Era sempre por altura do Natal que o tio Artur “religiosamente” lhe oferecia dinheiro. Depois, Miguel comprava-os. Durante o ano, encomendava-os com algumas libras embrulhadas em papel químico, esperando, ansiando ao longo de um mês pela volta do correio que chegava de Inglaterra. Discos, discos e mais discos.
Miguel Angelo, com sete, oito anos, via-se semanas inteiras, sozinho, a “dissecá-los” no quarto – e a imaginar ser como o Peter Gabriel do concerto dos Genesis a que assistiu no pavilhão do Dramático em 1975.
Perdeu-se um jornalista. Formou-se um arquitecto – fugido às obrigações do serviço militar por razões filosóficas. Mas o que sempre quis foi a música. E teve-a cedo, realmente cedo.
Logo no começo da adolescência, e depois de “uma audição que não foi uma audição”, encontra a primeira banda, vai “aparecendo” nos ensaios e não tarda seria o vocalista da “família” que durante décadas foi a sua: os Delfins. No começo da de oitenta os ensaios eram diários – “quando digo diários é mesmo diários” – mas o circuito era ainda só o dos bares de Cascais e, amiúde, da cidade do Porto – que Lisboa não era então de acolher “betinhos”. A ida ao Festival da Canção em 1985 podia mudar tudo. E quase mudou. “Fomos. E fizemos a canção que quisemos fazer. E ficámos em último lugar. O que foi um statement, obviamente. O penúltimo lugar a nós não nos interessava para nada.” Depois do Festival maldito, e durante dois anos, pouco ou nada tocam e dizem-lhes que estão “queimados”, que precisam mudar quase tudo e até o nome da banda.
Não mudaram. E fecharam-se “cinco dias e cinco noites” no estúdio, “a gravar, a gravar, a gravar”. “Se ninguém nos quisesse editar, editaríamos nós!”, garante. Não foi necessário e Libertação sairia.
E a Libertação seguir-se-iam muitos outros discos. Tanta foi a sobreexposição da banda – e de Miguel, sobretudo de Miguel – que “nunca mais foi a mesma coisa” quando regressaram a estúdio e à estrada. Há quase uma década, os Delfins fizeram o último concerto, em “casa”, Cascais e a baía. “Aquela despedida foi uma celebração, era como naqueles funerais com música, à americana – não era aquela coisa apostólica-romana com tudo a chorar e a carpir. Havia pessoas a festejar, a beber copos e a cantar refrães. Sem lágrimas. Às vezes, quando aquilo acontece, quando termina, o pessoal está porreiro na altura mas depois, quatro, cinco dias depois, começa a perceber que acabou e a pensar: ‘O que é que eu vou fazer agora?!’”
Continuou. Miguel continuou. “O meu amor à música é mais forte do que o fim de uma banda”, explica. Vai continuar. E o terceiro álbum a solo está prestes a sair, um álbum mais voltado aos livros, pois Miguel passou “anos a escrever sobre o próprio umbigo” e nos livros encontrou-se “refugiado outra vez no espaço de lentidão, de imensidão”.
Ao Festival da Canção, levou um tema nietchziano. “Não era uma canção para chegar lá e pá-pá-pá — não era uma canção para ser fixada. É uma canção que podia estar no meu próximo álbum. Mas o que realmente me deu gozo na canção [‘Arco-Íris (assim cantou Zaratustra)’] é ter alguém a dizer Zaratustra no Festival”, graceja.
Sei que estudou arquitetura na faculdade e até chegou a trabalhar como arquiteto. O que pouca gente sabe é que ainda ponderou ser jornalista. É verdade?
É verdade, é verdade. [Pausa] Agora vinha aqui a subir a Rua Luz Soriano para a entrevista e tive saudades do tempo em que andei na Faculdade de Belas-Artes. Estava um rapaz, de casaco e chapéu, com um bloco de papel na mão, a desenhar fachadas do Bairro Alto. Também me fartei de desenhar estas fachadas, às vezes ajoelhado no meio chão ou sentado, a desenhar no caderno de esquissos. Isso era giro. Mas respondendo à tua pergunta: eu sempre quis ser músico. Mas quando fui para o liceu escolhi uma área que me permitia seguir arquitetura ou jornalismo. Em criança fazia jornais pequeninos em casa, para as reuniões de família.
Com notícias da família, presumo?
Sim, sim. Mas não só, não só. Havia várias notícias: da política ao desporto. E lembro-me que a maneira de fazer cópias era usando, na máquina de escrever do meu pai, folhas intermédias de papel químico, que me faziam cópias em azul. E depois vendia aquilo à família e ainda fazia uns trocos. [Risos] Mas depois parti de um princípio muito estúpido, um princípio muito adolescente, e pensei: “Eh pá, se for arquitecto até posso fazer algum jornalismo, ou escrita, mas se estudar só jornalismo obviamente não poderei fazer arquitectura”. Achei que isso era verdade. Não é verdade. Mas também não era totalmente mentira, porque acabei por escrever livros. Mas ainda me lembro do que me disseram logo no primeiro dia em que entrei para a faculdade…
Que foi?
“Eh pá, se trabalhares muito, aos quarenta-e-tal podes vir a ser um bom arquiteto.” E é verdade: um gajo para ser bom arquiteto, bom jornalista, bom qualquer-coisa, tem que saber esperar muito tempo. E trabalhar. No outro dia explicava isto a um miúdo do rap e o gajo respondeu-me logo: “Mas eu aqui a dez anos não me vejo a fazer rap!” Porquê? Se calhar só daqui a dez anos é que vais atingir o teu full potential. Hoje em dia é complicado passar à geração mais nova a ideia da perseverança e de que as coisas realmente acontecerem se um gajo for bom, sim, mas trabalhar. E vai levar algum tempo. Os Delfins também só começaram a vender muitos discos passados uns dez anos ou mais.
Mas quando tinha a idade desses a quem agora dá conselhos tinha noção de que levaria tempo?
Acho que sim, que até tínhamos [Delfins] alguma noção. A decisão de quereremos ser músicos profissionais era muito radical. Queríamos viver exclusivamente da música em Portugal, queríamos levantar-nos de manhã e não nos preocuparmos em ir para o escritório mas, sim, preocuparmo-nos em ensaiar, em como é que seria a capa do disco, que tipo de letra é que vou ter que escrever hoje. E, portanto, houve uma “vida” pré-Delfins, talvez, que começou em 1982, na altura em que fazíamos ensaios diários. Mas quando digo diários é mesmo diários. Às vezes o pessoal não acredita nisto. Mas é verdade. Os meus pais são testemunhas. Era jantar à pressa, sair de casa, apanhar o autocarro para o centro de Cascais — era lá que ficava a nossa primeira sala de ensaios – e, depois, apanhar o autocarro da meia-noite de volta a casa, porque no dia a seguir tinha aulas no liceu de manhã. E durante três, quatro anos, só fizemos isto. Portanto, estava implícito que levaria muito tempo e muito trabalho até chegar lá.
Mas sabiam também que poucas bandas à época viviam exclusivamente da música, não?
Sim, sim. Mas também é naquela década de oitenta que surgem os músicos profissionais. Olhando com atenção para os músicos profissionais que ainda há aí agora, talvez metade sejam dessa altura: os Xutos & Pontapés, os GNR, o Rui Veloso, eu próprio. Antes, na década de setenta, o rock português era aquela coisa meio difusa. Havia algumas bandas que não se sabia bem o que é que faziam: os Arte & Ofício, os Beatniks. Mas depois o punk e a new wave começam a ter eco em Portugal e surgem Corpo Diplomático, Faíscas e, obviamente, a banda favorita do nosso grupo de amigos, os Heróis do Mar. E pensámos: “Está aberta a porta, as editoras estão a apostar, há finalmente espaço nas rádios e na televisão, vamos em frente com isto”. E fomos.
E foram. Mas fazia pouca ideia do que era cantar. E é só depois de a banda lançar o primeiro single que resolve ter aulas. Isto porque acabava sempre rouco no final dos concertos. O que é que o professor de canto respondeu na altura?
