva dívida líquida. O que significa, primeiro, que os efeitos patrimoniais se distinguem em função da proporção de ativos não monetários na composição do património e da evolução dos preços relativos destes ativos; e, segundo, que a posição líquida em termos de ativos monetários determina um ganho patrimonial por parte dos devedores líquidos e uma perda por parte dos credores líquidos.
- Os efeitos de rendimento que dependem:i) Do poder de cada agente sobre a determinação do preço relativo dos bens que transaciona, que é função da forma como se desloca a curva de procura e de oferta em cada um dos mercados;ii) Do poder de negociação dos salários sectoriais e por qualificações, que é função da tensão entre a procura e a oferta de trabalho, e tende a ser tanto maior quanto maior for a insuficiência da oferta de trabalho agregada e sectorial;iii) Do volume de poupança/liquidez disponível para acorrer aos agentes com necessidades líquidas de financiamento;iv) Do poder social/político dos agentes cujos rendimentos dependem da confirmação dos “direitos” ou “entitlements” estabelecidos pela intervenção do poder político (caso das pensões) ou do tempo de repercussão das tensões dos mercados livres do trabalho sobre os salários públicos e sobre as regras que determinam o funcionamento dos mercados do trabalho (por exemplo, salário mínimo). O processo inflacionário torna assim visível o conflito que continuamente se trava no mercado em torno da distribuição do rendimento (o mercado é a forma de organizar este conflito através da fixação de preços e, por essa via, do ajustamento dos preços relativos). Os tempos de reação de cada agente e de ajustamento de cada mercado são diferenciados. No caso de uma pressão da procura sobre a oferta de bens, que determina um aumento de preços dos bens, na primeira fase assiste-se a uma redução dos salários reais por contrapartida de um aumento das margens brutas de lucro; numa segunda fase, e tanto mais quanto se desancorem as expectativas de inflação, assiste-se a uma recuperação de salários reais que pode acabar numa espiral de salários-preços. Este conflito só pode ser contido pela redução da tensão nos mercados através de uma redução da procura agregada e esta redução tem que ser tanto mais drástica quanto a duração do processo inflacionário se prolongue e a espiral inflação-preços ganhe tração. Para reduzir a pressão da procura agregada há apenas três instrumentos: o aumento das taxas de juro e o aumento da poupança pública, seja através da contração da procura pública, seja através do aumento das receitas fiscais (com consequente redução do rendimento disponível dos particulares e redução induzida da propensão a consumir).
- Os efeitos de liquidez que são função essencialmente do impacto das taxas de juro sobre o serviço da dívida dos devedores. Enquanto a taxa de juro real for nula ou negativa, os devedores estarão perante um aperto de liquidez que se exerce em paralelo com uma transferência patrimonial favorável resultante da redução do valor real das respetivas dívidas. Este aumento da pressão de liquidez é o resultado da incorporação na taxa de juro nominal de uma componente que corresponde à compensação total ou parcial da perda de valor da dívida – a compensação só é total quando a taxa de juro real é positiva. Deste modo, o que acontece com um surto inflacionista é um fenómeno de antecipação do tempo de reembolso da dívida (quando a taxa de inflação, nos anos 80, foi de cerca de 30%, a amortização de mais de 50% do principal de um empréstimo a cinco anos ocorria nos dois primeiros anos – há uma redução da maturidade ponderada das dívidas, utilizando como ponderador o valor real das prestações de reembolso).
Neste contexto, é possível distinguir diferentes situações por mera combinatória dos efeitos patrimoniais, de rendimento e liquidez:
i) num extremo, os agentes económicos que ganham nos três planos;
ii) no outro extremo, os agentes económicos que perdem nos três planos;
iii) entre estes dois extremos, há, nomeadamente, os que ganham no património e no rendimento e perdem na liquidez ou perdem na liquidez e no rendimento; ou os que perdem no património e ganham no rendimento e perdem a liquidez.
