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Miguel Clarinha, o guardião dos Pastéis de Belém

Quando era miúdo ia para a fábrica, encher pastéis de creme com uma pistola. Aos 29, foi-lhe confiada a famosa receita secreta. Agora, com 34, gere os destinos da empresa fundada há 180 anos.

Lavou as mãos, vestiu o avental, colocou a touca na cabeça e entrou na zona da fábrica, onde os mestres o aguardavam, com solenidade. Depois de cinco anos a aprender os segredos de gestão da empresa, tinha chegado finalmente o dia em que Miguel Clarinha, então com 29 anos, ia ser introduzido ao segredo. A famosa receita dos Pastéis de Belém ser-lhe-ia finalmente revelada — a ele e à prima Penélope, com quem ainda hoje partilha a administração da empresa, na família há quatro gerações. “O meu pai disse-nos que tínhamos de esperar, que para se ser mestre é preciso trabalhar cá há 15 ou 20 anos, nós também devíamos esperar uns anos, quanto mais não fosse para respeitar a tradição. Vimos o processo, tentámos ajudar e aprender. Não foi nada fácil…”, recorda ao Observador, quase seis anos depois.

“Se foi uma desilusão? Claro que na nossa cabeça imaginamos sempre mil e uma coisas e a realidade nunca é exatamente o que pensamos, mas não foi uma desilusão, porque é algo complexo e muito artesanal. É muito a intuição de quem toca na massa e a trabalha, não é mecânico. Teria ficado desiludido se fosse uma coisa muito mecânica, sem qualquer input humano.”

Filho de Pedro Clarinha, anterior gerente da empresa, que a assumiu depois do afastamento de um tio-avô (que por sua vez tinha sucedido ao pai, que por seu turno a herdara de um sócio com ligações à família), Miguel, 34 anos, cresceu literalmente na confeitaria, na Rua de Belém, com vista para o Tejo e ao lado dos Jerónimos.

D.R.

Licenciado em Marketing e Publicidade, ainda pensou ser jornalista (e astronauta; e veterinário), mas acabou por decidir reclamar a herança da família. Primeiro equacionou fazê-lo seguindo a via da medicina — “O meu avô paterno era médico em Lagos, no Algarve, o irmão do meu pai também é, e o meu também tirou medicina, apesar de nunca ter exercido” —, depois rendeu-se às evidências e escolheu os pastéis: “Nunca pensei que fosse acontecer tão cedo, mas sempre me imaginei um dia a trabalhar aqui ou a ajudar de alguma forma a empresa. Sempre vi o meu pai aqui, sempre me senti em casa”.

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Filho único, quando era pequeno adorava invadir a zona da fábrica e pedir aos funcionários que o deixassem encher pastéis, com a pistola que então utilizavam para colocar, um a um, o creme dentro da massa folhada (hoje, apesar de o processo se manter artesanal, já existem máquinas para fazer esse trabalho).

Além de Três Porquinhos, Capuchinho Vermelho, Bela Adormecida e outros clássicos, cresceu a ouvir a incrível história do monge que em 1834 vendeu (ou deu, não há registos de recibos ou valores apontados em sebentas de papel pardo) a receita dos famosos pastéis, que acabaria na posse da família, a um empresário chamado Domingos Rafael Alves.

“A receita nasceu no Mosteiro dos Jerónimos e por lá permaneceu até à Revolução Liberal de 1820. Uns anos mais tarde, em 1834, quando o Estado encerrou os mosteiros e os conventos e expulsou os monges e as freiras, a receita terá sido vendida ou dada a esse empresário aqui da zona de Belém, que provavelmente já conheceria o produto, de o comprar nas feiras que se faziam à porta do mosteiro.”

Daí até à fundação da marca, por Domingos Rafael Alves, no mesmo lugar onde ainda hoje existe fábrica e confeitaria, passariam três anos. A história continua, conta Miguel: “Sabemos que se dirigiu a este espaço, onde existia uma antiga refinação de açúcar, com uma pequena loja ao lado, daquelas que vendiam um bocadinho de tudo. Foi nessa loja que os pastéis começaram a ser vendidos; eram produzidos na refinação, aproveitando o açúcar, e vendidos na loja de comércio variado, que, em 1837, se transformou numa loja de venda praticamente exclusiva de Pastéis de Belém. Foi assim que tudo começou. A loja era onde é hoje o nosso balcão e a refinaria era onde é a nossa fábrica”.