[Risos] Não foi logo a seguir ao single, até foi um pouco mais tarde. Portanto, ainda é bastante pior! Foi mais para o fim da primeira tournée dos Delfins, a tournée do Libertação. Quando há o primeiro single, em 1984, e o segundo, em 1985, o nosso universo de palco era bastante reduzido, era sobretudo bares de Cascais.
Cascais e… Porto.
E Porto, claro, os bares da Ribeira. Quando lançamos o álbum, em 1987, fazemos logo uma tournée de verão. E chegava aos encores e ficava completamente enrouquecido. Não é que não recuperasse – quando um gajo é novo recupera mais depressa. Mas comecei a pensar que se calhar precisava de algum aconselhamento de um professor. Queria aprender respiração, colocação, mas não queria entrar no Conservatório. Então, falei com o Rui Pregal da Cunha, que tinha aulas com o professor Luís Madureira. Falei com o Luís Madureira e o Luís estava ocupado, não tinha tempo, e indicou-me como professor o contratenor Mário Marques – com quem trabalhei durante muitos, muitos anos. Lembro-me perfeitamente da primeira aula, em casa do Luís Madureira, perto da Avenida Infante Santo. No final entrego uma cassete ao Mário. Ele não fazia puto ideia quem é que eu era. Ele, espantado, olha para mim e só disse: “Mas você afinal canta?!” [Risos] O gajo achava impossível que tivesse gravado um disco.
Mas já ganhava a consciência de que é preciso trabalhar a voz para que ela perdure, certo?
Sim. Eu odiava, odiava cantar em estúdio. Odiava. Ao vivo já gramava imenso mas ficava sempre rouco. Em estúdio não conseguia tirar partido da voz. No final do terceiro ano de aulas com o Mário Marques já cantava algumas peças portuguesas românticas e do pós-romantismo, algumas em italiano, outras em latim, e curtia muito. Mas dizia sempre ao Mário: “Não, não quero nada ser cantor lírico, a minha figura é outra”. É talvez um bocadinho de preconceito que ainda tenho e que me tem ajudado. Há algumas coisas que simplesmente não quero aprofundar. Porquê? Porque sem querer pode alterar meu feeling inicial, afetar um certo diletantismo que acho que na cultura pop é-nos útil. É como o Zeca [Afonso], que não sabia escrever música. Ou o [António] Variações, que batia na mesa e fazia os ritmos assim. Acho isso interessante no que é a cultura pop. Também nunca aprofundei um instrumento, por exemplo. Sento-me ao piano e componho. Toco guitarra também. Mas nunca quis tornar-me “tecnicamente competente”. Porque acho que isso me prejudicaria em termos de por as ideias em prática. Se tivesse uma formação mais académica ou clássica dizia: “Oh pá, é que nem pensar em usar essa harmonia aí!” Tentei sempre contornar isso, procurar um caminho original.
Disse algo curioso e que nos vai fazer recuar um pouco. Disse que gostava mais de cantar ao vivo do que gravar em estúdio. Mas era tímido, não era? No começo. E, chegado ao palco, vestia quase — às vezes vestia mesmo literalmente — uma persona para ocultar a timidez?
Mas nunca foi uma coisa encenada. Encenada não. Acho que é puramente o reflexo de ir para lá [palco] e fazer a coisa que mais gosto de fazer na vida. E, portanto, esqueço-me da timidez, abstraio-me.
Mas aqueles dez minutos antes do espetáculo começar eram complicados…
Sim… [Pausa] Ainda hoje fico um bocadinho, há alguma ansiedade. Não digo terror, terror não. Nunca senti terror por entrar em palco. Mas ansiedade há. E se as coisas me estão a correr bem, posso ir até ao fim do mundo naquelas duas horas em palco. Mas nunca houve aquela cena do “agora vou por uma máscara por causa da timidez”. Embora os Delfins tenham feito algumas encenações nos espetáculos, é verdade.
Era a isso que me referia, sim.
É verdade. Sempre gostei. Mas lá no fundo, lá no fundo, sou sempre eu. Posso estar a fazer de delfim no Ser Maior, com a cabeça do golfinho enfiada, mas nem por um momento julgo que sou o golfinho. [Risos] Sou esquizofrénico mas não tanto.
Falava da “pureza” que queria manter na música pop, sobretudo quando compunha. Na pureza infância já tinha um caderno – ou vários – com letras, não tinha?
Ainda tenho esses cadernos por acaso. Isso surgiu muito cedo, pá. E surgiu muito cedo porque ouvia discos com sete, oito anos, em casa. Sobretudo os discos da altura, do rock sinfónico e progressivo.
Num gira-discos da Telefunken.
[Risos] Exatamente. Gira-discos que ainda tenho. Ouvia muito as bandas de glam pop da altura: os T-Rex, os Slade ou os Sweet. E ouvia muito aqueles singles muito catchy que eles faziam. Acho que nem tinha álbuns deles, só singles. Os álbuns que tinha eram de Emerson, Lake & Palmer. O meu irmão, mais velho do que eu, tinha os Yes, Genesis, Gentle Giant ou King Crimson. E comecei a ouvir muito essa coisa, contrastando com os singles mais da glam pop. E a minha primeira formação musical foi essa, basicamente essa. Nem ouvia Beatles nem The Who, não ouvia nada disso. Ouvia rock sinfónico e glam pop. Ouvia as canções de um lado e as obras musicais do outro.
E tentava replicar de certa forma? As letras…
Sim, tentava. Um gajo mandava vir os álbuns via postal de Inglaterra. Se não tinha que esperar um ano-e-tal até que ele chegasse cá a Portugal.
As libras seguiam no postal.
Seguiam, seguiam: escondidas no tal papel químico com que fazia os jornais. O papel químico da altura deu jeito para várias coisas. [Risos] E aquilo chegava quase um mês depois. Então, as semanas seguintes eram passadas a dissecar aquilo, primeiro sozinho, depois com amigos, a dissecar as melodias, as letras. E ficava lá no quarto a imaginar óperas rock e sei lá mais o quê. Isto mesmo muito, muito miúdo, com oito, nove anos. Cheguei a por uns fios de lã num batedor de tapetes de verga para andar lá por casa a fazer o air guitar. [Risos] E inventava histórias! Lembro-me perfeitamente de inventar carreiras de bandas, a ascensão e a queda, bandas de grande sucesso e de grande decadência. E inventava, sei lá, sete álbuns, com títulos e canções. Mas não escrevia ainda as canções. Só depois é que comecei a escrever. As primeiras em inglês. Mas passei rapidamente para o português.
Eram sobretudo as vivências de um adolescente de Cascais?
Eu diria que o início eram coisas mais… [pausa] épicas. Também fruto de alguma música que ouvia então. As letras não era tão, como chamar-lhe?, terra-a-terra ou de muitas metáforas simples: eram coisas mais épicas. E comecei não escrever os poemas ou as letras — não gosto muito de chamar poemas às letras. E quando escrevia aquilo já vinha com a melodia em cima. Ainda hoje é assim. Muito, muito raramente escrevo uma letra sem ter uma melodia. Às vezes a letra não é ainda final mas há palavras e construo a melodia. E só depois é que aperfeiçoo a letra. Mas isso sempre foi assim, já desde essa altura.
Começou, portanto, a escrever as primeiras canções cedo. E é cedo também, com 14 anos, que o seu irmão o convida para o ensaio da banda. Não havia vocalista e convidou-o. Uma banda que era, basicamente, os “primórdios” dos Delfins?
