Nuno Melo chamou-lhe “um dia histórico”. Em Oeiras, e com o primeiro-ministro ao seu lado, o ministro da Defesa Nacional anunciou um conjunto de nove medidas para as Forças Armadas: entre os aumentos do suplemento da condição militar, do suplemento de residência, de serviço aérea e de embarque; a criação do suplemento de deteção e inativação de explosivos e de operador de câmara hiperbárica, a revisão dos valores pagos em caso de morte e invalidez permanente e até novos apoios aos antigos combatentes. Ao Observador, as associações de militares deixam uma garantia: depois de meses de uma contestação pública sem grandes precedentes na história da democracia, as medidas ficam “muito aquém das expectativas e prioridades”. E, por isso mesmo, “o estado de espírito dos militares vai manter-se nos níveis em que se encontra”.
Mas as críticas da Associação de Oficiais das Forças Armadas e da Associação Nacional de Sargentos não se esgotam no conteúdo das medidas anunciadas. Na última quarta-feira, as associações — além da AOFA e da ANS, também a Associação de Praças — foram chamadas ao gabinete do secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional, Álvaro Castelo Branco. A 48 horas do anúncio das revisões remuneratórias e criação de vários suplementos, os dirigentes das associações que representam os militares procuraram saber o que estaria para ser anunciado, uma vez que a convocatória tinha apenas um ponto na agenda: questões salariais e remuneratórias. Saíram do ministério, garantem, sem saber “absolutamente nada” do que estava para ser apresentado publicamente.
“A postura do Ministério da Defesa Nacional deve ser revista, e deve ser corrigida a mão desta encenação e deste embuste à volta da solicitação da reunião”, defende o presidente da AOFA, capitão Carlos Rodrigues Marques. “Não queremos tirar protagonismo ao senhor ministro, até somos apoiantes desse protagonismo, mas sem truques”, atira o dirigente, acusando Nuno Melo de recorrer a “truques e inverdades” e de estar “escondido no quarto escuro” na preparação do pacote de medidas para os militares.
Na conferência de imprensa desta sexta-feira, questionado sobre a forma como as medidas foram discutidas e alinhadas, o ministro da Defesa Nacional destacou o diálogo que manteve com os chefes dos três ramos militares — Exército, Marinha e Força Aérea — e também com o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. E com as associações representativas dos militares? “Cumprimos a lei”, sublinhou Nuno Melo, ao recordar precisamente a reunião desta semana entre o secretário de Estado e as associações de militares.
Na mesma linha, o presidente da Associação Nacional de Sargentos lamenta, em declarações à Rádio Observador, que as medidas “não tenham sido discutidas e analisadas” com as associações: “Há dois dias, o gabinete do secretário de Estado chamou-nos e não tinha nada para nos apresentar, não podia falar de montantes, quando estas coisas já estavam mais que tratadas e combinadas”, critica António Lima Coelho, que nota “alguma falta de respeito pelas associações profissionais e, no limite, pelos próprios militares”.
Medidas não tranquilizam: “Vai manter-se a pressão”
Todas estas medidas surgem num contexto em que, como o próprio ministro Nuno Melo reconheceu, as Forças Armadas deparam-se com grandes dificuldades para recrutar, primeiro, e reter, depois, os militares dos diferentes ramos. Entre 2015 e 2024, os ramos perderam qualquer coisa como 20% do seu efetivo — uma redução dos 29.178 militares em funções há oito anos para os atuais 23.220. O “pacotão” para as Forças Armadas tem como principal objetivo, precisamente, reforçar a capacidade de captar efetivos e de estancar a saída dos atuais militares.
Mas resultará? E, além disso, será esta a panaceia para a contestação cada vez mais vocal entre os militares, e de que as associações representativas têm dado eco público? A julgar pelas reações dos dirigentes associativos, nem por isso.
“Não tira a pressão da panela, porque as alterações são pontuais e deixam de fora um conjunto alargado de outros militares”, refere Carlos Rodrigues Marques. “A pressão vai manter-se nos níveis em que já se encontrava”, garante. Desde o início do ano, associações — e também militares aposentados, mas que tiveram funções de comando nas Forças Armadas nas últimas décadas –, além de órgãos como o Grupo de Reflexão Estratégica Independente foram deixando clara a subida do nível de descontentamento nas fileiras com a atual situação profissional.
“A pressão poderia ser aliviada com a intervenção das associações, levando sugestões — porque não fazemos propostas disparatadas, fazemo-las com racionalidade e equilíbrio”, destaca o dirigente da AOFA. “O MDN teria ganho muito mais” ouvindo estas associações, que poderiam “abrir o caminho” à pacificação no universo militar. Recorde-se, a título de situação limite, o momento em que as associações voltaram a equacionar abertamente a possibilidade de os militares saírem à rua e manifestarem-se.
A opção do ministério foi diferente e, agora, Carlos Rodrigues Marques considera que, “tirando os 200 euros deste ano, a frustração em grande parte dos militares continuará a estar patente, porque não é um reconhecimento minimamente pleno da especificidade” da condição militar.
Defesa. Ministério mais político e a ameaça de militares nas ruas
Além disso, acrescenta, “nenhuma das medidas anunciadas vai garantir que seja alterado o rumo atual das pessoas saírem das Forças Armadas”.
Reconhecendo a importância dos 300 euros anunciados na vida diária dos militares, o dirigente da AOFA considera que a solução ficou curta para aquilo que eram as pretensões da classe. “Se pode aproximar os postos mais baixos da carreira militar a uma remuneração idêntica à das caixas de supermercado, ela, ainda assim, fica muito distante [do desejado], porque o militar é empenhado com frequência e o planeamento da vida pessoal e familiar depende da permanente disponibilidade para o serviço”.
