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Tudo começa com a história de uma mãe e de um filho. Miguel Mealha Estrada conheceu Lisa e Peter em 2010, quando trabalhava num projeto de saúde mental nas escolas de Londres. Peter era uma delas.
O psicoterapeuta, que tinha então 35 anos, percebeu que só poderia tratar o filho se conseguisse tratar a mãe, tese que defende até hoje: “Não faz sentido estarmos a tratar crianças quando existem patologias na família. A criança acaba por estar sempre desregulada porque a família está desregulada.”
Lisa, a mãe, tinha problemas de adição, tentara o suicídio por duas vezes e vivia uma longa depressão. A assistente social via-a como uma drogada, a professora de Peter, como uma mãe incompetente. Miguel via Lisa como uma pessoa doente e entendia o que a depressão estava a fazer ao seu organismo.
O problema de Lisa com a professora de Peter é o de muitos pais, conta-nos. “São vistos como incompetentes e isso afasta-os da escola.” É por isso que defende que cada escola tenha uma microclínica dentro dela para fazer diagnósticos precoces, e que os professores estejam formados para perceber os pais e as crianças com problemas de saúde mental. Foi isso que fez em Londres e foi isso que fez em Sintra, em ambos os casos com recuperações significativas das crianças e das famílias.
“A Vida é um Sopro” é o mais recente livro do psicanalista pediátrico, e que se divide em duas partes. Na primeira, conta-nos a história que viveu em Londres. Na segunda, entra no gabinete de António Coimbra de Matos, um dos seus mestres de psicanálise, e juntos dissertam sobre o porquê de Lisa e Peter o terem marcado tanto.
Connosco, falou sobre a necessidade de a escola ser mais do que um lugar onde se ensina e de ser também um sítio terapêutico. Insurge-se contra a pseudo-ciência, critica quem passa anos num naturopata a tentar curar défices de atenção com hiperatividade e desmistifica o uso da ritalina em crianças. “Os médicos não andam a tentar enganar as pessoas, não há aqui nenhuma conspiração com a indústria farmacêutica. A maior parte dos médicos que receitam ritalina não recebem um tostão para fazê-lo. Receitam-na porque funciona.”
“A escola não deve ser só para o ensino.” É uma frase que está no livro. Então para que deve ser a escola?
Para um verdadeiro ensino.
E um verdadeiro ensino é…
É a escola ser um centro terapêutico, de apoio e desenvolvimento à criança e à família. Porquê? Porque não existe uma criança isolada, a criança é a família. O primeiro ensino que temos de dar às crianças é elas regularem-se emocionalmente. Esse é o verdadeiro ensino: as crianças terem estabilidade emocional, psicológica e cognitiva para conseguirem aprender. Muitas crianças não têm espaço, emocional e mental, para aprender. As crianças identificadas com problemas de saúde mental necessitam de um apoio estruturado, contínuo, e a escola devia englobar a saúde mental num verdadeiro ensino, de uma maneira realmente eficaz.
Como é que a escola pode resolver isso? Haverá quem diga que essa parte tem de ser tratada em casa, ou nos hospitais, e que na escola os professores têm é de dar a matéria.
É uma ideia e já no Antigo Egipto era assim. Eu não concordo porque vejo que a educação e o apoio não devem ser só dirigidos à criança. É também para a família. E repito: não há uma criança que viva isolada. Não faz sentido estarmos a tratar crianças quando existem patologias na família. A criança acaba por estar sempre desregulada porque a família está desregulada. A escola deve ser um sistema educativo terapêutico, não deve ser um sistema que faça receio aos pais, eles devem poder pensar “felizmente existem escolas”.
Costumamos dizer que para educar uma criança é preciso uma aldeia. Aqui para tratar a criança é preciso tratar também a aldeia?
Completamente. Não poria melhor, é isso mesmo.
Se os pais tiverem problemas de saúde mental, inevitavelmente vão passar alguma dessa carga para a criança?
Há uma grande probabilidade, sim. Há a probabilidade genética — que é alta para algumas desordens como a depressão, a esquizofrenia, as psicoses, o défice de atenção com hiperatividade, o autismo.