O meu irmão, que é três anos e meio mais velho, começou a ter aulas de guitarra clássica em casa. O padrinho ofereceu-lhe uma guitarra. Começou a ir um senhor lá a casa, um professor, uma vez por semana, ao fim-de-semana, para lhe dar aulas. E ele encontrou uns colegas no liceu que também já tocavam e formaram um grupo. Eram três: um teclista, um guitarrista e ele – que foi tocar guitarra baixo. O guitarrista era o Fernando Cunha. E o teclista era o Silvestre – que ainda gravou connosco [Delfins] o primeiro disco. Nem sequer havia bateria. Como o meu irmão me ouvia cantar muito lá em casa, e como eles não tinham ninguém que cantasse na banda, convidou-me para lá aparecer. Era uma espécie de audição sem ser uma audição. Eu devia ter 14, 15 anos, sim. E fui. Eles começaram num funk, que era o que mais se ouvia no princípio dos anos oitenta, e lembro-me que cantei o “Amor”, dos Heróis do Mar, e o “I’m a Wonderful Thing, Baby”, do Kid Creole & The Coconuts. No final o Fernando disse-me: “Então, pronto, aparece aí, Miguel…” Mas nunca me disse formalmente “estás in”. Fui aparecendo. E apareci sempre. Lembro-me que não tínhamos baterista durante algum tempo. Primeiro, arranjámos uma caixa de ritmos da Roland, uma das primeiras, uma TR-606, e começámos a ensaiar com a caixa de ritmos, a gravar as primeiras demos ainda em bobine. Era uma cena muito mais épica. Havia um tema que era o “Conquistador”. Outro era “O Pão Que o Diabo Amaçou”. Outro era “O Portugês Voador”. E era tudo muito épico. [Risos]
Letras já suas…
Sim, minhas. Sempre minhas. Os outros não faziam. Então, levava a letra, levava a melodia. Aquilo era muito a lógica dos Big Country: as guitarras a soarem como gaitas de foles mas na realidade portuguesa, um ritmo rock mais pesado, com alguns ritmos portugueses do vira. Ouvindo hoje os Diabo na Cruz, por exemplo, lembro-me que o nosso som não era tão popular mas era muito aquela coisa da electricidade, do rock das guitarras, e da cena mais popular. Eh pá, “O Pão Que o Diabo Amaçou” era uma coisa tipo… tipo…
Recorda-se ainda?
[Canta] “Larvas de boca fendida / lavram os campos em ferida.” Era uma coisa assim. Uma palermice épico-juvenil. [Risos] Mas era um imaginário que eu acho interessante. E quando vejo, hoje, miúdos a fazer assim imaginários, acho uma cena incrível. Isso para mim é a essência da pop. É construir imaginários assim, a partir do nada, imaginários que tenham a ver com a nossa cultura mas com influências da música anglo-saxónica. Os Heróis do Mar foram os primeiros a arriscar essa estética pop, estética essa que tanta polémica deu na altura. E parece que as coisas não mudam quarenta anos depois, continua a haver polémicas com estéticas pop. Enfim. Mas era isso que nos interessava. Era, ao mesmo tempo, haver um agit pop que abanasse com as pessoas e pusesse as pessoas chocadas, a pensar. Isso é um bocadinho a raiz da nossa ida ao Festival da Canção.
Essa ida ao Festival da Canção é algo de que se arrepende?
Não. Nada.
A certa altura até a editora vos sugeriu alterar o nome da banda porque estavam “queimados”. Ficaram em último lugar…
Mas nós nunca pensámos alterar o nome. O Miguel Esteves Cardoso e o Pedro Ayres Magalhães disseram para irmos ao Festival, “vocês fazem uma canção pop e vão”. “Vocês estão mas é malucos! O que é que a gente vai fazer ao Festival da Canção?”
Mas acompanhava na altura o Festival?
Na altura já não. Mas em miúdo tinha acompanhado. Acompanhei, hmmmmm, acompanhei até 1975.
A vossa participação foi em 1985.
Exatamente. O último que vi foi aquele só com canções políticas, com o Fernando Girão, o José Mario Branco, o [Jorge] Palma – ganhou a “Madrugada”, do Duarte Mendes, que era militar. E depois desinteressei-me, comecei a ouvir punk, comecei a ouvir new wave.
Mas voltando a 1985.
Eles desafiaram-nos. E o regulamento permitia que cada editora apresentasse a canção que queria. Todas as editoras portuguesas podiam apresentar o artista e a canção que quisessem, sem censura ou escolha da RTP. Então, achei que seria um espaço de liberdade e aceitámos. Eles convidaram-nos através da Fundação Atlântica, uma editora independente como poucas então. E disse: “Vamos fazer a canção que queremos e vamos mostrar ao Festival da Canção que há outra música em Portugal, música pop, e que Portugal não é só música ligeira ou de intervenção”. E fomos. E fizemos a canção que quisemos. E ficámos em último lugar. O que foi um statement! Obviamente que foi. O penúltimo lugar não nos interessava para nada.
[Risos]
Estou a falar a sério.
Eu sei que não é uma piada, sim.
E o autocolante só não apareceu na capa do “Casa da Praia” porque a coisa demorou algum tempo, a Fundação Atlântica fechou, o catálogo ficou com a Valentim de Carvalho e aquilo demorou um bocadinho a sair.
Autocolante?
Quando o “Casa da Praia” saiu nós pedimos que saísse autocolante a dizer: “Último lugar no Festival da Canção”. Achava que seria brilhante. [Risos] Mas na altura a Valentim de Carvalho não concordou. E o single saiu mesmo sem o autocolante.
Hoje olha para o “Casa da Praia”, para essa canção, e acha que é uma boa canção?
Acho que sim. Mas está mal gravada. [Risos] Foi gravada muito à pressa: aquilo tinha que ter três minutos certinhos e aumentámos o BPM para não ultrapassar os três minutos. Mas aquilo era quase pop punk! E quando revejo a nossa prestação no Coliseu, percebo que aquilo acaba rápido demais. Ainda por cima aquilo não era tocado ao vivo, era playback instrumental. E depois havia mau som de voz também. Achei que era mesmo para chegar lá, tipo adolescente, “vou partir aquilo tudo”, e ficar em último. E foi o que aconteceu. Depois, por termos ficado em último, fomos convidados pelo semanário 7ete, pelo João Gobern, para a festa do 7ete, que foi o máximo. Lá está: se ficássemos em penúltimo não tínhamos sido convidados. Eh pá, vou ser sincero: fico contente por, tantos anos depois, haver um Festival da Canção como deve ser. Fazer isto como era no fim dos anos sessenta, com os nossos melhores escritores de canções, poetas, intérpretes. Se calhar em 1985 era um bocado cedo para criar essa revolução.
Acaba por voltar uma década depois como autor de outra canção…
Sim, com a Maria Enes. Canção essa [“Atlântico”] que também fica quase em último. [Risos] Mas é um tema do qual eu gosto muito. Lembro-me perfeitamente de a Rosa Lobato Faria me vir cumprimentar e dizer: “Parabéns pela canção. É assim… um universo um tanto… telúrico. É lindo. Mas, oh filho, isto não é para um Festival…” [Risos] Mas a verdade é que quando ouviram o Salvador [Sobral] também disseram que era uma canção muito gira mas que não era para o Festival. Estas coisas demoram o seu tempo. Nós queremos logo a revolução quando somos adolescentes e tal.
Hoje, e a propósito do Salvador, já existe essa “revolução”?
Sim. Tinha que ser assim.
Creio que no começo havia demasiada intromissão das editoras no Festival. Não?
O “sistema” é assim. Era muito pequenino quando se deu o 25 de Abril. Mas sempre achei que a revolução tem que ser feita a partir de dentro. E foi: os militares de Abril eram parte do sistema. E acreditava que tinha que haver uma espécie de “golpe de estado” no Festival. E o que houve foi mesmo um golpe de estado. O que se fez foi uma coisa “elitista”, mas no bom sentido, com os tipos da Antena 3, o Nuno Galopim e o Henrique Amaro, a escolher quem queriam convidar. Há certamente muita gente da música mais ligeira revoltadíssima com isto, a dizer que somos uns “elitistas”, uns “pseudo-intelectuais de Lisboa”. Mas, coitados, tiveram azar: ganhámos, o Salvador ganhou. As revoluções fazem-se a partir de dentro.
