A generalização a todo o país das Unidades Locais de Saúde (ULS) — considerada a grande reforma na organização do Serviço Nacional de Saúde concretizada pelo anterior diretor-executivo, Fernando Araújo — vai ser revertida nos sete centros hospitalares universitários do país, avançou ao Observador fonte conhecedora do processo. A recomendação vai ser formalmente apresentada ao ministério pelo grupo de trabalho que a ministra da Saúde nomeou em setembro para estudar a viabilidade das ULS nestes hospitais e deverá merecer a concordância de Ana Paula Martins, sabe o Observador. A reversão — que há muito era defendida pela ministra — poderá, por isso, avançar já durante o próximo ano.
Dos sete centros que vão deixar de estar organizados no modelo de ULS, seis vão passar a funcionar num modelo, amplamente testado internacionalmente, que agrega cuidados assistenciais, ensino e investigação: os Centros Académicos Clínicos. São eles a ULS de São José e de Santa Maria (em Lisboa), a ULS de Coimbra, a ULS de Santo António e de São João (no Porto) e a ULS da Cova da Beira (na Covilhã). Na região do Algarve, o governo irá ainda mais longe, tornando a atual ULS do Algarve no primeiro Sistema Local de Saúde do país (SLS) — um modelo em que os cuidados do SNS se articulam com cuidados prestados pelos setores privado e social —, como anunciou a ministra da Saúde em junho.
Os Centros Académicos Clínicos existem há anos, mas a falta de regulamentação ainda não permitiu institucionalizar o modelo, que funciona atualmente sob a forma de associações ou consórcios. Este modelo tem como objetivo a criação de sinergias entre a componente clínica, académica e de investigação, de modo a potenciar o conhecimento, os avanços científicos e a atração de profissionais — numa altura em que, cada vez mais, os médicos condicionam a permanência no SNS às oportunidades de investigação e aos projetos de carreira.
Ex-ministro Adalberto Campos Fernandes vai liderar avaliação às ULS em hospitais universitários
Grupo de trabalho está a analisar centros académicos e clínicos de referência na Europa
Neste momento, a Comissão Técnica Independente, nomeada pela ministra da Saúde para estudar as unidades locais de saúde de cariz universitário, já se encontra na fase de elaboração do relatório preliminar, a ser entregue até final de dezembro. O grupo de trabalho, liderado pelo ex-ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes, já ouviu várias entidades do setor, entre as quais as ordens profissionais, mas também o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas ou Agência Nacional de Inovação e Investigação.
Fonte conhecedora do processo avança ao Observador que estão a ser estudados os modelos de Centros Académicos Clínicos que já existem em vários países da Europa. “O Imperial College é o modelo que está a suscitar maior interesse, porque é o mais facilmente adaptável à realidade nacional”, diz a mesma fonte, referindo-se à reputada universidade londrina, que se centra nas áreas da engenharia, ciência, medicina e negócios, complementando o ensino com uma educação orientada para a investigação. Estão também também a ser analisados outros centros europeus, como o Centro Médico Universitário de Roterdão, nos Países Baixos, ou o Hospital Universitário Vall d’Hebron, em Espanha. “A ideia é que existem sinergias e que o modelo de governação seja partilhado” entre a academia e os cuidados de saúde, diz a mesma fonte.
A aplicação deste modelo aos hospitais universitários é, aliás, defendida há muito pela atual ministra da Saúde. “Os Centros Académicos Clínicos, envolvendo hospitais, faculdades e institutos de investigação, são o fulcro da investigação para milhares de estudantes de Medicina e internos. A concretização da Regulamentação dos Centros Académicos Clínicos, ainda por fazer, era efetivamente a grande mudança que poderíamos ambicionar“, dizia Ana Paula Martins, no final do ano passado, naquele que viria a ser o último discurso como presidente do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, entretanto convertido em ULS de Santa Maria.