Mas esquecendo a parte genética, o simples facto de viver com uma mãe ou com um pai que têm problemas de saúde mental pode deixar marcas no desenvolvimento da criança?
Pode e deixa. Se a mãe ou o pai são muito impulsivos, não têm consistência afetiva, se estão depressivos ou eufóricos, a criança fica desregulada porque as suas necessidades afetivas não são satisfeitas.
“Só uma abordagem educacional não chega. Os genes ficam-se a rir. Precisam da medicação”
Um pai ou uma mãe muito impulsivos podem, digamos assim, “contagiar” a criança?
Podem. A impulsividade tem um alto teor genético, o diagnóstico que mais transparece em problemas de impulsividade na infância é o défice de atenção com hiperatividade, que é um problema dos impulsos. Tem uma carga genética altíssima, é um problema genético, neurofisiológico e neuroquímico. Baixos níveis de dopamina no córtex pré-frontal. Nestes casos, em que a crianças têm os mesmos problemas, só uma abordagem educacional não chega. Os genes ficam-se a rir. É preciso medicação, é preciso trabalhar com os pais e com os professores. É assim que eu faço com o défice de atenção com hiperatividade e de uma forma diária. A taxa de sucesso sobe exponencialmente.
Pode-se chegar a um momento em que a criança deixa de ter esse défice?
Não. Não é uma doença que passa, por assim dizer. À medida que o cérebro da criança vai crescendo existe uma maior probabilidade de ela se conseguir controlar, mas há sempre resíduos — como a impulsividade, a ansiedade, a depressão, não conseguir pensar duas vezes antes de agir, ter dificuldade em meter travões mentais. Isto persiste, os genes não se apagam.
Mas fica-se mais capaz?
Fica-se mais capaz de se adaptar melhor a um emprego, à faculdade, etc.
Hoje em dia, parece que qualquer criança irrequieta tem hiperatividade. É a sociedade que está a fazer com que mais crianças tenham hiperatividade ou estamos a diagnosticá-las mal?
Não. Temos de ver isto numa perspetiva evolutiva. O nosso cérebro de hoje é exatamente igual ao que era há 150 mil anos. Com quem é que preferia viver no seu clã há 100 mil anos? Com o hiperativo ou com o intelectual? Quem é que ia buscar comida?
O hiperativo, claro. Estamos a falar do fight or flight, a reação de lutar ou fugir?
Não é só isso. O ter bastante energia, o conseguir seguir os animais pelo prado, por África fora até ao Médio Oriente, o estar alerta a qualquer sinal era importantíssimo para a sobrevivência. Só que os tempos mudaram extremamente depressa, como nunca mudaram antes, e tornaram o caçador exímio em delinquente inadaptado.
“Quem tem défice de atenção é mais facilmente seduzido pela delinquência”
Acha que uma pessoa com défice de atenção com hiperatividade tem maior probabilidade de seguir o caminho da delinquência?
Pode ser mais facilmente seduzido por causa da gratificação imediata. Porque tudo tem de ser já, não conseguem esperar. Um dos problema da perturbação de hiperatividade com défice de atenção (PHDA) é a dificuldade em retardar o prazer e o desejo. Isso associado a uma mais fraca capacidade de autoreflexão, de pensar duas vezes antes de agir, faz com que não se pense muito nas consequências, e que se tenha dificuldade em inibir a euforia e o desejo. A sedução por estupefacientes, a adição, os problemas com a lei e o alcoolismo são mais frequentes. Aqui há uns dois anos, em Sintra, fizeram um estudo com a população prisional e perceberam que mais de 80% tinha uma perturbação de hiperatividade com défice de atenção não diagnosticado. Mas lembre-se, o mais impulsivo, o mais maluco, era quem ia espetar as lanças no mamute.
As crianças com esse diagnóstico são as que tomam decisões automáticas em vez de decisões conscientes?
Têm maior tendência para isso, sim. Primeiro está o desejo, aquilo que eu quero, imediatamente. É a gratificação imediata. Não vale a pena estar aqui a dizer que estamos a ir depressa de mais para o nosso sistema neurofisiológico. Aconteceu, aconteceu. Mas da maneira como está, não tem de continuar. Há soluções para isto. Para ajudar a adaptar todas estas crianças ao meio ambiente.