Foram, portanto, eles, o Galopim e o Henrique, que te convidaram.
Sim. Foi o ano passado, no Coliseu [de Lisboa], durante os ensaios do Festival. Fui lá participar num tributo às canções do Festival e convidaram-me. “Eh pá, é para o ano que vens ao Festival?” “Vou pensar…” Na realidade, e depois de ter participado no Festival com o “Atlântico”, volta e meia, ano sim, ano não, convidavam-me. Mas dizia sempre que não. E diziam-me: “Mas, oh Miguel Angelo, também falámos com o Jorge Palma e o Carlos Tê…” Chegava o Festival e nem Palma, nem Tê. Era uma mixórdia. Desta vez o Galopim e o Henrique garantiram-me: “Não vamos convidar gente que venha de áreas musicais sem qualidade…” E aceitei. Aquilo é uma amostra do que de bom se faz em Portugal. E vão gajos mais velhos, como o [Fernando] Tordo ou o [José] Cid, gajos “intermédios” como eu, e até a Isaura lá vai estar.
A canção, “Arco-Íris (assim cantou Zaratustra)”, é nietschziana? Há uma referência a Zaratustra…
A letra tem influência de Nietzsche, sim. Obviamente que sim. Nos últimos anos tenho escrito muito. E o meu próximo álbum – o concept do álbum – tem a ver com livros. Tenho sentido muito a necessidade de ir buscar aos livros a minha inspiração. Mas também é normal: um gajo já anda aqui há tantos anos a escrever sobre o próprio umbigo! [Risos] Basicamente, a verdade é que o meu span de atenção já começa a diminuir como o de toda a gente, porque há tantas coisas a acontecer ao mesmo tempo. Nos livros encontro um lugar de calma, de slow food, e consigo mais “respiração” para escrever. Poderia escrever sobre milhares de coisas: política, economia, o Vladimir Putin ou o Brexit. Mas isto é tudo tão “flashante” neste momento que no último ano e meio tenho-me refugiado outra vez no espaço de lentidão, de imensidão, que são os livros. As canções deste álbum que estou a escrever, todas elas têm um universo ou com alguma referência literária. Agora mesmo lancei o “Grotesto” e fala do inferno de Dante. Há sempre uma ligação direta ou indireta aos livros. Mas o que realmente me deu gozo na canção [“Arco-Íris (assim cantou Zaratustra)”] é ter alguém a dizer Zaratustra no Festival. [Risos] Mas não fiz uma canção para o Festival, tinha-a escrito antes. [NR: a canção foi eliminada na semifinal do Festival da Canção]
Não foi “costurada” para a Dora, portanto.
Não, não. Não. Até poderia ser eu a cantá-la, por exemplo. Na verdade, a demo até fui eu que a cantei quando enviei para a RTP a canção. A Dora Fidalgo tinha trabalhado comigo na canção “A Queda de um Anjo”. E como o universo é parecido, convidei-a para ser a intérprete. Mas atenção: não era uma canção para chegar lá e pá-pá-pá — não era uma canção para ser fixada. É uma canção que podia estar no meu próximo álbum.
Mas voltando aos tempos dos Delfins e recuando na conversa. Foi-vos difícil “furar” no início? Ainda demorou muito tempo…
Foi. E esqueci-me de responder diretamente à pergunta sobre a mudança de nome da banda – mas chegámos lá outra vez. Isso foi uma sugestão de fora, pronto. Na altura era difícil a comunicação. Conseguimos algum espaço no semanário 7ete mas nos restantes jornais surgiam títulos como: “Os Delfins gozaram com o Festival”. Não era bem, bem gozar. Era mais uma cena de subversão. Era agit pop, não gozo. E acabámos por ficar um bocadinho postos de lado por alguma imprensa da altura. E, depois, a maneira como a gente queria capitalizar aquilo também não resultou bem. Ou seja, o pessoal que odiava o Festival também não ficou do nosso lado – porque a gente esteve lá, tínhamos “pactuado”. Então, ficámos num limbo. E foram dois anos em que não se passou nada, entre 1985 e 1987. Ainda tocámos o Rock Rendez-Vous a seguir ao Festival, é verdade. Mas depois não se passou nada. E as editoras achavam que estávamos acabados, pronto. Quando fizemos a primeira maqueta em quatro pistas com os temas do Libertação, onde já está a “Baía de Cascais”, por exemplo, fizemos isso com o Carlos Maria Trindade, o teclista dos Heróis do Mar, que aceitou vir trabalhar connosco. E depois há uma editora, grande, cujo A&R nos diz: “Isto está muito fixe mas vocês têm que mudar esse nome, esqueçam Delfins, Delfins está queimado, completamente queimado, nunca mais vão a lado nenhum com Delfins…” E ele era bem experiente, bem conhecido.
Está a falar de…
Também não interessa. [Risos] É normal. Nós dissemos que “nem pensar” à mudança. Somos teimosos. E ainda sou hoje. Fizemos um statement, pode não ter sido bem percebido, não foi certamente bem comunicado, “mas vamos provar que isto é um caminho que se iniciou e que vai continuar”. E resolvemos ir para estúdio com o nosso dinheiro, tínhamos cinco dias para gravar e misturar. Fomos com o Carlos Maria para estúdio e ele ao fim do quinto dia teve mesmo um colapso, um esgotamento, porque tinha gravado os Rádio Macau, o Circo de Feras dos Xutos & Pontapés, e desgastou-se. Mas estivemos cinco dias e cinco noites lá fechados, a gravar, a gravar, a gravar. “Vamos para estúdio. Se ninguém nos quiser editar, editamos nós!” E era o que ia acontecer.
Mas não aconteceu.
Pois não, pois não. O que é que aconteceu? Já com as misturas finais feitas, vamos outra vez às editoras e há logo duas que nos respondem que “sim”. A editora que achava que devíamos mudar, a Polygram, respondeu que sim. E a editora que tinha respondido que não da primeira vez, que era a EMI, também nos deu o “sim”. Escolhemos a EMI por uma razão: editava mais rápido. [Risos] Um gajo tinha aquela coisa de querer editar as coisas o mais rápido possível, pronto. E escolhemos a EMI. Nós temos o disco, fazemos um concerto de apresentação para imprensa no Coconuts, em Cascais, chegamos ao encore não temos mais músicas para tocar. Então, tocamos a “Canção de Engate”, que era uma cover que a gente tocava nos bares antes. E lembro-me perfeitamente que entra o David Ferreira [antigo responsável da EMI] no camarim e nos diz: “Eh pá, vocês têm que gravar isto no disco! Ainda é janeiro, o disco só deve sair no Verão, temos tempo para preparar isto tudo e têm que gravar a canção!” Lá tirámos uma canção do álbum e a “Canção do Engate” entra mesmo no Libertação.
Era um encore que tocavam nos bares de… Cascais, sobretudo Cascais. Mas em Lisboa vocês não tocavam, não é? No Porto sim, mas em Lisboa não. Tinham-vos como “betinhos”.
Sim. Nos sítios mais elitistas do Porto, como o Aniki Bóbó — que era um espécie de Frágil mas no Porto –, o Meia Cave ou o Cova Funda… Nós tocávamos. Mas em Lisboa havia um preconceito grande em relação à malta de Cascais. Lembro-me que a primeira vez que tocámos em Lisboa, isto ainda antes de 1987, foi na Sociedade Musical Ordem e Progresso, com umas bandas mais urbano-depressivas, tudo ainda a viver os anos dos Joy Division e tal. Tocámos lá pelo meio, com as nossas camisas às riscas. [Risos] Corrijo: a primeira vez que tocámos em Lisboa foi Rock Rendez-Vous. Era fim de ano. E foi um concerto muito punk na altura. Foi mesmo a partir, estava tudo bêbado. [Risos] Nos discos era uma banda pop mas ao vivo aquilo era muito rock, rock pesado. Foi memorável.