“A receita nasceu no Mosteiro dos Jerónimos e por lá permaneceu até à Revolução Liberal de 1820. Em 1834, quando o Estado encerrou os mosteiros e os conventos e expulsou os monges e as freiras, a receita terá sido vendida ou dada a um empresário aqui da zona de Belém”

“Esse primeiro empresário, tanto quanto sabemos, esteve cá uns dez ou quinze anos e depois passou a empresa a outra pessoa, de quem não sei o nome, que por sua vez o passou a alguém que já era sócio de alguém na família. E que depois deixou o negócio para o pai do meu tio-avô, para o meu tio-avô, para o meu pai e agora para nós”.

Aluno regular, melhor a umas disciplinas, não tão bom noutras; bem comportado e introvertido, Miguel garante que nunca se valeu da posição na linha de sucessão para impressionar miúdas ou inflacionar notas — se bem que fosse uma festa sempre que era a sua vez de levar bolos para vender na sala de professores e angariar fundos para as viagens de finalistas. O que é facto, diz, é que nem sequer faria sentido tentar essa abordagem: ninguém queria saber. “O trabalho da minha mãe, na TAP, acabava por ser mais apetecível: desde os cinco anos que sempre viajei muito com ela, estive no Brasil, na América, na Ásia, em África – e não pagava nada -, isso é que impressionava mais.”

D.R.

Apesar de hoje serem uma instituição, tão procurada por visitantes estrangeiros como os monumentos vizinhos da confeitaria, em Belém — à razão de vinte mil por dia e de 7,3 milhões ao ano, dados de 2016 —, os pastéis nem sempre foram tão grandes, garante Miguel.

De acordo com o gestor, a grande mudança só começou a operar-se no final da década de 1990, com a Expo 98, o Euro 2004 e o aumento galopante do número de turistas no país. “Claro que a seguir ao 25 de Abril de 1974 o país mudou radicalmente e abriu-se muito ao exterior, o que permitiu que Lisboa entrasse no mapa europeu e fez com que começássemos a ser visitados por mais turistas, mas o verdadeiro boom aconteceu muito mais tarde. Entre 1998 e 2006 crescemos 10% ao ano, hoje somos 170 funcionários. No início os pastéis eram conhecidos sobretudo em Lisboa e no país, depois, à medida que Lisboa se foi tornando um ponto mais turístico, a marca começou a crescer muito além-fronteiras e isso foi uma das principais razões para o aumento de vendas que tivemos”, explica.

“Às vezes as pessoas pensam nos Pastéis de Belém e acham que andamos todos tipo Tio Patinhas a mergulhar em moedas de ouro, mas não é bem assim. É um negócio saudável e lucrativo, sim, mas também tem muitos custos."
Miguel Clarinha

E podiam crescer ainda mais? Podiam, diz Clarinha. A tradição, a qualidade e o método artesanal, que são as chaves do negócio, é que muito provavelmente ficariam pelo caminho. É por fazerem questão de manter esta trindade que os donos dos Pastéis de Belém se contentam em gerir um negócio “lucrativo”, em vez de serem milionários, e continuam a dizer não a todos os que os abordam com propostas de franchising, revenda ou exportação.

“Às vezes as pessoas pensam nos Pastéis de Belém e acham que andamos todos tipo Tio Patinhas a mergulhar em moedas de ouro, mas não é bem assim. É um negócio saudável e lucrativo, sim, mas também tem muitos custos. Se decidíssemos expandir-nos, montar uma unidade fabril de produção industrial, ultra-congelar e exportar os nossos pastéis sob um negócio de franchising ou abrirmos lojas pelo mundo fora, acredito que seria muito lucrativo. Apesar de já termos pensado várias vezes nisso, temos optado por não sair daqui, por uma razão que tem essencialmente a ver com a qualidade e a perecibilidade do produto, que é artesanal e fresco. A massa folhada e o creme perdem muita qualidade de um dia para o outro, até com o passar das horas. Isto acontece porque os ingredientes são frescos e é tudo feito na hora, sem conservantes. Já para não falar na identidade e na história do produto. A história do Pastel de Belém é aqui. E o facto de este ser o único lugar do mundo onde eles são vendidos e produzidos também tem valor para quem nos visita.”

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Como argumento é imbatível: abertos todos os dias das 8h00 às 23h00 (exceto no Natal e na Passagem de Ano, em que as portas fecham às 19h00), o que não faltam aos Pastéis de Belém, comprovam as filas que nunca acabam, faça chuva ou um calor abrasador, são clientes. Comuns mortais e famosos (mortais também).
“Sei que já cá estiveram várias vezes os príncipes da Dinamarca e da Noruega, e diplomatas e embaixadores de todos os países do mundo, também. As figuras públicas vêm como clientes normais, não pedem atendimento especial e muitas vezes até se disfarçam, só sabemos que cá estiveram quando vemos as fotografias nas revistas. Aconteceu com a Catherine Deneuve, por exemplo. O Jorge Amado também vinha cá muitas, muitas vezes. E a Amália Rodrigues era uma das nossas melhores clientes, pedia sempre o mesmo e sentava-se sempre na mesma mesa. Os presidentes da República sempre vieram cá muito, Jorge Sampaio, Mário Soares, e agora o presidente Marcelo. Vem cá todas as semanas, geralmente às 20h00 ou às 21h00, com um ou dois seguranças, mas muita discrição”.