O facto de haver um efeito rendimento negativo não anula a possibilidade de um efeito patrimonial positivo; tal como um efeito patrimonial positivo não anula a possibilidade de um efeito total (patrimonial+rendimento) negativo. Também as taxas variáveis não anulam um efeito patrimonial positivo se as taxas de juro reais se mantiverem negativas. Faço notar que as taxas variáveis são um melhor instrumento de gestão macroeconómica, porque, ao transmitir mais eficientemente a política monetária, têm um papel anti cíclico, contrariamente às taxas fixas (por exemplo, as taxas variáveis tiveram uma função estabilizadora da economia portuguesa tanto durante a GFC como depois, durante o período de deflação).
No caso dos bancos, a estabilidade financeira só está em causa se houver uma redução do rácio de solvência para um nível inferior ao mínimo sem que haja reposição; as situações de aperto de liquidez resultantes da função de transformação de maturidades, que é própria dos bancos, não são em si um fator de desestabilização dado que cabe aos bancos centrais fornecer liquidez, na qualidade de prestamista em última instância, sempre que respeitem os rácios mínimos de solvência.
Em suma, e como já sublinhei, não há um trade-off entre estabilidade nominal e estabilidade financeira; e, em segundo lugar, a questão do retorno à estabilidade nominal vai impor um aumento das taxas de juro, tanto mais penalizador quanto mais tardio for. Estamos perante um caso que permite dizer que o caminho para o inferno está cheio de boas intenções… nomeadamente quando se pretende adiar o combate à inflação para minimizar os seus custos imediatos, ignorando o agravamento dos custos futuros. Assim:
a) Quando refiro que não há um trade-off entre os objetivos da estabilidade nominal e da estabilidade financeira pretendo dizer que os dois objetivos têm de ser prosseguidos simultaneamente e que, portanto, não há lugar para atenuar a política de combate à inflação a pretexto de garantir a estabilidade financeira. Há dois objetivos que requerem dois ou mais instrumentos de política económica. A estabilidade nominal terá de ser prosseguida pela política de taxas de juro e a estabilidade financeira terá de ser prosseguida através dos instrumentos adequados à natureza das causas e são diferentes conforme se trate de uma crise de liquidez ou de uma crise de solvência (sendo certo que uma crise de liquidez não atacada pode converter-se numa crise de solvência). Trata-se do princípio de que a prossecução de múltiplos objetivos pressupõe uma multiplicidade de instrumentos, específicos para cada um dos objetivos.
b) Um surto de instabilidade financeira tem impacto tanto sobre a procura agregada como sobre a oferta agregada, influenciando o grau de pressão da procura sobre a oferta e, por essa via, determinando a intensidade das tensões inflacionistas e, por consequência, a intensidade e mesmo a natureza da política monetária.
c) A forma como reaja a política monetária numa situação de instabilidade financeira poderá conduzir:
i) a uma desinflação, caso se registe uma redução da pressão da procura sem contração da oferta – o que significa que a política monetária assegurou uma esterilização progressiva do excesso de liquidez e a política de estabilidade financeira neutralizou a transmissão dos riscos do sistema financeiro para o sistema produtivo (a oferta);
ii) a uma deflação caso haja simultaneamente uma contração da pressão da procura, determinada pela política monetária, e uma contração da oferta determinada pela instabilidade financeira (resultado de uma contração do crédito e de uma vaga de falências) e que esta última gere uma segunda ronda de contração da procura, através da contração do rendimento distribuído;
iii) ou uma estagflação, caso a instabilidade financeira gere uma contração da oferta e a política monetária se mantenha acomodatícia, como resultado de uma neutralização/desativação da política monetária para acudir aos efeitos da instabilidade financeira sobre a economia real (esta situação tende a acontecer sempre que a política monetária prossegue mais objetivos do que a estabilidade nominal).
d) Na situação em que nos encontramos é necessário garantir a ativação dos instrumentos que visam a estabilidade financeira, sem prejuízo da orientação e da calibragem dos instrumentos da política monetária que devem estar dependentes da evolução da taxa de inflação esperada a curto e médio prazo, e que devem ter por objetivo ajustar a procura à oferta num prazo curto, para evitar surtos inflacionistas de segunda ordem.
e) O atual surto inflacionista resulta da concorrência de um excesso de liquidez, resultante do combate às tensões deflacionistas que resultaram da GCF e das políticas de resposta aos efeitos económicos da crise pandémica; de um aumento da poupança, que resultou da pandemia; de uma contração da oferta, que resultou do impacto da pandemia tanto sobre o aparelho produtivo como sobre a articulação das cadeias de abastecimento; e de uma alteração da geoeconomia da oferta, resultante da invasão da Ucrânia e da guerra que está em curso.