Nove mexidas — e novidades — no salário dos militares
Em concreto, Nuno Melo anunciou uma revisão da componente fixa do suplemento de condição militar — um reforço inicial de 200 euros, com efeitos já este ano, outros 50 euros a 1 de janeiro de 2025 e, finalmente, mais 50 euros a partir de 1 de janeiro de 2026. Na prática, todos os militares vão encaixar um aumento, por esta via, de 300 euros brutos na sua remuneração mensal.
António Lima Coelho critica a posição do ministério de Nuno Melo por, defende o dirigente da ANS, “insistir numa situação profundamente errada e nada motivadora da coesão e espírito de corpo nas Forças Armadas”. Ou seja, por manter uma componente variável (de 20% da remuneração base do militar, que varia em função da sua patente) e outra componente fixa (que já era de 100 euros e passará a ser de 400 euros, para todos os militares de forma igual, dentro de um ano e meio). “Ao atribuir suplementos diferenciados pelas categorias, estamos a insistir na prática de [considerar que existem] militares de primeira, militares de segunda e militares de terceira, o que é mau”, acrescenta o presidente da ANS. “A condição militar é igual para todos os que juraram a bandeira”, defende Lima Coelho, numa posição que não será consensual entre todas as associações representativas dos militares.
Foram também anunciadas revisões das condições de atribuição e dos valores de outros suplementos. No caso do suplemento de residência, o Ministério da Defesa Nacional reduz a distância mínima entre a residência habitual e o local em que o militar é colocado a partir da qual o valor é pago: dos atuais 100 quilómetros para os 50 quilómetros.
Foram revistos os suplementos de serviço aéreo e de embarque. No primeiro caso, com um aumento que decorre do facto de deixar de ser indexado à 1.ª posição remuneratória de capitão e passa a estar indexada à 1.ª posição remuneratória de tenente-coronel. A medida entra em vigor “de forma faseada”: metade do aumento é concretizado em janeiro de 2025, a outra metade em janeiro do ano seguinte.
No caso do suplemento de embarque, Nuno Melo anunciou um aumento de “20% do valor das ajudas de custo atribuídas aos militares que embarquem e prestem serviço em navios da Armada”. Tal como no caso anterior, a medida é atualizada em duas fases, até janeiro de 2026. A este respeito, a AOFA considera que o valor fica “muito aquém” do mínimo exigível, que deveria ser de 100% do valor pago quando os militares estão em terra. “O suplemento de embarque mais baixo é de 12,5 euros diários, é isso que vale um marinheiro 24 horas no mar”, explica Carlos Rodrigues Marques, que deixa o desafio: “Eu fazia convite ao senhor ministro para embarcar num navio em missão de 15 ou 20 dias, para saber o que significa estar 20 dias no mar.”
Além destas alterações a suplementos que já são atribuídos atualmente, o ministro da Defesa anunciou ainda a criação do suplemento de deteção e inativação de engenhos explosivos (atribuído aos militares “habilitados com o curso de especialização adequado e que estejam no exercício efetivo de funções de deteção e inativação e engenhos explosivos” e que entra em vigor em janeiro); e o suplemento para operador de câmara hiperbárica (direcionado aos militares “habilitados com formação específica em fisiopatologia hiperbárica, que exercem funções e desenvolvem a sua atividade em câmara de pressão hiperbárica”, também em janeiro).
Foram também revistos os valores de compensação por invalidez permanente ou morte. No caso da morte de um militar, passa a ser pago um valor de “250 vezes” a retribuição mínima mensal garantida (RMMG). A valores atuais (de 820 euros de salário mínimo), isso corresponderia a cerca de 205 mil euros. No caso de invalidez permanente, o valor pode variar entre 150 e 250 vezes a RMMG.
Foram ainda anunciados apoios aos antigos combatentes. Nomeadamente, a atribuição de um “apoio de 100% da parcela não comparticipada pelo SNS para os utentes pensionistas beneficiários do Estatuto do Antigo Combatente” e um aumento de “90% da comparticipação dos medicamentos psicofármacos para os beneficiários do Estatuto do Antigo Combatente não pensionistas”.
Finalmente, o Ministério da Defesa Nacional vai avançar com uma reformulação da remuneração base dos praças e sargentos das Forças Armadas, fazendo-as equivaler aos salários dos militares da GNR.
Ministro “só tem 115” nas funções. “Ainda tem muito para aprender”
Além de falar num “dia histórico” para as Forças Armadas, Nuno Melo considerou “extraordinárias” as medidas apresentadas e o caminho para resolver os principais problemas no universo militar: a tal captação e retenção dos efetivos. Na resposta, as associações de oficiais e sargentos devolvem com uma consideração sobre a experiência do novo ministro: falta-lhe tempo.
“Não vejo más intenções nas palavras do senhor ministro da Defesa”, diz o líder da AOFA. “Mas”, continua Carlos Rodrigues Marques, Nuno Melo “ainda só tem 115 dias de exercício das suas funções e tem ainda muito para aprender e para conhecer”. “Era bom que pudesse aprender e conhecer rapidamente” o universo militar “e, no que toca à AOFA, terá seguramente alguém disponível para isso, mas nunca com truques e inverdades nem escondido no quarto escuro”, atira, sobretudo a pensar na forma como as medidas foram desenhadas e apresentadas.
“Negociar não significa que tenhamos de ter acordo. Mas eu sentir-me-ia mais confortável se o senhor ministro navegasse em companhia com todos, em vez de navegar sozinho. Não queremos tirar protagonismo ao ministro da Defesa”, insiste.