Todos os dias faz questão de sair dos escritórios (no primeiro piso do edifício, onde até 2004 morou a tia-avó, com quem passava grande parte das tardes no tempo da escola primária), para visitar a fábrica e passear pelas salas da confeitaria — conhece os empregados todos pelo nome e gosta de praticar o inglês, o francês e o espanhol, que reteve nas viagens com a mãe, com os clientes. Nunca esbarrou no Presidente da República.

Não diz, mas está implícito, que nem a ele revelaria o que, para além de leite, ovos, margarina, açúcar e farinha, levam os pastéis que come a cada sete dias. Aos 34 anos, é o mais novo herdeiro do negócio e o responsável pelos destinos da empresa que em 2017 comemora 180 anos de existência. E não é ele que vai desvendar o mistério que subsiste desde 1837.

“A única situação mais crítica passou-se com o meu pai, há uns anos: fomos visitados por uns jornalistas orientais, chineses, japoneses ou coreanos, não sei, que queriam fazer uma visita guiada à fábrica. Entraram uma série de pessoas, às tantas o meu pai estava a falar com umas e atrás estavam outras com pequenas réguas a tirar medidas às formas e a tirar muitos apontamentos. Parecia espionagem industrial, o meu pai pediu-lhes que saíssem e terminou ali a suposta reportagem.”
Miguel Clarinha

É um segredo tão antigo e tão precioso que só meia dúzia de eleitos o conhecem. Muitos tentaram apoderar-se dele e se o cofre em que está guardado nunca foi arrombado, a massa e o recheio já foram roubados por espiões gastronómicos de seringas em punho, que os processaram em espectroscópios para descobrir o que leva a receita. Sempre em vão. Apesar de a espaços aparecerem listas de ingredientes e modos de preparação na Internet (“Descobrimos a verdadeira receita dos Pastéis de Belém”), o segredo mantém-se em segurança. E, como o objetivo é que continue assim, os seus guardiões — todos homens e casados, que as mulheres, os solteiros e os divorciados, já para nem falar nos que bebem, fumam ou têm vícios de jogo, oferecem menos estabilidade — têm inúmeros cuidados. Como os herdeiros da coroa britânica ou presidentes e respetivos vices, nunca viajam juntos, não vá o avião cair ou o carro ter um acidente e o segredo perder-se para sempre. Também não comem a mesma coisa, se a refeição estivesse estragada ou, pior , envenenada, lá ia o segredo para a tumba.

É tão incrível que nem parece verdade. E não é. Garante Miguel Clarinha, todas estas histórias, reproduzidas em artigos de jornal e páginas de Internet, não passam disso mesmo — histórias.

“A receita existe, está guardada num cofre e na cabeça dos mestres e da gerência. Somos seis: eu, o meu pai, a minha prima Penélope, o mestre Ramiro, o mestre Carlos e o mestre Vítor.”

“A única situação mais crítica passou-se com o meu pai, há uns anos: fomos visitados por uns jornalistas orientais, chineses, japoneses ou coreanos, não sei, que queriam fazer uma visita guiada à fábrica. Entraram uma série de pessoas, às tantas o meu pai estava a falar com umas e atrás estavam outras com pequenas réguas a tirar medidas às formas e a tirar muitos apontamentos. Parecia espionagem industrial, o meu pai pediu-lhes que saíssem e terminou ali a suposta reportagem.”

Eis a verdade: “A receita existe, está guardada num cofre e na cabeça dos mestres e da gerência. Somos seis: eu, o meu pai, a minha prima Penélope, o mestre Ramiro, o mestre Carlos e o mestre Vítor. Realmente os mestres não viajam todos juntos, mas porque nunca fechamos e precisamos de pelo menos dois para assegurar a produção. O principal critério para alguém ser introduzido ao segredo é a confiança que depositamos nele, o que vem muito da antiguidade. E o facto de terem capacidade para fazer e reproduzir a receita também é importante, claro; um mestre do segredo é mais do que um pasteleiro que está ali a fazer a massa e o creme, é a pessoa que lidera a fábrica e que também está muito próxima de nós, na gerência. Tudo o resto é ficção.”

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