Atual ministra da Saúde é defensora dos CAC, que garantem um maior financiamento
Perante os funcionários do centro hospitalar, a ministra da Saúde elencou, há cerca de um ano, as vantagens do modelo. “Os CAC estão capacitados para a inserção nas redes europeias de referência de doenças raras e complexas e para o reconhecimento internacional de várias áreas específicas como Centros de Excelência de diferenciação clínica e científica, que já hoje perigam por falta de financiamento dedicado e obrigam a mais tempo de dedicação dos profissionais de saúde por cada doente tratado”, sublinhava a ministra, para logo depois acrescentar que, “a par com esta atividade diferenciada, os CAC assumem enormes responsabilidades no ensino pré e pós-graduado, em atividades realizadas a par com muitas outras atividades indiferenciadas que já hoje causam desgaste e desmotivação nos profissionais”.
“Por isso, o caminho seria certamente o da articulação com os Cuidados de Saúde Primários, com projetos inovadores, que aproximassem a medicina hospitalar da medicina na comunidade, através de uma valorização crescente da prevenção e de uma projeção do diagnóstico e tratamento para fora do ambiente das enfermarias, reservando os hospitais para situações agudas e complexas”, defendia Ana Paula Martins.
Não é de estranhar, por isso, que a ministra da Saúde se prepare para acolher a proposta da Comissão Técnica Independente, no sentido de extinguir as ULS nos hospitais universitários. Contactada pelo Observador, fonte do ministério não abre o jogo sobre o que Ana Paula Martins fará em relação à proposta da Comissão Técnica Independente relativamente a estas estruturas do SNS. Mas deixa nas entrelinhas a ideia de que, a ser proposta, a mudança de modelo vai avançar. “A ministra tem dado voz aos especialistas para ouvir as opiniões técnicas. É com base nelas que se tomam as decisões. No caso das ULS, não será diferente”, diz a mesma fonte.
Foi, aliás, por causa da discordância em relação à transformação dos hospitais universitários em ULS que a atual ministra se demitiu da liderança do então Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, em dezembro do ano passado. A generalização das ULS a todos os hospitais do SNS foi apelidada, ainda no verão de 2023, pelo então diretor-executivo do SNS, Fernando Araújo, como a maior reforma já feita no modelo de organização do sistema público de saúde desde a sua criação, em 1979. O médico hematologista, que deixou o cargo em junho depois um conturbado período de coexistência com Ana Paula Martins, garantia que o modelo de ULS — que integra, sob a mesma administração, os cuidados hospitalares e os cuidados de saúde primários — iria colocar “o foco nas pessoas, nas suas necessidades individuais e familiares”, melhorando a eficência na prestação de cuidados à população.
Ana Paula Martins considera que o modelo de ULS agrava o subfinanciamento dos hospitais universitários, estruturas que, mesmo quando estavam integradas em Centros Hospitalares, registavam défices na ordem das dezenas de milhões de euros todos os anos. “Um hospital universitário é muitíssimo diferenciado. Não pode e não deve ser financiado por capitação [o valor de referência atribuído a cada utente]”, defendia a atual ministra da Saúde, numa entrevista ao Público em janeiro deste ano, lembrando que os hospitais universitários recebem doentes mais complexos, o que implica a prestação de cuidados muito diferenciados e um maior financiamento por doente. Os Centros Académicos Clínicos resolvem, à partida, esse problema, uma vez que preveem um modelo de financiamento reforçado para os centros de referência nacionais e internacionais dos hospitais que os integrem.
Em junho, a ministra da Saúde já tinha adotado, na Assembleia da República, uma posição de força contra as ULS em hospitais universitários, dizendo, sem margem para dúvidas, que o atual “governo não tem nenhuma posição de princípio contra as ULS no seu todo”, mas sim “relativamente aos hospitais centrais e universitários”.
Ana Paula Martins sublinhou a falta de evidência favorável à extensão do modelo de ULS a estas unidades. “Até à data, não existem dados que nos permitam concluir que este deve ser o caminho a fazer. Também a avaliação financeira da UTAM [Unidade Técnica de Acompanhamento e Monitorização do Setor Público Empresarial] não foi favorável”, disse ainda a titular da pasta da saúde, citando um artigo, publicado numa revista internacional, que diz que “é importante considerar os riscos inerentes ao modelo”. Lembrou também que “algumas das primeiras ULS nunca demonstraram vantagens significativas”.