E que soluções são essas?
Adaptar melhor a escola à neurofisiologia da criança, é um primeiro passo. Trabalhar com os pais.
Isso é um palavrão: adaptar a escola à neurofisiologia da criança. O que quer dizer?
Adaptar às necessidades da criança.
Como é que adaptamos a escola à criança? Começa logo no pré-escolar?
Claro. Temos crianças com 6 anos a terem uma hora e meia de aulas. Eles estão a fazer horários de adolescentes. Isto é absurdo. Quem fez isto não percebe absolutamente nada das necessidades cognitivas e emocionais da criança. Na Suécia e na Finlândia têm muito menos tempo de aulas e as taxas de sucesso são muito maiores.
Então, quando acha que o ensino formal deveria começar?
Aos 7 anos. O cérebro está preparado aos 7 anos, é por isso que nos países nórdicos começam o ensino formal mais tarde, para ir de encontro à fisiologia da criança. Esta ideia de esperar que a criança dê pulos de desenvolvimento só porque alguém quer despachar alguma coisa não tem nexo. Isto deve acabar, não faz sentido nenhum.
Mas fazemos isto há muitos anos, o início da escolaridade obrigatória aos 6 anos. O que é que devíamos fazer?
Mudar. Investir é fundamental nas escolas. E não é ter um psicólogo na escola, isso é para inglês ver. É ridículo. Nem sequer é justo para esses profissionais. O que é que um psicólogo sozinho pode fazer numa escola?
“O que faz mal à criança é ter um horário de adulto”
Um estudo divulgado no Journal of Play faz uma correlação, não uma ligação direta, entre o momento em que as crianças começaram a brincar menos e o momento em que começaram a demonstrar mais problemas de saúde mental. Sente isso?
Não é uma ligação direta, como muitos querem dizer. Mas pode trazer ansiedade à criança, tristeza e depressão. E desorganizá-la. Mas o stress provocado por um horário de adulto na criança, isso é que lhe faz mal. Não interessa muito se a criança passa mais tempo a brincar, a olhar para o céu descontraída, a falar com os amigos… O brincar mais não é solução. A solução é não haver tanto stress horário em cima da criança, como se já fosse um adulto. É diferente. São duas variáveis diferentes.
Ou seja, deixá-la fazer um bocado aquilo que ela quer?
Por que não? Desde que não seja destrutivo…
Mas deixá-la fazer aquilo que ela quer não é deixá-la fazer tudo o que ela quer.
Exatamente. O “não” deve ser “não” até ao fim. Há uma coisa que deve ficar clara: o problema das crianças não é serem mal-educadas ou até terem uma má educação. Os pais sentem-se muitas vezes criticados, postos de lado, vistos como incompetentes. Isso afasta qualquer pai da escola. Devemos por limites na criança? Claro, não é preciso escrever um livro acerca disso. É uma coisa fácil de fazer: não é não, sim é sim. Consequências para isto, consequências para aquilo. Se for com reforço positivo, melhor, juntando algum reforço negativo. Não é nada do outro mundo.
Há pouco falava de tipos de parentalidade. Ser mais permissivo ou mais autoritário pode influenciar o desenvolvimento da criança?