Isto significa que não estamos perante apenas uma pressão da procura e que o ajustamento da procura à oferta terá de resultar de políticas orientadas para a redução da procura e para a expansão da oferta. Políticas cujos tempos de ação são diferentes dado que as políticas dirigidas à expansão/recuperação da oferta tendem a levar mais tempo para produzir efeitos. A política monetária ocupa-se da redução da pressão da procura e terá de ser tanto mais intensa quanto a elasticidade da recuperação da oferta se revele fraca. O tempo do combate à inflação não se compadece com o tempo da produção de feitos da política de expansão da oferta nem com a menor elasticidade desta com relação aos incentivos ou às medidas. O que significa que o combate à inflação depende da redução da pressão da procura que, por sua vez, depende da esterilização do excesso da liquidez, isto é, da intensidade e oportunidade da política monetária.
f) Além disso, na situação atual, os países europeus sofreram uma redução dos termos de troca o que significa que se registou uma redução do rendimento nacional distribuível que tem que ser acomodada através de uma contração da procura ou de um financiamento externo suplementar, equivalente à perda de poder aquisitivo global resultante da redução dos termos de troca. Não sendo possível continuar com o mesmo padrão de procura através da subsidiação pública, dado que requereria o financiamento externo do Estado, que poria em causa a sustentabilidade da dívida pública, a presente situação confronta os agentes económicos com a necessidade de acomodarem uma perda de rendimento – acomodação que se vai processar através dos mecanismos de fixação dos salários e dos preços o que, na ausência de mecanismos e de instituições fortes de concertação social, vai agravar a intensidade da disputa em torno dos efeitos redistributivos resultantes da inflação. A redução dos termos de troca agrava, assim, as tensões sociais em torno da distribuição de rendimento e dificulta a política anti-inflacionista.
- Numa situação de inflação induzida pela pressão da procura (“demand driven”) é possível admitir que o génio da inflação volte a ser colocado na lâmpada de Aladino de onde saiu sem prejuízo das posições relativas das diferentes formas de rendimento (é expectável que as diferentes formas de rendimento, depois de um período de barganha social, retomem o ponto em que se encontravam à partida, porque o balão da lâmpada manteve o volume).
- Em contraste, numa situação de inflação que seja determinada simultaneamente por alterações do lado da procura, da oferta e dos termos de troca, tudo se complica porque o balão da lâmpada passou a ser mais pequeno e, por isso, não só não é possível repor o estado inicial em termos de dimensão absoluta e de posições relativas das diferentes formas de rendimento como, por força da antecipação do efeito da perda associada à redução dos termos de troca, tende a agravar-se exponencialmente a resistência dos agentes económicos ao processo de desinflação, com um agravamento da conflitualidade social em torno da distribuição do rendimento. Na presente situação europeia, a conflitualidade social do processo vai variar na razão inversa da natureza e da credibilidade do quadro institucional de concertação social de cada país.
g) É certo que bancos centrais se atrasaram na resposta ao surto inflacionista, nomeadamente ao considerar que se tratava de um fenómeno temporário, esquecendo não só as determinantes deste mesmo surto – um excesso de liquidez e uma contenção da procura das famílias durante a pandemia, com consequente aumento da poupança – como o facto de os efeitos de segunda ordem tenderem a desencadear-se passado pouco tempo, convertendo em duradouros os fenómenos de subida generalizada de preços, por muito temporários que se apresentem à partida. Um atraso que se explica pelo facto de poucos meses antes terem estado a combater um risco de deflação – situação não menos ameaçadora da estabilidade macroeconómica e do emprego. Esta situação foi, entretanto, agravada pela surpresa da invasão da Ucrânia e dos seus efeitos sobre os preços de alguns produtos básicos. Apesar da demora da reação dos bancos centrais a reconhecer que se tinha passado de um risco de deflação para um real risco de inflação, expresso na evolução da inflação subjacente, há que reconhecer que as expectativas de inflação a cinco e dez anos têm estado ancoradas em torno do objetivo da estabilidade de preços, o que permite concluir que os agentes económicos têm, até agora, assumido que a política monetária reagirá de forma rápida e na justa medida do que é necessário para inverter a trajetória da inflação e atingir um valor em linha com a definição de estabilidade de preços (uma inflação da ordem dos 2%). Isto é, a credibilidade dos bancos centrais minimizou o custo da resposta tardia, constituindo em si mesma a demonstração de que a credibilização da política monetária e a independência dos bancos centrais tem sido, em si mesma, um fator de estabilidade nominal, um espécie de dividendo da forma como foi conduzida a política monetária nas últimas décadas.