Há outra noite memorável para no Rock Rendez-Vouz: aquela em que termina o curso de arquitetura. Conta-me…
Sim. Sim, sim. Mal dormi, mal dormi nessa noite. Mas era o dia do concurso de música moderna e, portanto, “bora lá” de direta. Vi lá um dos melhores concertos da minha vida: que foi o dos Teardrop Explodes. Mas voltando à pergunta anterior: depois do Rock Rendez-Vous e da Ordem e Progresso só voltámos a tocar em Lisboa bem depois. Foi no… no… era uma cave… no… no… Bom, não interessa. Eram duas noites: 23 e 24 de abril. A primeira noite foi um autêntico flop. Estavam umas sete pessoas na plateia. [Risos] Mas o problema nem foi esse. Eh pá, éramos muito novos, vínhamos tocar a Lisboa e estávamos com a pica toda, não é? E apanhámos uma bebedeira ao jantar daquelas mesmo fortes. A meio, sei lá, da quarta ou da quinta música, lembro-me de ver o [Rui] Fadigas a arrumar o baixo e sair do palco. Estávamos a tocar o “Aquele Inverno” e continuámos. Acabámos a canção sem o baixista e disse: “Vamos fazer um pequeno intervalo…” [Risos] Era a primeira vez que o Fadigas tocava connosco ao vivo. Só depois é que percebi que ele estava a dizer ao baterista há meia hora “vou vomitar, vou vomitar”. Ele foi para a casa de banho, vomitou, e partiu a casa de banho toda!
[Risos]
Não é uma piada: partiu mesmo. No segundo dia, aquilo estava a abarrotar de gente, estava lá muita gente da música também, o pessoal do Heróis do Mar, por exemplo, o [Rui] Reininho dos GNR. Nós fomos todos ao mesmo restaurante mas, em vez de bebermos sangria, bebemos todos água e Sumol. E lembro-me que tocámos duas horas e tal! Estava o Reininho todo maluco a dançar. E estava estava cheio que nem um ovo aquilo. E foi um grande concerto, um grande concerto. Tocámos um grande hit nosso três vezes no encore. Um grande hit que nunca foi gravado, é curioso. Era uma música meio funk, que toda a gente dançava, chamada “Peço Desculpa”. E o dinheiro desse segundo dia foi todo para pagar a casa de banho que o Fadigas partiu. [Risos] Lembro-me que, depois da primeira noite, fiz a viagem para Cascais na carrinha do meu pai. E ele diz-me: “Vocês estão acabados, esqueçam, nunca mais vão a lado nenhum na vida depois daquilo que fizeram, vocês partiram a casa-de-banho bêbados…” Mas depois o dia a seguir foi o êxito que foi. É giro quando isto acontece nas carreiras: uma noite má e uma noite muito boa, último lugar no Festival da Canção e, depois, tornámo-nos a banda mais popular de meados dos anos noventa em Portugal. Acho piada a estas coisas.
Como é que os seus pais reagiram quando se aperceberam de que, mesmo arquiteto e formado, a arquitetura o tinha “perdido” para a música?
Acabei o curso em cinco anos. Acabei-o e fui trabalhar para a Câmara Municipal de Cascais. Os meus tinham sempre aquela segurança: “Eh pá, se isto da música por acaso não der, se eles se chatearem uns com os outros e a banda acabar, ele tem sempre o curso…”
Mas nunca o “forçaram” a acabar o curso. Ou a segui-lo sequer.
Não. Não, não. Acabei porque gostava, acabei porque gostava mesmo. O meu pai é um tipo que cresceu com os irmãos em Cascais. Fez negócios, a vida correu-lhe sempre bem. Era empresário, tinha umas empresas e tal. E houve uma certa altura, já perto dos trinta, em que ele decidiu ir tirar o curso de Belas-Artes, chega a estar em Barcelona e tudo, e dedica-se à pintura. Não é fácil. Então, e tendo ele um filho que queria ser músico, só o pedira apoiar. Ele via que era mesmo aquilo que eu gostava de fazer. E sabia isso desde os seis anos. Mas é claro que se calhar estavam mais confortáveis por ter acabado o curso e porque estava a fazer o serviço cívico na Câmara. Os meus pais percebiam que me levantava cedo, que estava na Câmara às oito e meia da manhã todo o santo dia, que ensaiava à noite e não falhava nada.
Falou do serviço cívico na Câmara. Mas pouca gente se recordará da razão pela qual o fez: resolveu ser objetor de consciência e recusou cumprir o serviço militar obrigatório. É isto, não é?
É, é. É. Olha, lá está: o Rock Rendez-Vous! Lembro-me que tive um concerto em São Pedro de Sintra com os Delfins e, depois, fui a correr para Lisboa para participar num concerto que tinha organizado contra o serviço militar obrigatório. Com o [João] Aguardela e o [Luís] Varatojo. E depois acabou por se fazer um concerto grande no Pavilhão Carlos Lopes. Eu tinha sofrido na pele com o serviço militar. Os próprios Delfins tiveram muitos espetáculos cancelados porque alguém da banda tinha ido para a tropa, um para Beja, o outro estava em Évora, o Fernando depois entrou no quartel em Cascais, o meu irmão também esteve na tropa. E isso dificultou muito a vida da banda. Sou contra, pronto. Contra a violência, contra a tropa. E sabia obviamente que havia esse estatuto [objetor de consciência] e requeri-o. Antes, tinha pedido sempre os adiamentos por estar a tirar o curso de arquitetura. E quando chegou o fim, tinha que ser incorporado, tinha que ir à inspeção e cumprir o serviço militar. Pronto, lá apresentei aquilo no último dia — deixo sempre as coisas para o último dia – e, depois, fui a tribunal. Tinha um advogado e tudo.
E teve “sorte”, não é? Ao que sei o magistrado do Ministério Público era fã dos Delfins…
[Risos] Era. Era mesmo. E o juiz era um gajo de esquerda e tal. Disseram-me logo: “Com este juiz estás safo!” Lembro-me que apresentei os discos e as letras do “Aquele Inverno” como prova em tribunal. Aquele estatuto era atribuído quase somente por motivos religiosos, a jeovás e não-sei-quê. E este gajo, um músico, chega lá e defende-se dizendo que “por motivos de ordem filosófica não quero ir à tropa” — era uma coisa que não havia muito à época. Mas tive um juiz bem porreiro. E o Ministério Público também o foi. E estava um lindo, lindo dia de sol, com o sol a entrar pelas janelas do tribunal de Cascais, com vista para o mar, mesmo em cima da praia. [Risos]
Na altura alguém lhe agradeceu a tomada pública de decisão? Aquilo foi bastante mediático.
Acho que não. Não me agradeceram mas também acho que não era para me agradecerem. Isto é daquelas coisas que um gajo faz porque tem alguma consciência. Quando hoje se fala do regresso do serviço militar obrigatório, há um ano ou dois falou-se disso, havia muita gente a dizer “acho muito bem”. Há pessoas que julgam que a liberdade de pensamento não é uma coisa adquirida, que pensam que as outras não podem decidir o que querem fazer das suas vidas.
Sente que há gente que se esqueceu do que defendia então?
Completamente. Um gajo esquece-se. É o arrumo normal da vida. Um gajo acha que agora sabe mais. Eu acho que sei mais. Eu acredito naquela tradição tribal do ancião. Mas também acredito que é bom falhar, errar, é bom fazer um bom “filme”. E é então que acontecem passos e progressos importantes. Percebes? É quando se faz as coisas que não são politicamente corretas que se progride, obviamente. E hoje em dia estranho muito aquele sentimento da polícia do pensamento que está em gente muito nova e que se manifesta de maneira violenta e agressiva nas redes sociais. Se o pessoal quiser fazer uma coisa mal, deixem-nos fazer – desde que não prejudiquem diretamente alguém.
Sempre deu essa liberdade ao seus dois filhos mais velhos?