Pode e muito. Mas cuidado que as generalizações são perigosas e também depende da biologia da criança e do suporte que tem à volta, seja dentro ou fora da família. Famílias muito autoritárias… Foi feito agora um estudo com crianças na China e existe uma correlação com a raiva, o totalitarismo, com o serem menos condescendentes, mas é difícil generalizar. O totalitarismo tem uma coisa: é fantástico a desenvolver a neurose, as pessoas ficam doidas, paranóicas, a pensar se fizeram bem ou mal. No tempo do Salazar era tudo paranóico. A neurose obsessiva, o complexo de perseguição, os pensamentos paranóides e a paranóia eram altíssimos. As pessoas tinham medo. E é isto que traz também a parentalidade autoritária: instala o medo e controla as crianças através do medo. É claro que isto pode trazer problemas psíquicos, como a ansiedade, neuroticismo elevado, depressões. Os pais mais permissivos? Os efeitos negativos dependem da criança. Se for uma criança com mais dificuldades em controlar-se emocionalmente, a autorefletir, claro. Mas se souber pensar de uma forma coerente e controlar os impulsos, por que não? Esta ideia de que é com a punição e o medo que as crianças têm boa educação e boas maneiras é completamente falso. E isto é a ciência que o diz, não sou eu. Devemos-nos reger pela ciência. Não conheço nenhuma sociedade saudável em que proliferasse o totalitarismo. Simplesmente, nunca existiu. No coletivo inconsciente, que é passado de geração em geração, há muito esta ideia: usar a punição para instalar o medo em vez de dar à criança ferramentas que a deixem ser criativa, exploratória do seu mundo.
Por outro lado, um dos grandes problemas que as pessoas confundem hoje em dia com falta de regras é o narcisismo. Havia uma psiquiatra que chamou a estas últimas gerações a Geração Eu. As pessoas procuram a gratificação imediata, acham que os seus direitos são os mais importantes, e vêm a relação com os outros não como uma coisa bidimensional, mas como algo de que podem tirar proveito.
E como podemos contrariar esse narcisismo?
O mais importante não é o tu, é o nós. E os pais devem ensinar isto. Isso é a melhor educação que se pode dar a um filho, respeitar os outros, considerar os outros, atuar em consideração às necessidades dos outros e não em função do que queremos, é promover o altruísmo. Não é promover a competição, o ego e a imagem. Isso não é nada. Só tem significado na cabeça das pessoas.
No livro, citando Jonas Salk, diz ser preciso mudar o rumo evolutivo do ser humano. Em vez do mais forte deveríamos pensar na sobrevivência do mais sábio. E diz mais sábio, não mais inteligente.
Isso é porque o Jonas Salk era muito sábio e disse o que disse. É uma figura de referência para mim, desde a adolescência. Em toda a história da humanidade, como descreveu Charles Darwin, foram as espécies que melhor se adaptaram que sobreviveram e não as mais fortes. É o urso que se conseguiu adaptar ao frio e não o maior e mais forte, com garras maiores, que sobreviveu. Sobreviveram os humanos que aprenderam a agricultura e não os que lutavam melhor.
“Conheci crianças com défice de atenção em que os pais perdiam dois, três anos a fazer acupuntura”
E como é que se leva isto para as escolas, para tornar as crianças mais sábias?
É dar todo esse apoio terapêutico e emocional e cognitivo e humanístico e científico que a criança necessita E cuidado com uma coisa: há outra vertente hoje em dia, que faz parte do narcisismo, que afeta a saúde. É a pseudo-ciência e as terapias alternativas. As pessoas são bombardeadas com informação. Entra-se numa livraria e há livros de homeopatia, acupuntura, dietas milagrosas e é tudo falso. Conheci centenas de crianças com défice de atenção e hiperatividade em que os pais perdiam dois, três anos a fazer acupuntura, a dar medicamentos homeopáticos… Não vão ao médico, não tomam a medicação que é realmente eficaz, como a ritalina, porque o naturopata diz que não… Estas pessoas não têm qualificações nenhumas para dizer se a ritalina faz mal ou não. Os médicos não andam a tentar enganar as pessoas, não há aqui nenhuma conspiração com a indústria farmacêutica. Ela faz biliões e triliões por ano? Faz. Porquê? Porque funciona. Ponto final. A maior parte dos médicos que receitam ritalina não recebem um tostão para fazê-lo. Receitam porque funciona. Não há nenhuma conspiração. Duvido que haja algum médico que a receite sabendo que ia fazer mal ao cérebro da criança, ao coração, a alguma coisa.
Mas há esta ideia de que o uso da ritalina se generalizou e de que há crianças que não precisam dela.
O uso da ritalina não se generalizou. Isso pode acontecer — crianças que não precisam dela — mas é raro, por isso vamos esquecer isso. Há sempre problemas colaterais seja na ritalina seja noutro medicamento.