Há uma confusão entre proteger os mais débeis e combater a inflação:
- Combater a inflação implica ajustar a procura à oferta e para tal é necessário esterilizar o excesso de liquidez depois de terem sido interrompidas novas injeções de liquidez;
- Proteger os mais débeis implica abreviar o período de inflação (quanto mais longo mais iníquo) e, até lá, mitigar o seu efeito através de apoios diretos, com grande acuidade de direcionamento, temporários (para não gerar uma onda de dependência) e, além disso, acompanhados por ações de esterilização da correspondente injeção de liquidez (por contração de outra despesa ou aumento temporário de impostos sobre os mais afluentes).
Relativamente aos mecanismos de proteção dos mais débeis face à erosão de poder de compra que resulta deste surto inflacionista, penso que é desejável uma atuação direta e temporária de suporte ao rendimento e que terá que ser suportada pela coletividade.
Considero que a identificação clara do montante da ajuda e dos critérios de atribuição, tal como o claro anúncio do seu carácter temporário, são fatores críticos para gerir a conflitualidade social que determina os custos e a eficácia do processo desinflacionário.
Os mecanismos de proteção dos mais débeis implicam um custo adicional que deveria ser financiado pela contração da despesa pública de natureza anti cíclica (estamos num período de pressão da procura agregada e a componente autónoma desta procura, que é a pública, deve ajustar-se).
Todavia, tendo presente a dificuldade de proceder a um screening da despesa pública em tempo útil e a uma neutralização da correspondente constituinte, o apoio aos mais débeis vai ficar dependente ou de um aumento do défice – isto é da tributação futura – ou de um aumento da tributação presente.
- É sabido que o quadro institucional português tende a fazer do temporário permanente, o que é pernicioso do ponto de vista da eficiência e da sustentabilidade das finanças públicas. Por isso, defendo a introdução de uma “sunset clause” que, salvo votação específica por uma maioria reforçada, se anule no fim do termo estabelecido à partida. A questão de fundo é que o Estado português se comporta em matéria de receitas como um Leviatã ou um ogre e que a constituinte que tira proveito desse apetite fiscal é muito mais forte do que aquela que sofre as consequências. E, sejamos claros, estamos a correr atrás do prejuízo: a capacidade de geração do rendimento do país está em progressivo desfasamento do custo do modelo social pelo que há um deslizamento contínuo para a formação de défices adicionais. A sinecura tem sido a aplicação de tributação adicional que é aprovada como temporária, mas que de facto é permanente porque resulta de um gap estrutural que resulta do desajustamento progressivo, embora lento, entre o modelo social e o potencial produtivo. A raiz do problema está no baixo crescimento do produto potencial. Se não for ultrapassada esta situação, através de um crescimento mais forte do produto potencial e de um aumento do VAB por ativo, vamos assistir periodicamente a um agravamento da tributação permanente disfarçado de tributação pontual e temporário.
- A solução desejável é a que não agrava a pressão da procura agregada, o que só pode ser conseguido através de uma redução de outras componentes da despesa pública – o que implicaria uma revisão da qualidade da despesa – ou através de uma redução da procura agregada por contrapartida de um aumento da poupança global, seja através da poupança pública, da poupança privada ou das duas.