Sempre. E sofrendo muito na adolescência, claro. E sempre tentei perceber as coisas da geração deles. Acho que há coisas que nos estão a escapar. A minha geração critica a cena dos youtubers, que é o “vazio”, que “não tem conteúdo” e que é “mau exemplo”. Já os Beatles seriam mau exemplo para os pais das fãs dos Beatles. E os Rolling Stones?! Ui! Prenda a sua filha em casa… Acho que há sempre alguma coisa a acontecer que nós não estamos a ver. Ou não queremos ver. É necessário ter consciência que há qualquer importante a acontecer naquele “vazio” fútil. Não pode estar toda a gente errada e à beira do abismo. Isso é aquela visão sempre muito fatalista das gerações mais velhas, que acha que a geração mais nova não sabe nada. Estes tipos que agora criticam os youtubers estavam todos agarrados ao haxixe e ao LSD nos anos setenta e oitenta. Percebes? Até é menos grave. Lembro-me de estar na bancada do pavilhão do Dramático de Cascais, a ver os Soft Machine, e ter dificuldade em ver o palco por causa do fumo. O Diário Popular até escreveu na crítica do concerto que até havia “estojos com seringas” e não-sei-quê. Não havia nada disso. O que havia era o tradicional cachimbo de haxixe, que era feito com a prata do SG. E toda a gente acendia e passava e fumava. Aquilo era tanta fumarada, tanta fumarada, que não via um boi. Faz parte. [Risos]
Já o ouvi dizer que o que viu foi muitos amigos “desgraçarem-se” com drogas e álcool. É verdade?
Uns estão vivos, outros não.
Assistiu de perto. E conseguiu sempre distanciar-se?
Não fumo tabaco. Fumo charuto – e cada vez fumo menos. Mas houve elementos na banda com problemas desses muitas vezes, claro. Assisti a isso, assisti. Não quero ser paternalista agora. Mas a banda era um família par a nós – acho que foi quando se perdeu essa noção de “família” que acabou. E fomos muitas vezes “pais” uns dos outros. Quando era preciso tomar aquela medicação àquela hora, todos os dias, todos os dias, estava lá sempre um de nós para “fiscalizar” tudo. Houve pessoas que foram ao buraco e que vieram. E que, felizmente, estão bem agora.
O facto de ter visto isso de perto também o fez nunca querer? Embora seja tentador quando há sucesso e dinheiro…
Eu tenho uma visão que é um bocadinho pessoal em relação a isso: o tempo. Tenho pouquíssimo tempo para fazer tudo aquilo que quero fazer. E sempre achei que algum tipo de atividades, digamos, “lúdicas”, me roubavam demasiado tempo. Eu não tinha tempo para apanhar uma trip e estar dez horas a ressacar.
Mas chegou a utilizar drogas leves…
Sim. Mas uma coisa é uma passa. Estás numa festa de um amigo teu, dás uma passa, num concerto, outra passa, a dançar, outra passa. Isso fiz, isso fiz. Mas coisas que me retirem tempo não quero. Nunca me droguei regularmente como nunca joguei videojogos regularmente. É preciso gastar algum tempo para ter alguma “perícia”. E percebi que não tinha tempo: queria escrever, cantar, tocar, gravar. Vejo o lado recreativo das drogas como… como… [pausa] passar muito tempo em reflexão paralela, em realidades alternativas. Não me podia dar a esse luxo.
Mudando de assunto. Explicava-me que vos foi complicado “furar”. E a verdade é que no início de 1990 a EMI vos diz que o Desalinhados era “sem interesse nem qualidade”. Isso é uma crítica duríssima vinda da própria editora…
Sim. Mas não sei se éramos a banda mais fácil com quem trabalhar ou não; tínhamos muita vontade própria, sabíamos muito bem o que é que fazíamos e não respeitávamos muito, na realidade, a vontade da editora.
Mas arrepende-se?
Não, não me arrependo. Isto são questões bem mais simples do que o que as pessoas pensam. Vou explicar o porquê da crítica da EMI. Nós tínhamos trabalhado com o Tó Pinheiro da Silva enquanto engenheiro de som dos estúdios de Paço de Arcos. E gostávamos mesmo muito de trabalhar com ele, achávamos que era o melhor engenheiro de som português. Mas o Tó foi saiu da Valentim e foi para o Namouche. O problema é que havia uma regra interna: os grupos da Valentim de Carvalho só podiam gravar nos estúdios da Valentim de Carvalho. Eu percebia, era um negócio de família e tal. Mas nós não estávamos satisfeitos com o segundo álbum, com a qualidade de gravação do álbum. Queríamos regravar. E queríamos regravar no Namouche. Mas não obtivemos autorização da Valentim de Carvalho. “Não faz mal, pagamos do nosso bolso!” E pagámos. Mas editaríamos pela Valentim na mesma. E a Valentim ganharia os seus royalties na mesma – mesmo não tendo pagado aquilo. E, pronto, vamos um dia inteiro para o Namouche e, live on tape, gravamos nove, dez músicas. “Eh pá, sem interesse nem qualidade”, foi a resposta da Valentim. Estávamos em fevereiro ou março. “Vão gravar mais coisas e apareçam cá depois do verão…” Aquilo para mim era o mesmo que dizer “vão passear”. E rescindimos. Mas não rescindimos sem antes ouvir o tradicional “nunca nenhuma banda que saiu da Valentim de Carvalho conseguiu ter êxito, os Delfins não vão ter também…” O que é que aconteceu? A BMG abriu escritórios em Portugal. E queria os Xutos & Pontapés. Os Xutos estão quase, quase a assinar com a BMG… mas a Polygram dobra a parada para ficar com eles. A BMG fica sem eles — isto é a Teoria do Caos [risos] — e os Delfins estão de saída, não é? Contatam-nos, gostam imenso das canções, e editamos pela BMG logo em seguida. E o disco, passado um ano, vende dez mil cópias. Prata! O disco Ser Maior, a seguir, vende dezassete mil. Ainda não chega a ouro. Havia espetáculos, corria sempre tudo muito bem, mas não era ainda assim o hit, não vamos para o primeiro lugar de vendas do top logo, logo.
Isso acontece por volta de 1996.
Sim. No fim de 1995. Aí já é o Tozé Brito que entra na BMG, sai da Polygram e vai para a BMG. E começa aquela dinâmica de venda louca. A música portuguesa vendeu muito naquela década de noventa, havia muito dinheiro. Nós com o Caminho da Felicidade começamos a vender acima da loucura! Ficámos meses em número um do top de vendas. Seis platinas. Estamos a falar de duzentas e quarenta mil cópias. Foi uma loucura.
Mas a “loucura” também traria a sobre-exposição. Hoje, à distância, pergunto: foi prejudicial?
Sim, claro. Claro. Pá, isto é um país pequenino. Uma coisa é teres um grande êxito, e seres uma banda de Inglaterra ou americana, estares dois anos a fazer uma tournée mundial e, depois, lanças outro álbum novo. Outra coisa é fazeres isso em Portugal. Estás sempre, sempre na televisão. Está aquela música sempre a tocar no shopping quando vais às compras. Há obviamente sobre-exposição. Eu próprio também fiz televisão e programas de grande audiência, a minha imagem ficou muito desgastada, claro. Um bocadinho descredibilizada na música também – porque o pessoal da música, na altura, descredibilizava muito quem fazia televisão. Hoje em dia toda a gente quer ser júri em talent shows.
Então?
Quando apresentei o programa Cantigas da Rua, a audiência era de três milhões de pessoas. Era uma coisa muito, muito popular. Até o professor Marcelo Rebelo de Sousa parava em Cascais e me dizia: “Gosto muito daquele seu programa de televisão”. [Risos] Aquilo era visto por todos, dos putos às avós. Toda a gente via aquilo. Até o Marcelo Rebelo de Sousa. O problema é que quando és ator tu podes fazer um anúncio a não-sei-quê, depois uma comédia, depois um filme negro. Não música, não. Não é permitido esse tipo de diversidade aos músicos. “Esse gajo fez esse programa de talentos, agora não pode ser levado a sério…” Isto aconteceu. Estou a falar de 1998, 1999. Mas, curiosamente, não acho que o problema tenha sido a sobre-exposição; foi o termos parado. “Estamos estafados, há sobre-exposição, paramos.” E parámos logo após o Saber A-mar. E estivemos quatro anos sem editar nada. Nunca mais foi a mesma coisa depois.