Mas enquanto médico, se uma criança tiver um diagnóstico de PHDA o primeiro passo é dar-lhe ritalina?
Na minha opinião é começar imediatamente com a terapia que funciona e não andar a fazer experiências que podem custar caro à criança. E como é que podem custar caro? Com o tempo. O tempo não perdoa, os dias, as semanas. Quanto mais a criança cresce com problemas de ajuste emocional e cognitivo à escola, mais as hipóteses da desmotivação face à experiência emocional do aprender. Em alguma literatura, defende-se que as outras opções devem ser tentadas primeiro. Mas se há um diagnóstico feito, deve dar-se a medicação, não faz sentido nenhum não dar ritalina à criança. Não há técnicas para subir a dopamina no cérebro segundo a segundo enquanto a criança está ali, na sala de aulas, uma data de horas. E é isso que a medicação faz, é um psico-estimulante. Não faz sentido estar a usar técnicas de acompanhamento psicológico que não fazem efeito durante o dia no cérebro da criança por causa de uma ideologia. E enquanto fazem isso, vendem aos pais que a medicação é muito má. Há muitos médicos que defendem isto. Não faz sentido. Temos de ir diretos à solução, não andar a fazer experiências.
Mas não acha que é normal que os pais terem receio de encher os filhos de químicos?
Claro, mas as pessoas devem confiar no pedopsiquiatra, no pediatra com experiência em saúde mental. Eles tiveram muito treino e não estão ali para fazer mal à criança. Existem médicos que não receitam ritalina por causa do narcisismo, porque têm uma ideologia que não é científica. Então, arranjam pseudorazões para medicar mais tarde a criança quando não há motivos, a não ser os ideológicos, não os científicos, para atrasar a toma do medicamento.
Acha então que a criança teria a ganhar se começasse a ser medicada com ritalina mais cedo?
Se há défice de atenção com hiperatividade e se pode tomar medicação, claro que sim. Não há dúvidas, está estudado.
Mas o défice de atenção não é só a criança ser irrequieta. Como é que se chega a esse diagnóstico? O que é que deve deixar os pais alertas?
Não, não é só ser irrequieta. Na escola, faz-se uma comparação para ver se está ao nível comportamental, emocional, cognitivo das outras crianças. Se tem dificuldade em prestar atenção, se está continuamente a interromper, se tem brincadeiras bastante impulsivas e perigosas, se não é capaz de começar e terminar uma tarefa, se não se consegue lembrar daquilo que aprendeu porque não consegue estar atento, se acha que é bastante imatura para a idade que tem, se não consegue levar os outros a sério, se é muito impaciente e deseja sempre a gratificação imediata, os pais devem procurar ajuda porque a criança deve ser avaliada.
É normal as crianças serem impulsivas e irrequietas. Portanto, é preciso que seja um desvio grande do padrão?
É. Há uma valência esperada, normal, da impulsividade e do egocentrismo da criança e depois há outra valência que é uma impulsividade de uma criança com uma perturbação de hiperatividade com défice de atenção.
Esquecendo o PHDA, o que é que são hoje os problemas de saúde mental das crianças?
As mais prevalentes são a depressão e a ansiedade.
Como é que a depressão se manifesta numa criança?
Até num bebé! Pode ir ao Youtube ver a experiência do René Spitz. Vê crianças com 8 meses completamente depressivas por não terem estimulação, por estarem só num berço. Uma das maiores variantes para não termos depressão, é o contato sadio com outros, que nos estimulam a ser felizes, estimulam a ser motivados e que nos estimulam a conseguir ter relações de qualidade. Sem isso, só reina a depressão, a tristeza, a melancolia.
“Sentir-se emocionalmente invisível perante os pais é traumático”
Os pais podem pensar que a criança está apenas mais tristonha e estarem a passar ao lado de sinais de depressão?
Podem. Outras causas de depressão nas crianças — para além da genética, os pais podem ter tido, ou corre na linhagem da família — é o conflito parental, a ausência parental, a criança sentir-se emocionalmente invisível para os pais. Tudo isso pode levar à tristeza e à melancolia, mas a partir dos 3 ou 4 anos a criança já tem uma vida social e aquilo que não consegue receber dos pais vai procurar nos amigos, na professora, na tia… Mas os pais marcam muito. Uma criança sentir-se emocionalmente invisível perante os pais é extremamente traumático.