A importância do crescimento do produto potencial num contexto em que há um desajustamento entre a procura e a oferta e entre o produto potencial e o modelo social
Como se disse o presente surto inflacionista resulta de um desajustamento entre a oferta e a procura induzido:
i) Pela procura que se expandiu como resultado de um aumento da liquidez acumulada e de uma poupança forçada pela pandemia;
ii) E pela contração da oferta no seguimento da pandemia – que determinou a contração da atividade e a perturbação, seguida de ajustamentos, das cadeias de produção e abastecimento – e pela invasão da Ucrânia – que determinou quebras de produção e de circuitos de abastecimento e exclusão de fornecedores, como consequência das sanções aplicadas ao invasor.
O que significa que a mera eliminação do adicional de procura resultante da esterilização do excedente de liquidez e a normalização da taxa de poupança não garantem a eliminação das tensões inflacionistas. Para tal será necessário ou repor os níveis de oferta e compensar os aumentos de custo resultantes da alteração das cadeias de abastecimento – isto é, será necessário aumentar a produção e a produtividade dos tecidos produtivos europeus, isto é, o produto potencial, o que pressupõe um aumento do investimento por contrapartida de um aumento do investimento público e privado. É esse o sentido último dos programas de investimento que o programa NextGeneration EU tem em vista. Este imperativo de crescimento do produto potencial é tanto mais premente quanto os países europeus têm vindo a registar uma crescente tensão entre a sua capacidade produtiva e a salvaguarda do modelo social, tensão resultante da desindustrialização, da evolução demográfica e do aumento da taxa de população dependente. Uma tensão que se manifesta em primeira mão na política orçamental. Através da acumulação de défices e de dívida.
Por isso, a política estrutural faz parte da caixa de ferramentas da salvaguarda da estabilidade macroeconómica e quem fala de política estrutural tem que olhar para as regras de funcionamento da economia e o seu impacto sobre as decisões de investimento dos agentes económicos e, por outro lado, para o montante e a orientação do investimento público e privado. Não basta investir: é necessário que seja produtivo, isto é que contribua para o crescimento do produto potencial e que este contributo seja maximizado, para garantir a eficiente utilização da poupança disponível.
No caso português, está em causa, em primeira linha, a alocação dos recursos disponibilizados pelo PRR. É crucial que este seja encarado como um mecanismo de expansão da oferta, que deverá ser enquadrado na política de promoção do investimento produtivo e do produto potencial e, assim, contribuir para a redução do desajustamento entre a oferta e a procura agregadas. Por isso, deve ser encarado como parte da resposta a um dos fatores do surto inflacionista. Todavia, no curto prazo, implica uma expansão da procura agregada e, portanto, um aumento das tensões inflacionistas. Admitindo, primeiro, que está focado no investimento, e não na sustentação da procura, e, segundo, que o investimento em causa tem efeitos sobre o produto potencial, o PRR é necessário apesar de agravar as tensões inflacionistas.
Caso se admita que o PRR vai impactar o produto potencial, o que não é automático nem está garantido, tenho muitas dúvidas que o adiamento da execução seja a boa resposta. A meu ver, a boa resposta passa por três planos:
i) A revisão do PRR para o concentrar no investimento com efetivo impacto no produto potencial, eliminando todas as parcelas que não tenham outro objetivo que não fosse garantir a execução (não temos necessidade de suportar a procura agregada) – reside aqui a minha maior dificuldade com o PRR porque não é claro que aumente o produto potencial na proporção do volume da despesa que origina (tenho o sentimento que serve para reparar os estragos da política orçamental dos últimos anos);
ii) A reprogramação tendo em vista o aumento do produto potencial do sector dos bens transacionáveis;
iii) E a redução da procura agregada que não tem impacto no produto potencial, para reduzir as tensões inflacionistas, nomeadamente através do aumento da poupança pública e do estímulo da poupança privada (desejavelmente, através da animação do mercado de capitais e da atração da tomada de participações no capital das empresas).
Com a maior estima pessoal e um forte abraço amigo
Carlos S. Costa
Economista e ex-governador do Banco de Portugal
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* MREL – minimum requirement for own funds and eligible liabilities, isto é, montante mínimo de capitais próprios e de fundos elegíveis para absorção de perdas.
** Cláusula de conversão de determinados créditos em capital, acionável no quadro de um processo de recapitalização interna determinado pelas autoridades de supervisão.