Mas foram-se renovando na sonoridade.
É verdade. Mas já não nos era permitido. Era tarde. Se tivéssemos continuado, e tínhamos a hipótese de fazer uma carreira no Brasil, seis meses no Brasil e seis cá, as coisas tinham sido obviamente diferentes. Foi a proposta da BMG. E não aceitámos porque éramos todos casados e tínhamos putos pequenos naquela na altura. Não estivemos à altura para responder à sobre-exposição. A sobre-exposição tinha implicado um salto no Atlântico.
Ainda pensa nisso? Sei que não é saudosista, mas…
[Risos] Sim, sim. Sim. Foi um erro. Obviamente. Se fossemos uma banda americana e tivéssemos um manager qualquer big shot, ele tinha-nos obrigado a fazer aquilo, não é? Mas tivemos essa liberdade de não fazer. Também é importante isso.
Ainda hoje, nos concertos a solo, faz arranjos de canções mais antigas dos Delfins. Porque o público pede. Mas quando ouve alguma canção na rádio, por exemplo, daquelas mais antigas, muda a estação ou ainda se identifica com o passado?
Vou ser sincero: ouço e ouço com alguma curiosidade. São tantas, tantas versões já. Já mudei tanto. Há estruturas diferentes, às vezes harmonias diferentes. Quando ouço na rádio, até ouço com alguma curiosidade e digo “eh pá, como é que isto era…” [Risos] Quando os Delfins fizeram vinte anos de carreira, fizemos não-sei-quantos concertos a tocar só os álbuns, com os arranjos do álbum, com a estrutura do álbum. E lembro-me que foi um trabalho muito curioso. Confesso: gosto do conceito de revisitar álbuns antigos.
Isso é provavelmente a única coisa que ainda admite fazer com a banda: um concerto para revisitar e celebrar um determinado álbum?
É verdade. E isso chegou a estar em cima da mesa e tudo. Quando houve a reedição do Ser Maior, há dois anos, pela BMG, chegou-se a falar nisso. Isso era algo que eu me via a fazer. Mas tinha que haver um investimento grande para montar um espetáculo daqueles, um espetáculo para one shot. E teríamos que ter tempo, teria que haver dinheiro para pagar a todos os técnicos, para obrigar alguns ex-membros dos Delfins a ir para o ginásio durante meses até perder a barriga. [Risos] Quando vejo aquelas bandas muito decadentes em palco sinto vergonha alheia.
O concerto de despedida foi uma coisa memorável vocês. Na passagem de ano, em “casa”, em Cascais.
Foi até à meia-noite. Em ponto.
Disse que se sentia no seu próprio velório a ver quem é que aparecia.
[Risos] É verdade. E depois fomos a uma festa depois e acabei a dançar até às tantas. Sei que isto pode pode parecer estranho para muita gente mas é verdade. Quando anunciámos há dez anos o fim da banda muita gente dizia: “Ah, isto é uma manobra, é publicidade como os Rolling Stones e não-sei-quê…” Não era manobra. Nós preparámos a despedida com um ano e meio de antecedência. Aquilo estava planeado, com contratos assinados e tudo. O fim foi assinado num contrato que rege o que é que se pode fazer com o património de então para a frente. Aquela despedida foi uma celebração, era como naqueles funerais com música, à americana – não era aquela coisa apostólica-romana com tudo a chorar e a carpir. Havia pessoas a festejar, a beber copos e a cantar refrães. Sem lágrimas. Às vezes, quando aquilo acontece, quando termina, o pessoal está porreiro na altura mas depois, quatro, cinco dia depois, começa a percebe que acabou e a pensar: “O que é que eu vou fazer agora?!”
Mas o Miguel sabia bem o que queria fazer: uma trilogia, sozinho.
Sabia, sabia. Estava a trabalhar nisso há algum tempo. Lembro-me perfeitamente que amigos meus, preocupados, me convidaram para jantar, para saber se estava tudo bem comigo. “Pá… ya. Porquê?! Mas querem dizer-me alguma coisa?” Até estava com receio que fosse algo com algum deles. [Risos] O meu amor à música é mais forte do que o fim de uma banda. Como já havia canções novas e estava a gravar coisas a solo, estava bem.
E estava a rodear-se de muita gente mais nova. É verdade que as últimas canções foram gravadas pelo Fadigas. Mas no primeiro e no segundo disco trabalha com o Eduardo Vinhas, nos estúdios Gonden Pony.
É verdade.
Foi propositado: desconectar-se do passado e procurar uma sonoridade pop diferente, até na escrita das canções?
Sim. Se calhar não tanto na escrita. Um bocado na escrita, mas sobretudo em termos de direção de arranjos, de produção, de ambientes. No começo, fui obviamente para o registo acústico para me libertar da produção pop – que era uma parafernália de setenta e duas pistas com a banda. Vou para uma coisa mais simples, de guitarra, de canções mais pessoais, um bocadinho mais calmas do que antes. O primeiro disco teve um single que foi um sucesso, o “Precioso”.
As rádios aceitaram bem a canção, sim.
Uma rádio! A RFM… Posso dizer que o disco é lançado em abril e, até outubro, era só na RFM que passava. E, depois, até a Antena 3 passou, achei curioso. Mas no início ninguém quis passar. Cá em Portugal as rádios têm aquela coisa do “quando for êxito nós passamos”. Mas quem é que vai fazer o êxito? É êxito porque entrou numa novela? É êxito porque alguém a cantou numa audição de um programa de talentos? Pode ser. Pode não ser. Acho que é uma política que… enfim. Na altura tinha apoio da RFM. Mas as outras rádios todas disseram que não. E depois, passados seis meses, é que finalmente passaram, foram obrigadas a passar por se ter tornado um êxito.
E sentiu, então, que estava a fazer a coisa certa?
[Pausa] Não sei. Anunciei uma trilogia e vou cumpri-la. O terceiro será o regresso à produção mais pop. Mas vou certamente explorar sonoridades diferentes, trabalhar com pessoas diferentes, novas. Vistas bem as coisas, já trabalho, na ETIC: ao ser o coordenador do curso de Produção e Criação Musical, estou todos os dias com miúdos, músicos, de dezanove, vinte anos, que estão a fazer os primeiros EPs, e é mesmo muito fixe.
Sente-se uma espécie de mentor?
Sim. Um tutor, mais um tutor do que um mentor. É porreiro estar rodeado de malta assim, nova, muito importante mesmo. Até musicalmente. E musicalmente, hoje, tenho uma liberdade que antes não tinha. Posso dizer que quero ter “Grotesco” uma cena na onda do John Lurie, faço um solo meio esquizofrénico de sax, gravo e sai o que sair. Nos Delfins era impossível, obviamente. Era muito mais difícil chegar à banda e dizer: “Olha, agora quero por aqui um fagote a tocar”. Não podia.
Quando começa a enriquecer – com outros instrumentos, outros ambientes – musicalmente um álbum, faz sentido ele ser em vinil como este é? No digital esses ambientes perdem-se…
Ya. Ya, ya. É, é. O digital estraga a dinâmica toda à música. É verdade. Ouvir um vinil para mim é quase um ato religioso. Voltei à minha coleção e voltei a querer ouvir a música daquela forma. Não é só revivalismo; a qualidade é mesmo diferente. Lembras-te de te falar do tempo, de não ter o tempo que queria? Ouvir música em vinil é o único luxo de tempo a que me posso dar hoje em dia. Na playlist do Spotify ouve-se muito mais “avulso”. E o vinil ainda me prende um bocadinho ao tempo da obra.
Mas falávamos de trabalhar com músicos – ou “trabalhá-los” – que já podiam ser seus filhos. Como é que vê esta nova geração da músicos em Portugal?