O que é ser emocionalmente invisível para os pais?
É os pais não conseguirem sentir aquilo que ela sente, é os pais não a compreenderem emocionalmente.
Mas sinais de alerta concretos, existem?
Introversão e extroversão. A criança mais introvertida pode ter sintomas depressivos, como a criança palhaça também o tem. E faz todo aquele narcisismo para disfarçar e compensar a tristeza que tem. O ter más notas, o urinar de noite, o não conseguir concentrar-se, não conseguir fazer amizades, andar muito à luta, tudo isso são sinais de alertas.
E deve-se pedir ajuda?
Claro. E isto devia estar na escola, à mão de semear. Dentro da escola, a equipa até devia detectar isso precocemente. E a criança não tinha de ficar 2, 3, 4 anos a deteriorar a sua arquitetura cerebral porque os pais não se aperceberam.
Não ser seguida, vai deteriorar a situação da criança?
Sim, o nosso cérebro é construído através da genética, mas também da experiência. A genética fala mais alto, mas o meio ambiente é capaz de interferir no nosso organismo e equilibrar a pessoa. A arquitetura cerebral da criança está a ser formada, o stress e a ansiedade podem afetar os genes, como afetam as redes neuronais do cérebro, como é construída. A partir de certa altura, é muito mais difícil pegar num adolescente de 14 anos que nunca foi tratado do que numa criança que foi detectada precocemente e que terá melhor apoio. O organismo está habituado a ser uma depressão.
O que pode acontecer a uma criança no futuro se passar anos da sua infância e adolescência com uma depressão que nunca é tratada?
Depende, mas há uma maior tendência para a melancolia, a depressão, a desistência, para a catastrofização, para não conseguir aprender, para não ter motivação para aprender, para trabalhar, há tendência para o alcoolismo, para os estupefacientes.
E voltamos ao princípio, ao verdadeiro ensino. Se houvesse professores voluntários nas escolas esta situação seria evitada?
Não é solução e panaceia, mas que ajuda exponencialmente, isso ajuda. Isto não é só a minha experiência, isto está mais do que estudado.
Um exemplo: em Sintra fiz um projeto em que a intervenção terapêutica é aquela que eu acho que é a correta. Os professores tinham todas as semanas consultoria sobre saúde mental: como interpretar os diagnósticos, como compreender a experiência emocional da criança, o que fazer com a criança, o que fazer com os pais. Os pais destas crianças tinham uma psicanalista familiar todas as semanas, na escola, para os ajudar este processo. Tinham a pedopsiquiatra, para a medicação necessária, e tinham ainda psicoterapia individual. E assim as coisas resolvem-se.
E tudo isto dentro da escola?
Sim, sim, numa escola pública. E isto é um modelo formulado para as pessoas. Existem controvérsias acerca deste modelo de intervenção, muito parecido com o que fazem na Finlândia: isto custa dinheiro, é dispendioso, não podemos ter essa gente toda dentro de uma escola. Conheço essas razões todas, mas focamos-nos na solução. Arranjar soluções para remediar uma coisa que está errada é estar a perder tempo. Há sempre resistência dos eternos fatalistas, mas houve tempos em que as pessoas foram muito relutantes a acreditar que o planeta era redondo.
O mais normal é ouvir que não há dinheiro para uma experiência destas.
Felizmente houve uma pessoa que teve essa visão, que era o Eduardo Casinhas, o antigo presidente da união de freguesias de Sintra, que investiu nesse projeto e viu os resultados. Agora está parado, desde as últimas eleições, quando foi eleito um novo presidente. O apoio que essas famílias sentiram é inegável, o avanço das crianças. Dinheiro? O que o Estado vai gastar num projeto destes comparado com o que vai gastar por causa de criminalidade, tribunais, serviços de saúde por causa de doenças contagiosas, em prisões, em subsídios porque a pobreza continua não é nada.