Chinaskee & Os Camponeses. Ele foi meu aluno e foi um dos discos que mais gostei de ouvir no último ano. Mas também há o [Filipe] Sambado, o [Luís] Severo. Há uma comunidade de músicos, isso percebe-se bem. E há bandas, ainda há bandas, pessoal que tem duas, três bandas. Acho que é giro ver nessas bandas um estilo um bocadinho do fim do psicadelismo, tipo os Capitão Fausto, que têm um bocadinho essa linguagem progressiva da música. Isso é que eu acho que é engraçado na música: ela reinventar-se sempre.
Eles têm uma coisa que não havia muito na sua geração e falou disso agora mesmo: participam nos projetos uns dos outros.
Sim. Agora é mais transversal isso agora. Mas acho que é uma necessidade também, atenção. Não são muitos os sítios para tocar. “Vou à Zé dos Bois, faço lá um espetáculo, tu também vais e aproveitas para tocar com a outra banda e tal…” Por outro lado, acho vivemos um bocadinho a febre dos espetáculos com convidados. Mesmo artistas grandes têm sempre, sempre convidados. Mas na próxima tournée com Resistência vamos anunciar o Pavilhão Atlântico… sem convidados. [Risos] Na última vez, os convidados foram o António Zambujo e a Raquel [Tavares]. Desta vez não vai ninguém, só para ser diferente. [Risos] Mas isto da partilha na música é o melhor que há, a sério. O Zambujo é que dizia, com graça, que [Resistência] foi a primeira “Geringonça” a funcionar neste país – e o António Costa até estava a assistir na plateia. Aquilo na altura em que começou foi estapafúrdio. Porque o pessoal dos Xutos odiava não-sei-quem, os Mão Morta não gostavam destes, os Pop Dell’Arte desprezavam os outros…
O Miguel tinha uma certa “rivalidade” com o Reininho. Ou não?
[Risos] Tenho os discos todos dos GNR. Ele é que atirava uma boquita de vez em quando. Sobretudo naquela altura em que eu fazia o programa, o Cantigas da Rua. Mas acho muita piada a essas rivalidades. Eu gostava disso desde os Beatles e os Stones, até aos Blur e aos Oasis. Até acho que há pouco aqui. Mas, pronto, o Reininho mandava aquelas bocas aos Delfins, como manda a qualquer coisa que se passasse na altura. Não havia ali uma fixação do Reininho – mas falava dos Delfins porque era o que estava a dar. Acho que Portugal não absorve essa coisa da rivalidade muito bem. No outro dia falava com um aluno meu sobre o Severo – e aqueles “sobrinhos” do B Fachada; aquela métrica de cantar o português, a acentuação das palavras, vem do B Fachada. E dizia-me o aluno assim: “Mas sabes que agora há uma polémica aí, o Fachada veio dizer que o Filipe Sambado está mais preocupado em pintar as unhas dos pés do que em gravar álbuns…” [Risos] É delicioso. Estas coisas são giras.
Nunca influenciou os seus filhos a serem músicos? Ou eles, precisamente por serem filhos de quem são, afastaram-se cedo disso?
A Máxima nasceu em 1991 e o Martim em 1995. Foram aqueles anos da loucura. Mas acho que eles nunca ligaram muito a isso. Às vezes até tinham vergonha na rua – é aquela coisa dos miúdos. O que gostavam mais era da voz do Woody, do Toy Story, isso adoravam. Delfins não ouviam tanto assim. E à música eu percebi cedo que nunca houve uma proximidade muito grande. A minha filha ouvia música. Mas já não ligou ao CD como eu ligava ao vinil. Era uma coisa acessória, não fazia coleção, não guardava na estante. E obrigou-me a ir ver o 50 Cent ao Pavilhão Atlântico – isso foi doloroso. [Risos] O Martim… o Martim… ainda houve uma altura que foi ter umas aulas de guitarra mas a coisa não pegou. A linguagem dele é mais do gaming. Ele descobriu as bandas rock dos anos oitenta no Grand Theft Auto.
E eles são críticos da sua música?
São. E gostam. Se calhar não é a música que eles ouvem mais, claro. Uma história gira: partilho o carro com o meu filho. Ele está lá sempre naquelas rádios da idade dele; eu tenho sempre a Radar. Mas o carro ainda tem aqueles leitores de CDs, pronto. E tinha lá deixado lá o Black and White, dos Stranglers. E o meu filho para mim: “Oh pai, de quem é aquele disco?! É fantástico…” Ele adorou aquilo. Stranglers é agressivo, pós-punk. O gajo adorou mesmo aquilo. Mas, pronto, eles fazem o caminho deles. Agora, a nova, a miúda, a Glória, acho que sente a música como eles não sentem, mesmo tendo só dois anos. Ela sente muito. Não sei se tem a ver ou não: mas ela ficou em casa durante os primeiros quatro meses e foi durante um inverno em que acabo por ficar muito tempo em casa com ela. Durante esses primeiros quatro meses, e até ir para a creche, ouviu a discografia toda do David Bowie e do Prince – por razões que têm a ver com as suas mortes; um gajo vai sempre buscar os discos todos e põe-se a ouvir aquilo. E ela ouvia, pronto. E adormecia a ouvir a “Thursday’s Child” ou a “Seven” do Bowie. E para comer, gostava imenso de comer com o Prince a tocar. Eu fazia uma piada com ela. “Como é que faz o gato? Miau. Como é que faz o cão? Ão-ão. Como é que faz o Prince? U-uuuuu.” [Risos]
Falou ainda há pouco do Toy Story. Há muitos miúdos que não eram nascidos sequer quando os Delfins estavam no auge das vendas, miúdos que nunca o viram a apresentar um programa de televisão… mas que, ainda assim, o reconhecem por causa da dobragem do Woody. Verdade?
Sabes: aqui há uns anos, numa festa do Lux, às três e tal da manhã, veio um grupo de miúdos de vinte-e-poucos anos a dizer-me: “Faz lá aquela fala do filme, faz lá aquela fala do filme…” Outra vez, fui a casa de um amigo comer, o [Jorge] Romão, dos GNR, ele tinha filhos novos e eles estavam excitadíssimos porque o Woody ia lá jantar a casa. [Risos] Delfins nem conheciam, claro. Nas aulas, às vezes, e assim do nada, faço uma das falas do filme enquanto estou a falar…
“Tenho uma cobra nas botas…”
[Risos] Não é essa, não é essa. Mas é do género, sim. E a classe fica toda de boca aberta! “Wow! É ele…”
Sentia que na década de noventa era um ídolo ou não?
[Pausa] Acho que percebi isso quando, num programa de televisão, nos convidam para ir tocar ao Liceu de Oeiras, no pavilhão, para surpreender um miúdo que era fã dos Delfins. Ela pintava o cabelo como o meu e, segundo a mãe, dormia sempre para um lado da almofada para ficar com o nariz ligeiramente torto como o meu. [Risos] E, pronto, aquilo foi uma absoluta loucura, foram chamar as turmas todas da escola, tudo a correr para dentro do pavilhão. Na década de noventa era popular como os youtubers são agora. Os miúdos vão atrás deles para todo o lado. São ídolos, referências da adolescência – como eu tinha as minhas também, claro.
Última pergunta. Olhando ao que já fez, o que é que foi mais influente para se tornar músico: os cheques-discos que o seu tio Artur oferecia ou o concerto dos Genesis que viu ainda em criança?
[Pausa] Eh pá… Se tivesse que escolher, escolhia o concerto dos Genesis. O meu tio Artur oferecia-me discos novos no Natal – que comprava no Bazar do Parque, em Cascais. Era aquele ritual de Natal quase sagrado. Mas a dimensão do espetáculo quando vi os Genesis foi uma novidade para mim. Ouvia os discos no meu quarto, só. Quando vejo aquilo, o som, alto, o palco, a dimensão do palco, dez mil pessoas a cantar, disse: “É isto que eu quero fazer, quero que a minha vida seja isto”.