Muitas vezes pensa-se apenas no imediato. O dinheiro que se vai gastar no futuro já não será com quem está agora a dirigir a escola ou o país, será com quem vier a seguir.
Isso é outra coisa. Estamos a falar da vida de pessoas. E não só. Estamos a falar do futuro do país. E se me pergunta, acha que um investimento de tal ordem devia ser feito na infância? Claro! É em todas as infâncias que se faz o futuro do país. Quando se trabalha com a saúde mental das crianças temos de ajudar a família, arranjar apoio sustentável. Temos mães que são vítimas de violência doméstica e têm de sair de casa. Para tratar da criança às vezes é preciso ir muito longe e tem de ser sempre uma equipa multidisciplinar.
Na sua experiência no Reino Unido, ao fim de seis meses, 50% das crianças identificadas como sendo de risco já não estavam nessa categoria. E 78% das crianças em risco de exclusão estavam integradas, já não estavam a faltar à escola. O que foi feito em seis meses que teve estes resultados tão bons?
A mesma coisa que foi feito em Sintra. Um trabalho semanal contínuo com os professores e os pais. E em que os professores trabalhavam todos os dias com os pais destas crianças identificadas. Foi de tal maneira que houve pais que deixaram de ir às consultas nos hospitais porque achavam que na escola era melhor.
E essa experiência foi trazida para Portugal, para Sintra. Os resultados são idênticos?
São. Mas cá só durou um ano e terminou com as eleições e com o novo presidente. Os professores foram fabulosos, estavam motivadíssimos, os pais tiverem uma boa adesão — até aqueles que ninguém acreditava que iam aderir. Havia quem dissesse que estávamos a fazer muito, eu acho que estávamos a fazer o mínimo.
Nesta experiência, havia uma grande inclusão dos pais. Nas escolas há por vezes uma grande desconfiança entre pais e professores. Foi preciso dar a volta a isso?
O que fazia em Sintra, para além de coordenar o projeto, era dar consultoria aos professores. Explicar aos professores como entender os pais, as dinâmicas que se estão a passar entre pais, crianças e professores. Muitos pais não têm esta sensação, são discriminados porque não têm educação ou por outros motivos. Não se resolve assim os problemas. As pessoas merecem melhor. Está ao nosso alcance tornar a sociedade melhor. Quando se troca essa possibilidade por causa do investimento, algo está muito errado no governo.
Eu vi isto toda a minha vida. As pessoas dizerem-me: “Queres mudar o mundo, és um niilista.” Não. Só quero fazer este trabalho nas escolas. Não me consigo acomodar àquilo que para mim não faz sentido. Querer mudar o mundo para uma coisa um bocadinho melhor é positivo, acho eu. Só gostava de ver a escola tornar-se numa coisa que atende às necessidades da criança e da sua família.
Dos professores sentiu que havia vontade?
Sim, porque os professores deixaram de estar desesperados. Os professores não se sentem incompetentes e isso é muito importante. Sabiam o que estava ali e sabiam o que fazer. Sentiam-se apoiados. Os pais, os professores e os clínicos têm de ser a constelação maternal da criança. Existe o arquétipo de mãe e todos temos de estar incluídos nesse arquétipo: os que tomam conta de. Para depois um dia também a criança aprender a tomar conta de. É esta a verdadeira base terapêutica: é irmos de encontro às necessidades da criança e não estarmos a contar com os outros, com serviços que não existem, para tratar de problemas que podiam ser abordados na escola. Os professores têm na escola uma relação única com a criança: estão sempre em contacto com ela. O psiquiatra está uma hora por semana. Os professores são talvez a peça mais importante.
Se quisermos ter escolas amigas da saúde mental da criança devíamos ter micro clínicas dentro dos estabelecimentos de ensino?
Exatamente. Em cada estabelecimento de ensino e não só. Imagine isto: a escola tem de ser a constelação maternal da criança, não pode ser só a mãe e o pai. Tem de ser o professor, o contínuo, o padeiro, a amiga, o amigo, todos os que estão em contacto com a criança permanentemente. Se é preciso tratar de uma aldeia para tratar a criança, o sítio onde ela passa a maior parte da vida deve ser uma aldeia onde exista esta constelação maternal.